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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

25
Set24

Ut pictura poesis


celiacloureiro

 

Nunca como agora - quase a chegar aos 35 anos - estive tão ciente das minhas limitações. Paradoxalmente, isso deixa-me mais orgulhosa das minhas conquistas. Afinal, sempre fui uma cabeça de vento ambulante, dividida entre o tédio e o entusiasmo, acordada de noite e sonolenta de dia, que recorda pormenores absurdos mas não consegue lembrar-se de detalhes importantes nem que tenha a vida em risco. A casa é o equilíbrio entre a pessoa desarrumada e a que odeia desordem. As refeições são preparadas no joelho ou encomendadas por desespero. A pintura é uma indulgência, bem como os animais, a coleção de livros. Há dias em que estranho ter escrito e publicado tanta coisa, há outros em que não compreendo como não escrevo mais, tendo uma cabeça tão prolífera em ideias.

O sítio para onde vou morar é escuro, muito escuro. A única estrada que conduz àquela fachada caiada e àquele torreão medieval está atapetada de animais atropelados. Enquanto conduzo nela, repito: atropela, atropela, atropela. Tenho tanto medo que o coração me leve a guinar o carro para a berma, para o muro, para a cerca. É uma reta interminável, assustadora e acidentada. É-me inevitável fazê-la a 100km/h. Não sei lidar com o aborrecimento. O aborrecimento paralisa-me. No entanto, sinto essa povoação a salvo da maldade dos sítios luminosos, com muita gente e muita competição por recursos.

A Universidade de Évora é um lugar lindíssimo e inspirador, tingido por demasiado barulho na biblioteca e alguma falta de papel higiénico nas casas de banho. Sinto que era capaz de estudar ali todos os dias, as mais variadas matérias, se não tivesse mais trabalho a desenvolver. Os professores são humanos, metódicos e parecem-me cansados. Nos corredores, os alunos gritam e chutam as máquinas de venda automática. Nas aulas, estamos todos em silêncio, e essa solenidade faz-me bem. Nada é já solene, nada é já sagrado. Que ao menos uma instituição de ensino seja sagrada.

Há alturas em que me apetece ver como tudo isto será amanhã. Outras em que só queria que esta canseira acabasse.

02
Set24

Falésias


celiacloureiro

Entre ontem e hoje pintei bastante. Umas oito (?) aguarelas, três temas no total. Uma mulher à beira mar, perante o rebentamento das ondas - com a variação de ter uma menina pela mão -, uma paisagem com casa de campo e campos de lavanda e campos de lavanda com uma casa de campo (parece a mesma coisa, mas não é).

 

Enquanto pintava, pus a Not Alone, do Ólafur Arnalds em repeat. Partilhei-a no IG e vieram dizer-me para assistir à série Broadchurch, britânica, à qual a composição pertence. Vi a primeira temporada da série, achei muito boa, mas gostei, acima de tudo, da banda sonora. É engraçado como as bandas sonoras me apanham com tanta facilidade. O que mais adoro no Interstellar é precisamente a banda sonora, em especial a No Time for Caution e, claro, a Cornfield Chase.

 

Há dias, dei uma espécie de entrevista de vida, focada em mim e na minha história, na minha infância, nos meus defuntos e nas minhas doenças mentais - não sei bem se deva colocá-lo assim. Acho que uma doença mental é uma bipolaridade, uma esquizofrenia. Eu só tive duas depressões e tenho déficit de atenção. Parecem-me coisas light, distúrbios menores, mais fáceis de gerir, do que uma «doença mental».

 

Conduzi até ao supermercado ao fim do dia, com os raios dourados e esverdeados do fim do verão a atravessarem o carro empoeirado, a comer pistáchios e a acumular as cascas no nicho debaixo do rádio. Ouvia a Not Alone e sentia a minha vida em modo automático. O tempo a rolar - rodas dentadas a esmagarem-no, a pregarem-no ao chão -, o verão a expirar e eu estranhamente entorpecida. Sempre atrasada, sempre atrás do prejuízo, sempre na corda banda. Apática no supermercado, atrás de uma mulher ao telemóvel com três filhos com menos de 8 anos. Um deles, o mais pequeno, com um brinco na orelha direita, abriu o frigorífico de bebidas junto à caixa e tentou abrir uma lata de Red Bull. Teria uns 4 anos, talvez até menos. Tinha os atacadores soltos, tal como o irmão do meio. Pensei que fossem estrangeiros, mas de repente percebi que os morenitos birrentos e de corte à jogador da bola eram portugueses. Olhos redondos, enormes. Bonitos, incrivelmente bonitos, mas também insuportavelmente inquietos. Não encontrei coragem para impedir o pequeno de abrir a lata. Já tinha as palavras nos lábios «Menino, olha que isso é bebida para os crescidos», mas não tive forças para dizer nada. A mãe estava completamente alheada no telemóvel, limitava-se a proferir uns ocasionais «Não mexam nisso» e «Isso não é para mexer», e nada mais. Nem viu o filho a voltar a abrir o frigorífico para uma segunda tentativa, depois de ter falhado a primeira.

Senti-me tão exaurida. Não consegui dizer-lhes nada. A cadência da música na minha cabeça. Uma vontade imensa de escrever um - vinte - livros, e nada de tempo nem forças para escrever nenhum. Cheguei a casa e carreguei sacos para casa. Parece que estou sempre a carregar sacos. Sentei-me ao computador, gastei dinheiro em compras de material de construção para a casa nova, comi pão com manteiga, acabei de ver a série e, por volta das 23h00, comecei a traduzir. A história prendeu-me porque me recordou muito a série, a música caiu-lhe que nem uma luva.

O tempo passou. Está sempre a ranger debaixo das rodas dentadas. Amanhã, será tudo igual - uma variação - compras e série e tradução, ou tradução e música e compras, ou música e pintura e compras.

De que serve o tempo, afinal?

Quando pestanejar, quando tempo terá passado da próxima vez?

Estarei a viver em Évora e será tudo igual? Apenas mais distante, mais cansativo, mais solitário, mais isolado?

Traduzi 23 páginas hoje. Fiquei satisfeita comigo, mas...

Tive de vasculhar no meio das fotografias de família por retratos adequados à «entrevista de vida», para a montagem final. Depois vejo-me de fora: 34 anos, só. É o que penso: . Mas não é o que sinto. Cheguei à entrevista descabelada, com o cabelo do dia anterior e um vestido de praia largo e comprado no chinês, sem sutiã, convencida de que seria apenas voz. Nem um pingo de maquilhagem. Encolhi as pernas debaixo do meu corpo na cadeira giratória. Tentei não me aproximar demasiado do microfone.

«Como foi a tua infância?».

Que caras terei feito? Como serei eu, aos 34 anos, a falar da minha vida?

Fiz as pazes contudo. Estou em paz.

No entanto, às vezes parece que não estou.

Ou, pelo menos, que não estou bem aqui.

Para onde vou quando não estou em lado nenhum?

20
Ago24

Dias curtos


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Apesar de ser verão, os dias são incrivelmente curtos para tudo o que tenho de fazer. Durante anos, achei que era diferente de toda a gente. Agora tenho um diagnóstico que explica essa diferença: a de não conseguir tirar proveito, repousar, nas horas vagas.

Por isso, encho os meus dias de projetos, quero sempre acrescentar mais qualquer coisa à lista interminável de coisas a fazer. O tempo é sempre pouco. Quando dou por mim, faltam outra vez 15 minutos para as 20:00, o sol parece querer pôr-se e eu estou fechada no mesmo quarto, perante o mesmo computador, com os restos de um lanche rápido ao lado (a tigela e as partes rijas da meloa, a garrafa de água com gás a aquecer devagar). Vou ficar aqui mais algumas horas, por volta das 23:00 desligo tudo, deito-me na cama ali atrás e rezo para que não faça demasiado calor. Estou tão cansada. Mas não posso - nem quero - dormir. O Elvanse tem ajudado (muito) a ser mais produtiva, mas graças a ele trabalho dez horas por dia, seguidas, numa espécie de tunel com palas. Acordo, tomo o pequeno-almoço, engulo os comprimidos com água e sento-me na cadeira de gamer que comprei para ver se não massacro tanto as costas. Pestanejo e é hora de dormir de novo. Olho para o calendário e passaram dois, três meses. Não fiz nada de significativo - só cumpro metas, dou check em tarefas. A minha agenda voa e continuo no mesmo sítio. Compareço onde tenho de comparecer, mas parecia que ainda faltava tanto para esse compromisso, contudo é já amanhã. E não quero parar. Quero continuar. Quero voltar a estudar...

Que saudades de cometer a insensatez de fumar um cigarro, de perder tempo a olhar para as estrelas e a pensar a vida. Os dias agora dividem-se entre as tarefas domésticas, as mensalidades, o trabalho. Palavras, palavras ao computador. As gotas nos olhos - lágrima artificial, antibiótico, antihistamínico - as teleconsultas, a dor nas costas, porque não voltei a nadar. Estou cansada.

Estive sempre cansada. Passei os últimos vinte anos a dizer que estava cansada. Tenho medo de que aqui olhe pela janela e veja a vida passar ao som das gaivotas, e que no Alentejo olhe pela janela e veja as estações a passar na minha laranjeira ao ritmo da nidificação das andorinhas.

As enxaquecas pioraram, agora além dos analgésicos tomo profiláticos. A minha saúde pede-me que fique quieta - e eu já marquei um retiro de 20 dias na praia, noutro continente, noutra latitude - e espero que isso me salve, mas tenho de sobreviver até lá.

Estou cansada.

Estive sempre cansada.

Há vinte anos que me sinto à beira do colapso.

De algum modo, continuo sempre de pé.

 

18
Jul24

O Rádio do Teu Quarto, Pai


celiacloureiro

Por algum motivo, peguei no caderno preto com capa de couro que o meu pai usou para apontar os seus compromissos, pensamentos, receios, gastos, nos últimos meses de vida. O caderno está cheio de detalhes angustiantes do cancro em fase terminal, mas também da ilusão e da esperança de que não houvesse uma sentença de morte a pender sobre a sua cabeça.

A única música que sempre lhe associei foi a The Drugs Don't Work, dos The Verve. Hoje lembrei-me de outra, muito mais bonita e adequada. A Thank You For Loving Me, dos Bon Jovi. Pus-me a ouvi-la e percebi que é isto mesmo. A enxurrada de lembranças. Como me lembro dele com 28 anos e como o achava o homem mais bonito do mundo, e também o mais habilidoso. Acho que acordei a pensar no meu pai porque tive uma insónia na noite passada. Adormeci por volta das 06:30 a dar voltas à cabeça com detalhes da minha casa nova, coisas que sei que ele teria resolvido com um lápis e um caderno quadriculado. O meu pai era simplesmente brilhante. Ele, o seu lápis e o caderno quadriculado. Ele trabalhava ferro, tantas vezes o vi por detrás da máscara de soldador; trabalhava madeira, sabia fazer eletricidade, canalização, era um pintor primoroso, sempre asseado e organizado e meticuloso em tudo o que fazia. Era preciso, coisa que nunca consigo ser. Se estivesse vivo, o meu pai teria 54 anos. Seria muito, muito novo. Se tivesse conseguido livrar-se do vício da droga, e se tivesse recuperado a minha confiança, tenho a certeza de que seria o cérebro que iria comandar esta renovação. Ele e o meu irmão poderiam estar a ser pai e filho, orgulhosos um do outro, numa aldeia alentejana, a partilhar moscatel e um cigarro e a aprender um com o outro. O moderno e o intemporal. Morrer aos 48 anos deixa um saldo negativo incalculável. A vida do meu pai podia ter sido tão longa, tão cheia de conquistas, tão gratificante. Não costumo pensar no vazio que ele deixou, mas a verdade é que, de alguma forma, ele rompeu a barreira do meu antidepressivo e as lágrimas estão a descer livremente.

Tenho tantas saudades tuas, pai. Da tua voz. Dos teus dedos grossos e calosos a pairar sobre a peça de xadrez antes de avançar e de me fazeres outro xeque-mate. Da palma das tuas mãos, onde em tempos coube carinho e cabiam os dados, com as faces desgastadas. Dessas mãos saía tudo, saiu a cruz de ferro da igreja da nossa freguesia, saíram portões, saíram casinhas de madeira para bonecos e pássaros, saíam pisos direitinhos de laje e saiu aquela árvore geneológica da família que pintaste na parede do anexo do quintal com o brio que te era caraterístico. Fazias tanto com tão pouco, do nada. As escadinhas em caracol de cordel e madeira, a casinha de papel que me fizeste quando eu era pequena, e como fiquei encantada com uma coisa tão frágil mas tão engenhosa, que nunca saberia fazer igual.

Ainda me lembro do cheiro do teu quarto quando ias tomar a bica depois de jantar e eu ligava o rádio. Ouvia o top 10 da rádio Cidade e a Thank You for Loving Me dos Bon Jovi tocava sempre num dos primeiros lugares. O quarto cheirava a tabaco, a outros fumos, mas também cheirava a casa. Depois tu chegavas, baixavas o som, tiravas o blusão de ganga e montavas a mesa para jogarmos. Obrigada por todas as horas em que aceitaste a minha companhia - a companhia de uma miúda que só queria aprender contigo, absorver um pouco do muito que me parecia que sabias. Agora entendo que tudo o que em mim é arte veio de ti. E sei que me amaste. Eu também te amei e amo ainda hoje. Tenho tanta pena de não podermos ter sido pai e filha por mais tempo. Sinto muito por não ter sabido ajudar-te melhor, ou sequer compreender-te melhor. 

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A tua morte foi a coisa mais hedionda a que alguma vez assisti e, se Deus existir, nunca mais ninguém voltará a morrer assim. No teu caderno há listas de exames, de consultas, de especialistas - maxilo-facial, ortopedia, oncologia, pneumologia. Registaste as visitas que recebeste no internamento, mas só conseguiste fazê-lo por dois dias. Depois, a dor tornou-se insuportável e a dose de opióides subiu. A tua consciência retirou-se. Fui visitar-se quando isso aconteceu. Só hoje, no teu caderno, descobri mais um pormenor inacreditável: aos 48 anos, pesavas 46,5kg quando foste admitido no hospital. Lamento tanto que, às vezes, pareça que a tua vida não valeu nada. 

Desculpa se o meu número não está entre os contactos de emergência que apontaste. Quero acreditar que é porque o conhecias de cor.

Assim como a escrita te trouxe conforto nas últimas semanas em que estiveste consciente - portanto, vivo - uso-a agora para dizer que te amo e que tenho muitas saudades tuas. E também thank you, for loving me, I know you did.

28
Jun24

VIII Força


celiacloureiro

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Tenho sentido muita necessidade de desabafar, ultimamente. Cada um tem as suas lutas e a minha não é mais dura do que a de muitos ao meu redor, mas tantas vezes me sinto sozinha. Penso, agora que me vou conhecendo melhor, que isso se deve a vários factores que me «isolam» por trás de uma série de circunstâncias improváveis, quando combinadas, mas usuais quando isoladas. Infância difícil. Doença autoimune. Ferozmente independente. Infelizmente, nunca pude contar com os meus pais. A ajuda aconteceu muitas vezes no sentido contrário ao natural. Tantas vezes carente, tive poucos momentos em que me senti realmente vista, compreendida. Ex-romântica; pessoa que luta diariamente por tomar decisões com a razão, e que, no fim das contas, vai sempre ao sabor da intuição, tantas vezes do coração. Escolho sempre com que tipo de culpa prefiro lidar.

Confio muito na minha intuição - li, algures, que quem tem PHDA também tem boa intuição, talvez porque tenhamos tendência para (presumivelmente) reconhecer padrões. A verdade é que sempre achei que tinha alguma facilidade em ler as pessoas e as situações, o que não me isenta de cometer erros de vez em quando. Regra geral, confio no meu discernimento.

Há bocado, estava a consultar o processo de aquisição da minha casa atual e tropecei num e-mail meu para o banco, enquanto esperava que libertassem a tranche seguinte do valor do empréstimo para as obras. Nas minhas palavras «Se o arrependimento matasse...».

Fui dramática? Fui. Mas ainda bem que encontrei esse e-mail. Ainda bem que fui sincera em 2018. Assim, a Célia de 2024 olhou para aquela frase desenxabida e soltou um longo suspiro. Lembrei-me de como foi difícil fazer as obras nesta casa, esperar, mudar-me, ver o dinheiro a desaparecer. Usar o meu salário para pagar o salário dos trabalhadores, na íntegra. Ficar a negativo. Arrancar o cabelo. Chorar quando metia a chave à porta, porque era duro, era tudo novo, apesar de tudo eu só tinha 27 anos, tinha duas miúdas que precisavam de mim, queria colo. Não tinha colo. A avó tinha morrido, o pai tinha morrido, eu não era mãe, não podia ser irmã, mas tinha de dar ordens, de orientar, de gerir - a partir de todas as minhas fragilidades, todos os meus defeitos, todos os meus fantasmas. Com ajuda da psicóloga - que nem soube ver que em cima de tudo eu tinha uma depressão e déficit de atenção. Senti esta casa como muito «nossa» desde o início. Foi lindo vê-la nascer, embora me tenha sentido tão impotente como agora e na altura só me sentisse capaz de funcionar em modo automático. De me arrastar para o maldito quarto andar sem elevador que tinha acabado de escolher para viver. Eu cresci numa casa com um balde a recolher a água da chuva na cozinha. Com a porta para as traseiras presa por uma fita a um camarão na parede. Tantas vezes sonhei que essa porta se abria durante a noite, que o mal entrava por ela. Cresci a olhar para a racha no tecto (tecto esse que desabou mesmo, quando eu já não vivia lá), e para a humidade que se acumulava na impotência do branco da tinta. Cresci com remendos, com portas e torneiras e azulejos desencontrados. Os avós sentados em cadeiras de plástico que faziam as vezes de cadeirões. A mobília herdada - sempre que falecia um parente, chegavam louceiros e louça e sofás e estantes e televisões e leitores de vídeo e DVD. Cresci com uma janela na marquise onde a massa já pouco fazia para suster o vidro fosco, e sonhei tantas vezes que não conseguia fechá-la, que a ameaça vinha, o gato fugia, e a janela não colaborava. Cresci com muita liberdade e com o amor incondicional da minha avó, em melhores condições do que pessoas que conhecia pessoalmente, mas sempre com o sonho de ter uma casa. A minha casa. Tantas vezes me pareceu impossível ter uma casa. Tanta boa gente que eu conhecia e que trabalhava arduamente e que não conseguia ter uma casa. E eu na internet, quando a tive aos dezasseis anos, a percorrer os sites das imobiliárias, a sonhar com uma casa... A minha casa. Sem mal, sem ameaças, sem humidade, sem portas que não fecham. O catálogo do IKEA sempre acarinhado, rabiscado. O sonho anual renovava-se. Como eu, outros sonharam. Não alcançaram. O meu pai não alcançou, viveu a vida toda na mesma casa, foi ele que instalou o atacador na porta do quintal, e que pôs uma bacia no lavatório para receber a água quando a canalização começou a dar problemas e a deixar de escoar. A minha mãe lutou muito, teve alguns refúgios, mas acabou por perdê-los. No final, estava tranquila no seu sofá, mas mereceu mais. Mereceu melhor.

Faltou-lhes qualquer coisa que eu tive. A teimosia? A garra? A recusa em aceitar as minhas circunstâncias? O colo da avó? Eu tinha o colo da avó. O avental da avó. A mão surpreendentemente suave da avó. Ajoelhava-me no chão e punha a cabeça no colo dela. Sonhava alto, e ela, às vezes, duvidava. Duvidava que tantos livros me levassem a outro lugar que não o oculista. Duvidava que escrever livros viesse a servir para o que quer que fosse. Duvidava que um curso superior me conseguisse um emprego. Duvidada que o salário pequeno me tirasse de casa. Ela tinha medo, tinha muito medo. Talvez porque não tivesse metade da minha sorte - ou uma estrela guia tão forte como a minha. Se calhar, não teve quem a amasse como ela me amava. Algures, no caminho, decidi que tudo haveria de ser possível e que ia conseguir chegar onde quisesse, ou morreria a tentar.

Hoje tive um pico de ansiedade à tarde. Pensei que ia ter um ataque cardíaco. Foi do metilfenidato, do peso das responsabilidades, do trabalho por concluir, do psicólogo só com vaga para agosto, da luz que só iam ligar em 5 dias, da reserva de alojamento não reembolsável e que seria agora desperdiçada. Do dinheiro que é bem provável que seja curto para todos os problemas que a casa nova tem. Do sono que senti enquanto conduzia de Évora para Almada, o peso nas pálpebras, a música que não me despertava. O cansaço. As costas. A impotência. Os quilómetros. A distância. Os animais mortos nas estradas rurais. O voo das garças. As vacas na modorra da tarde alentejana, a reserva de caça, o passarinho que arranquei, inadvertidamente, ao ninho. Deitei-me, fechei os olhos. Pensei que não é normal tomar um psicoestimulante e ter de dormir para acalmar o coração que quer saltar do peito, explodir em penas, em sangue. Não volto a tomar essa porcaria.

Em vez disso, trabalho como posso, quando as minhas limitações mo permitem. É difícil concentrar-me quando há tanta incerteza sobre o amanhã. Quando tenho fome mas não tenho forças para cozinhar. Quando odeio confusão mas não há estofo para arrumar. Quando sinto que estou a falhar em todas as frentes em nome de uma teimosia, um capricho, que por vezes só eu pareço acreditar que vai valer a pena, que vai ser a resposta.

A verdade é que a eletricidade será ligada na terça-feira. O alojamento não reembolsável será aproveitado. O psicólogo teve uma desistência para amanhã. A comunidade dos livros é incrível, embarca comigo em todas as aventuras, dá-me tantos abraços à distância, tanta força para continuar. Não tive um ataque cardíaco. Tive companhia para o jantar, sem ter de pedir nada, de procurar nada.

Também esta casa, esta mudança, me pareceu impossível, mas fez-se. Esta também me parece impossível, mas far-se-á.

Hoje consultei o Tarot.

A resposta foi positiva.

Só mais um bocadinho e poderei descansar.

25
Jun24

Alentejo, here we go


celiacloureiro

Há demasiado tempo que dizia que o meu «sonho» era mudar-me para o campo. Com campo, não me referia a uma casa isolada numa estrada por alcatroar a 3 horas de Almada. O que imaginava era uma vida enquadrada numa pequena comunidade, mas com vizinhos (não necessariamente encostados a mim, mas é assim que será), uma moradia onde me livrasse por fim dos problemas do condomínio, do telhado, da limpeza das escadas e a coluna de água, com um espaço verde para os animais e para, um dia, aprender a jardinar.

Durante meses - se não anos - pesquisei continuamente essa possibilidade, mas sem coragem de dar o passo. A minha irmã era menor e a questão da escola era um dos pontos que me ia fazendo hesitar. O meu emprego era outro. De repente, a miúda estava prestes a concluir o secundário e eu trabalhava em casa. Valia realmente a pena continuar a acordar a meio da noite com o barulho dos convivas que saem do bar que há na minha rua? Valia a pena ser multada a cada três meses por não ter onde estacionar na minha zona, as filas intermináveis para a praia, o calor na selva urbana, o terceiro andar sem elevador, o chiado do metro de superfície aqui à porta, as escaramuças no café no piso térreo do meu prédio?

Decidimos que, surgindo a casa certa - a localidade certa, íamos embora daqui.

Ponderei muitas vezes adquirir uma casinha na aldeia da minha falecida avó - onde fui feliz muitas vezes, mas fica ao fundo da IP3, a 3 horas de Almada, para norte (e preferia ficar a sul do Tejo), não encontrei uma casa com um quintal adequado e conheço as fragilidades da aldeia, as discussões no café, os copos a mais, a enxurrada de visitantes de dentro e fora da aldeia em Agosto, todos estendidos à beira rio com o seu exército de Pinschers. Não havia qualquer incentivo para uma jovem de 18 anos ali.

Comecei a vir para sul, e acabei por aportar em Évora. Depois de meses à procura de casas, de repente uma por um preço decente, a precisar de reparações, como tantas outras. Posso manter a casa em Almada, adquirir a outra, remodelá-la e ficar com um plano B se o «campo» se revelar menos ideal do que imagino.

E é isso. Vou-me embora. Vou escolher os livros que vão e os que ficam. Vou (espero eu) viver no silêncio de uma pequena comunidade, com um nº de habitantes que está muito longe dos 1000. A 20 minutos de um Mercadona, de um centro comercial, de um cinema, de uma capital com ofertas culturais. No meio do calor - Jesus, é o calor que mais receio. Estarei a pouco mais de uma hora de comboio de Almada que, com os tempos, espero deixar de considerar «casa».

Espero poder organizar a minha cabeça, as minhas rotinas - com a ajuda preciosa da medicação para PHDA também -, ser mais produtiva, mais realizada, e andar por aí menos cansada.

Na véspera de assinar a escritura, de partir para essa casinha e de a ver com olhos de minha - com tudo o que a remodelação vai implicar em termos de tempo, stress, dinheiro, tenho medo. Sinto-me a sofrer sucessivos picos de ansiedade nos últimos dias. Estou assoberbada de problemas, de receios, de incertezas. Tenho ficheiros do excel com planeamento, folhas e folhas de cálculos e de calendarização. Há demasiada coisa que não depende de mim neste processo, e prevejo que terei de bater a muitas portas para pôr tudo a funcionar. Sinto-me um pouco agoniada, com vertigens, uma fome constante e um cansaço do tamanho do mundo. Vou ter de me mentalizar que será uma última corrida antes de, por fim, poder descansar à sombra da bananeira. Quero pensar assim. Não quero pensar que este passo que mais uma vez dei à revelia dos conselhos dos mais cautelosos me vai desfazer física e financeiramente. Não sinto que tenha muita margem para me desdobrar mais. Estou naquela fase em que entro no supermercado e vagueio, com um zumbido na cabeça, sem focar o olhar em nada. A medicação para PHDA não está a funcionar, estou completamente enterrada em tarefas. E o antidepressivo não tem dado conta da ansiedade. Dou por mim de dedos a tremer e cabeça a latejar demasiadas vezes.

Estou cansada. Exausta. Mas isto era necessário, e por isso vou lutar com todas as minhas forças e recursos para que se transforme na salvação pela qual eu tanto ansiava.

Respirar fundo. A meta já não está longe.

Só mais um bocadinho.

05
Mai24

Marraquexe - Parte III


celiacloureiro

Termino este relato a viagem mais fora da caixa que fiz até hoje nesta parte III, para descanso dos interessados e alívio de quem se deixa incomodar por aquilo que os outros publicam a respeito da sua vida nas suas próprias plataformas.

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Os últimos dois dias foram dias de repisar o mercado, que já conhecíamos, a Medina e as lojas de souvenirs. Fomos até à avenida Mohammed V, onde havia restaurantes mais "modernos" (isto é, ocidentalizados), onde pedimos menu de pequeno-almoço. Uma vez mais, o menu de pequeno-almoço trazia uma grande variedade de comida para experimentar, alguma menos local (como ovos mexidos ou torradas com abacate), mas também traz especialidades como as saladas marroquinas e os clássicos incontornáveis franceses, como croissants e crepes. Acabou por ser uma ótima opção em termos de custo-benefício, experimentámos coisas diferentes e sobrou sempre imensa comida. 

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Neste ponto, vale a pena refletir resumidamente na influência francesa em Marrocos, que terá tido início na primeira metade do século XIX, quando França, já depois das tentativas de expansão napoleónicas, voltou a focar-se no potencial valor da sua presença no Norte de África. No entanto, foi apenas em 1912 que o Tratado de Fez constituiu Marrocos como um protetorado francês, sendo que o país mantinha a sua soberania, mas França podia fundar cidades, criar feitorias e portos e, portanto, ter mão ativa na exploração económica do território. Em troca, oferecia proteção militar a Marrocos e tornavam-se assim aliados numa época de grande convulsão a nível mundial (a Primeira Guerra Mundial estava prestes a eclodir). Essa influência, que surge tão bem retratada no filme Casablanca, de 1942, permaneceu no território do atual reino de Marrocos até 1956, altura em que o país se tornou independente. Arrepio-me sempre na cena em que os convivas elevam a voz para cantar La Marseilleise no bar da personagem principal e abafam completamente o hino alemão e concluem com gritos de Vive la France! Vive la démocracie! Não esquecer que a Alemanha ocupou a França na Segunda Guerra Mundial, e, consequentemente, estendeu as suas garras até Marrocos. Tudo muito relativo, porque a própria França já dominava, em grande medida, um território que ansiava por autonomia.

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Uma das coisas mais especiais que testemunhei nesse penúltimo dia em Marraquexe, foi a forma como toda a população se moveu em uníssono quando o sol se pôs e bateram as sete horas da tarde. Com o Ramadão, estão moralmente impedidos de comer ou beber até essa hora. Assim, e embora andássemos à procura de lembranças para trazer para casa, vimos o mercado e as ruas adjacentes a transformarem-se numa grande família. Surgiram bancos e almofadas no meio da rua, chaleiras, copos de vidro, por toda a parte fumegava o chá de menta e abriam tajijes, partiam pão, sentavam-se em círculo. Alguns barricavam as entradas das lojas com caixotes e mercadorias, e sentavam-se no interior a partilhar a primeira refeição do dia. Achei uma bela demonstração da cultura local, confesso que me senti um pouco comovida. É curioso como tanto da vida desse povo é vivida a céu aberto, em público. Pareceu-me que há muita camaradagem e entreajuda, mas também testemunhei discussões acesas cujo sentido, por serem conduzidas em árabe, me escapou. Não vi mulheres nesses círculos de convívio, provavelmente, estariam em casa a cuidar das crianças e do lar - não julgo, é o estilo de vida deles, a organização social que funciona para eles. Quem sou eu para os borrifar com os meus princípios ocidentais?

Vi muitas mulheres a conduzirem motas, e homens com os filhos em marsúpios ou simplesmente ao colo. Fiquei com a impressão de que as crianças são muito estimadas na cultura islâmica. No entanto, reafirmo que me incomodou ver meninas de seis ou sete anos a vender pacotes de lenços na rua, com as mães a alguns passos. Fiquei com a impressão de que não há CPCJ atenta, como não há proteção de animais. São coisas que haverão de surgir conforme a mentalidade do povo evoluir - assumindo que será nesse sentido.

Em suma, é preciso ter um bocadinho de estofo para percorrer aquelas ruas, testemunhar alguma miséria, mas também desordem, ferocidade, vitalidade e alegria, e o melhor é deixarmos a sensibilidade em casa. O melhor é não olharmos nem pararmos em cada bancada, se sabemos que não temos espaço para levar candeeiros de tecto, é de evitar esse bate-boca com o vendedor. Eles vão tentar vender - terá sido assim a sua vida toda, é o seu meio de subsistência e estão bem cientes de que o nosso olho ocidental não sabe para onde se virar no meio de tanto exotismo, e que os nossos bolsos carregados de dirhams se abrem com facilidade sempre que nos fazem um desconto simpático. Não estamos habituados a confronto. Não estamos habituados a usar as mãos e os olhos e a postura corporal para enfrentarmos vendedores e lutarmos pelo produto que cobiçamos. Não temos o costume de assumir que o preço pode ser outra coisa que não aquilo que o vendedor definiu. Saí de Marraquexe pronta a regatear, é uma skill menosprezada que já me deu jeito numa noite de dança, quando o senhor das rosas veio vender cada uma a 2€. Arrebatei-lhe 3 por 5€, eheh!

Fiquei com muita curiosidade de conhecer outros destinos em Marrocos, que me parece uma excelente porta para o mundo islâmico. Faltou-nos o deserto "a sério", o vale de Ourika, Casablanca e Fez, onde tenho a certeza que um dia haverei de ir aportar. 

No regresso, obrigaram-nos a imprimir os cartões de embarque (tinhamos indicação de que o aeroporto não aceita bilhetes eletrónicos). Fizeram-nos suportar a fila para o balcão de check-in da Ryanair durante mais de uma hora porque só passamos no controlo para as portas de embarque se tivermos os cartões carimbados pela compainha aérea. É uma oportunidade para controlarem as malas - fizeram-nos encaixar as mochilas nos expositores das dimensões das malas de cabine, muita gente abriu malas e redestribuiu o peso pelos companheiros de viagem. De salientar que a maioria das pessoas naquela fila de regresso à Europa tinha ténis novinhos em folha nos pés - as contrafações a que foi tão difícil resistir e que permitiu que se regressasse com All Star ou Adidas Samba por 25-30€. Pessoalmente, não comprei nenhuns ténis - não teria espaço para isso -, mas foi curioso ver como somos todos tão iguais. 

Uma vez o cartão de embarque carimbado (e ressalvo: a fila demorou mais de uma hora a andar), corremos para o controlo de passaportes, onde ficámos mais uma hora. Duas horas depois, chegámos à sala de embarque a 20 minutos da partida do voo, sem conseguir imaginar como as dezenas de pessoas que ficaram atrás de nós na fila para o balcão de check-in e para o controlo de passaportes se haveriam de safar. A verdade é que, a poucos minutos da partida do voo, começaram a apressar-nos para o interior da aeronave, controlando os nossos passaportes e os cartões de embarque carimbados, e mal sentámos os rabiosques nos assentos já o avião estava a recuar para se lançar aos céus. Foi um último pôr do sol em África. Para trás ficou a areia, o vento e as palmeiras.

Comigo, veio a vontade de regressar. Um dia, quem sabe.

Maktub.

 

Dicas práticas:

- Documentos: Passaporte com pelo menos 6 meses de validade;

- Dinheiro: Teria solicitado dirhams no meu banco com umas duas semanas de antecedência, porque haverá comissão de mínimo 5% do valor levantado no multibancos em Marrocos;

- Tomada elétrica: Igual à europeia;

- Há quem diga que convém levar probióticos e antidiarreicos, no meu grupo ninguém passou mal (eu passei, mas já ia doente daqui). Nos meses de verão, consta que há mosquitos, talvez levar repelente;

- Levar os cartões de embarque impressos;

- Apresentação no aeroporto para o regresso pelo menos 3 horas antes (fila no balcão de check-in e fila no controlo de passaportes);

- Comprar antecipadamente uma mala de cabine vazia para trazer as maravilhas que vendem por lá (a própria mala compraria por lá, ao desbarato);

- Levar protetor solar;

- Marcar todos os serviços possíveis antecipadamente - transfers, tours, hotel (é provável que queiram o pagamento em dinheiro);

- Comprar por lá um cartão com dados móveis (o meu telemóvel esteve 10 minutos, sem exagero, com o roaming ligado. A conta foi de 20,00€).

- Desligar a cabeça.

- Aproveitar.

 

 

 

17
Abr24

Marraquexe - Parte II


celiacloureiro

Ficámo-nos pelas tajines num terraço sobre a praça. Descobri que, se o menu apenas anunciasse "tajine de beauf", podem crer que não há acompanhamento. Fui obrigada a pedir um bocado de couscous para engolir aquele pedacinho de carne, por sinal bastante tenrinho. Será por isso que quase todos os marroquinos se saíam com um batata frita quando descobriam que éramos portuguesas? Será que outros portugueses percorreram o caminho antes de nós e, quando se levantava a tampinha de barro do tajine, ficavam a olhar para dois cubinhos de carne cheirosa e apetitosa rodeada de molho fumegante, mas nem um arroz, nem uma batatinha a acompanhar?

Enfim, saltemos das tajines para o dia seguinte, durante o qual descobrimos que nada sai como previsto em Marrocos. Para começar, saímos cedo até às lojas que estavam abertas ao longo das ruas sinuosas que envolvem a praça principal. Já não estavam os 37 graus do dia anterior, por isso pudémos respirar. Depois de passarmos por brincos, luminária, tapetes, marroquinarias, sabonetes e perfumes em barra com profusão, e de inalarmos o perfume da hortelã, do âmbar e do sândalo a cada esquina, confirmámos que são quase exclusivamente homens que trabalham em comércio, mas também nas oficinas de corte e costura de cortumes, que se viam para lá das portas entreabertas ao lado das lojas. Há muito menos mulheres a trabalhar. Por exemplo, nunca fomos servidas por mulheres em nenhuma refeição, apenas vi duas jovens na caixa de restaurantes, mas nunca entre as mesas. Vi mulheres a guardar casas de banho, a recolher o pagamento de parques de estacionamento e a cuidarem dos quartos no nosso hotel. Nunca vimos mulheres no comércio, nem atrás das barraquinhas que vendiam pastelaria local nem sumos espremidos na hora.

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Por volta das 11h30, decidimos tomar um pequeno-almoço tardio perto da praça principal, num restaurante com uma decoração muito bonita, de nome Taj (havia vários com esse nome). Pedimos um menu de pequeno-almoço, que parecia bastante completo, com omolete, panquecas, pão tradicional, sumo natural e chá de menta, que nunca pode faltar, e também um sortido de doces locais. O total ficaria por cerca de 150 dirham. Quando a comida chegou - e o serviço foi bastante demorado em quase todos os restaurantes que frequentámos - perguntei-me pelos doces, mas assumi que seriam as tigelinhas com mel, doce de damasco e as panquecas com amlou, uma espécie de nutella marroquina, melhor ainda do que a original, segundo o meu gosto pessoal. Além disso, considerei que a espécie de legumes em marinada - cenouras, beringela, pepino (?) - como parte do menu do pequeno-almoço, de modo que começámos imediatamente a molhar o pão nos potes. A dada altura, aproxima-se o garçon para nos comunicar que trocou o sortido de doces por um sortido de saladas marroquinas, porque os "doces são para a sobremesa". Em suma, não mandamos em nada. Mas ríamo-nos porque fomos nesse espírito, deixámo-nos ir. Nunca me pareceu que estas mudanças fossem por maldade o ganância.

Passei a tarde a descansar no hotel, porque alguns dias antes da viagem tinhamos marcado um jantar no deserto de Agafay através da própria booking. Preferimos marcar tudo antecipadamente por uma questão de organização e gestão de custos. Ainda assim, e com o voucher impresso para nos virem buscar às 17h00 junto ao hotel, houve problema. Na madrugada anterior, recebi um "Hi" de um número marroquino no Whatsapp, que bloqueei ao acordar por ir ao encontro de outros "Hi" que recebo frequentemente de números da Nigéria e do Senegal e etc. Entretanto, estávamos no quarto de hotel e eram 16h00, com as jovens acabadas de chegar das compras no mercado a tomar banho e a perfumarem-se, quando decidi descer ao pátio inferior para apanhar um bocadinho de wi-fi. Comecei a ser bombardeada por chamadas e mensagens de Whatsapp da agência que organizava o tour, a dizer que, por ser Ramadão, teríamos de partir às 15h30 para apanhar o pôr do sol no deserto. Ora eu tinha fechado o tour e imprimido o voucher há nem uma semana, mas nem cheguei a enervar-me demasiado. Chamei as meninas e informei que estaria no local em 10 minutos, era o melhor que conseguia.

Fomos a correr debaixo do sol africano até à esquina onde era suposto irem apanhar-nos às 17h00, a perguntar-nos como era possível serem ainda 16h00 e já termos perdido a van. A dada altura, e perante a demora da guia - que não estava lá -, comecei a perguntar-me se não iria dar-se o caso de eles terem partido efetivamente às 15h30 e de estarem agora a voltar para trás por causa de nós. Disse-nos a agência, por Whatsapp, que eu tinha sido avisada, mas escolhi bloquear a guia. Enfim, situações. Confesso que estava animada por ser uma guia mulher, estimei que iria tratar-se de alguém com fibra. O meu pior receio confirmou-se: após quase meia hora de espera, para uma van do outro lado da avenida, apita e as pessoas põem-se a acenar-nos. Tinham, de facto, voltado para trás. Senti-me tão mortificada que subi para o veículo já com o telemóvel em riste, a dizer que o pick-up era às 17h00 perante os outros turistas. Claro que estavam lá as três portugueses trombudas e barulhentas do voo de ida, mas isso é a teoria que defendo no meu romance "Até os Comboios Andam aos Saltos". Se nos incompatibilizarmos com alguém, podem crer que havemos de nos cruzar muitas vezes.

A guia não gostou da nossa justificação, era uma jovem cheia de garra que me encostou logo ao canto e me disse que eu é que a tinha bloqueado. Ripostei em inglês que apenas o tinha feito por causa das fraudes com nigerianos e argelinos, e ela cortou-me com um:

"I don't care about you, you can leave if you want. People from Nigeria and Argelia are good people". Comi e calei, quem me manda generalizar? Gostei da atitude e prometi a mim mesma que, durante a viagem, iria pedir-lhe desculpa pelo meu nervosismo. Só não queria que todos nos detestassem na van por estarem prestes a perder o pôr do sol no deserto por culpa nossa. Como guia que fui, deveria saber que jamais se pode pôr um guia contra o grupo, o guia é o nosso principal aliado no tour, e esta acabou-se por se revelar isso mesmo.

As estradas não eram espetaculares e, logo à saída, vimos um motoqueiro no chão rodeado de outros motoqueiros, e não percebemos se estava vivo ou morto. Toda a gente anda de mota por ali, até casais com o bebé e o carrinho de passeio debaixo do braço, não me pareceu nada seguro, mas eles lá se orientam. Às vezes, eram aos quatros montados num motociclo.

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A primeira paragem foi numa cooperativa de óleo de argão. O nosso furgão - vou chamar-lhe assim, apesar de ter ar condicionado e de ser bastante confortável, por uma questão de comédia - parou junto a muitos outros absolutamente iguais. Fomos conduzidos para um jardim onde já havia várias mesas postas. Serviram-nos azeite marroquino - mais intenso do que o alentejano, adorei -, amlou e óleo de argão puro, que usam para temperar saladas (mas não para cozinhar). Molhámos o delicioso pão deles nos potinhos e pusémo-nos à conversa com duas italianas e duas amigas da Malásia. A minha irmã tinha lido A Guardiã do DestinoThe Rice Mother no original, sobre a invasão da Malásia pelo Japão, e estabeleu-se ali uma ponte para a nossa conversa. Eu também li esse livro, até a nossa avó leu esse livro, e foi muito especial estarmos ali, pessoas de mundos tão distantes, unidas sobre azeite marroquino em torno de um livro que li há 20 anos. Raios, foi mesmo. À saída, vimos as mulheres marroquinas a usarem uma espécie de mó para extrair o óleo do fruto da árvore do argão. Pareceu moroso, como tudo o que é tradicional e que usa o nosso suor como força motriz. Comprei um frasco de óleo de argão puro por 100 dirham e troquei algumas palavras com a guia. Pedi-lhe desculpa pela minha atitude e mostrei-lhe os "Hi" bloqueados no meu telemóvel, para ela entender a minha desconfiança. Disse-lhe que também trabalhei como guia e que admiro muito essa ocupação, sei como é cansativa. Com um sorriso e uma espécie de abraço, posicionámo-nos do mesmo lado.

À chegada ao deserto de Agafay - que os marroquinos dizem que não é o verdadeiro deserto, porque tem muitas pedras em vez de apenas areia e dunas - começámos a ver a poeira levantada pelas Moto 4. Um exército de Moto 4 logo à entrada mas, felizmente, à medida que avançávamos por estradas de terra batida, com nada que não aquela paisagem agreste à esquerda e montanhas distantes à direita, apercebemo-nos do isolamento em que estávamos a mergulhar. Bem no meio, havia uma espécie de acampamento montado, com tendas, almofadas, mesas postas com almofadas para nos sentarmos no chão, camelos acorrentados e um restaurante, casa de banho e até uma piscina. Havia também uma espécie de uma pira, um poço que me despertou curiosidade e que depois descobri que era o palco para o espetáculo - enfeitiçante - de fogo.

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Pediram-nos que guardássemos lugar - questão delicada, há muita ânsia por conseguir bom pouso para o seu grupo por parte dos guias, questão que levou a discussões acesas em que a nossa guia meteu os matulões a um canto - e depois a guia veio buscar-nos para irmos andar de camelo. Seguimos com o restante grupo - curiosamente, apenas não conseguimos conversar com as três portuguesas e um casal também português, que por vestir Lanidor nunca se dignou sequer a olhar na nossa direção. Paradas perante os camelos, o nosso coração de ocidentais começou a apertar-se. Não quero julgá-los, compreendo que quando se vive numa área sem nada mais a oferecer e sem bocas para alimentar, os camelos configurem uma fonte de rendimento aparentemente inofensiva. No entanto, não consegui participar naquele negócio. Havia camelos juvenis ou até mesmo bebés a seguir as mães, que iam acorrentadas. A dada altura, quando os camelos se baixaram para os turistas as montarem - incluindo das três amigas portuguesas e o casal que nunca mostrou os dentes - um deles soltou um urro que me destabilizou. Não cheguei a chorar nem a fazer nenhum tipo de discurso às pessoas que estavam comigo - nenhuma de nós quis ser cúmplice daquilo, nem nós as quatro, nem as italianas. Ficámos por ali a tirar fotos umas às outras, deixando os camelos na paz possível de quem percorre o mesmo caminho para a frente e para trás todos os dias, sabe-se lá quantas vezes por dia. Evoquei uma vez mais o "terror" que temos a camelos para não os montarmos e a guia não insistiu.

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Seguiu-se o jantar - o melhor couscous e tajine que comemos em Marraquexe, supostamente preparado por residentes locais. O que é certo é que a comida era verdadeiramente saborosa, e empurrámo-la para baixo com chá de menta. Seguiu-se um bolo de coco fofo e húmido que comemos já ao som da música berbere. A magia começou quando a noite caiu e as fogueiras se acenderam. Houve qualquer coisa de primitivo em ver pessoas a dançarem à volta da fogueira, ao ritmo daquela música hipnotizante e, em simultâneo, bastante animada. Pensei no meu próprio passado civilizacional, quantas vezes não se terão os homens e mulheres reunidos em redor de uma fogueira para cantar e dançar, porque não havia outro tipo de animação possível à noite, e era mais seguro estar-se junto diante das chamas, com as feras ao largo.

Voltámos para Marraquexe numa espécie de comboio de várias vans, a ouvir músicas internacionais. A alegria era tanta que concordámos em sair com as amigas da Malásia e a mãe e filha italianas, e pedimos para sermos todas deixadas junto à Medina. A partir daí, percorremos aquela que batizámos como "a rua dos ténis", porque era o paraíso da contrafação. Por toda a parte estavam expostos os modelos mais recentes de ténis de renome internacional, disponíveis por menos de 400 dirham. Um marroquino muito simpático quis acompanhar a italiana até um bar de shisha, e eu já imaginava que no final estaria à espera de uma gorjeta - outro aviso que ignorámos. Na verdade, penso que acabou por não levar nada - talvez uma comissão do bar para onde nos levou, visto que ficou a conversar com a recepcionista quando nos sentámos? Mas, se acham que pudémos fumar shisha, desenganem-se. Não havia shisha - consta que era preciso uma licença especial, como para o álcool. Não há nada na vida dos marroquinos/islâmicos que tenha qualquer ligação a álcool, Alá os abençoe. Não senti falta, mas vi o desespero sentado ao meu lado quando, ao terceiro bar experimentado, a única opção continuava a ser cerveja sem álcool. Bebi um cocktail sem álcool - Bora Bora -, absolutamente delicioso, principalmente no preço: 35 dirham (menos de 3,50€).

Conversámos sobre coisas de mulheres - amor e sexo, independência e oportunidades - à volta do globo. Trocámos contactos, tirámos uma fotografia todas juntas. Despedimo-nos com alegria e orgulho mútuo.

E assim terminou o segundo dia em Marrocos, cansadas mas felizes, uma vez mais seguras enquanto caminhávamos sozinhas pelas ruas escuras e cheias de animação - de cores, de brilhos, de vozes e de música - até ao nosso hotel na Medina.

10
Abr24

Marraquexe - Parte I


celiacloureiro

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Há muito que estava curiosa em relação a Marrocos. Sentia uma estranha proximidade para com o país cujas areias engoliu o nosso saudoso D. Sebastião, e a partir do qual nos chegou a civilização muçulmana em 711, com as laranjas e o zero. A viagem foi planeada um bocadinho em cima do joelho: decidimos que seria o presente ideal para celebrar o 18º aniversário da minha irmã. Cerca de mês e meio depois estávamos a embarcar, só mulheres, para o Norte de África. Permitam-me pensar assim  Norte de África, adoro a ideia de pisar o continente Africano.

Em Lisboa, tudo se passou com relativa tranquilidade, apesar de o voo sofrer um atraso de uma hora. Íamos com os vouchers dos transferes impressos, com os respetivos contactos das agências que iam fornecer os serviços, e sem grande conhecimento do que iríamos encontrar, à exceção dos comentários lidos no Reddit e de algumas trocas de informação com pessoas que já visitaram o destino e que diziam para não se comer nada cru nem dar muita conversa aos vendedores. Passei dias a treinar o meu La, shukran, porque supostamente um "não, obrigada" em arábico seria melhor acatado do que um simples "Non, merci". No entanto, como em tudo na vida, nada sai de acordo com o imaginado.

Deixem-me começar por dizer isto: Marraquexe é uma cidade altamente turística, portanto diria que segura. Sim, é possível experienciar um bocadinho da cultura muçulmana, especialmente nós, que fomos no período do Ramadão, sim, convém estar atentos e sim, há choques culturais e coisas que me custaram a digerir, mas nem por um instante me senti insegura. Nem quando me vi no meio de um jardim deserto com três miúdas e quatro ou cinco matulões de túnica ao nosso redor. Mas já lá vamos.

À chegada ao aeroporto de Menara, a fila para o controlo de passaportes foi demorada, ficámos por lá mais de uma hora de pé, com calor e cheias de sede. Como o voo já tinha partido com atraso, dei o transfer por perdido. No entanto, assim que me conectei à rede gratuita do aeroporto, recebi algumas mensagens de Whatsapp por parte da agência que ia realizar o transfer e do assistente que estava à nossa espera desde a hora esperada. Reservámos o transfer aqui e suponho que o serviço seja distribuído pelas agências parceiras. O motorista perguntou-nos quanto tempo ainda íamos demorar e esperou por nós até ao final. Em suma, deveríamos ter chegado às 08:15, hora local, e chegámos junto dele por volta das 11:00. Fomos conduzidas a uma carrinha com o logo da agência de viagens (HL Travel). Conversámos em inglês e francês sobre a cidade, a nossa futura estadia, o Cristiano Ronaldo. Todos os marroquinos e conhecem e quase todos torcem pelo Benfica. O motorista chegou mesmo a parar junto a um banco (há caixas ATM por toda a parte, mas as comissões são mais baixas nas dos bancos) para podermos levantar dinheiro. Deixou-nos junto à Medina, porque há muitas ruas intrasitáveis em Marraquexe, e pensei que seria um martírio dar com a rua do nosso pitoresco Hotel Salsabil, que pratica preços fixos pelos quartos e que tem triplos e duplos. Em menos de três minutos, tinhamos dado com o beco e estávamos ao balcão diante de um senhor com um sorriso muito dócil que, mais tarde, descobri chamar-se Said e ser um dos irmãos que cuidam do hotel. Deixou-nos fazer check-in de imediato e usar o quarto, facultou-nos a password do wifi e levou-nos para um terraço com bunganvílias e vista para a Medina, onde nos serviu thè à la menthe

Neste ponto já estava bastante relaxada, o contacto foi em tudo "ocidental", apesar de termos feito questão de nos apresentarmos com alguma modéstia (sem umbigos à mostra) e de termos visto imensa gente com trajes islâmicos pela janela do táxi. Por essa altura, também já era evidente que a palete de cores seria um "vermelho Marraquexe", uma variação mais diluída do vermelho de Pompeia, uma espécie de terracota que é a tela perfeita para a profusão de cores com que as ruas, pejadas de comerciantes, estão ornamentadas. Foi o dia mais quente, estavam cerca de 35 graus e o sol é de certa forma implacável naquela latitude.

Nesse dia, fiz uma curta visita às ruas do mercado que se estende em redor da praça Jemaa

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El Fna, a praça principal que tem o seu pico de atividade depois do pôr-do-sol e que cheira a hortelã. Vimos inúmeros produtos exóticos pela primeira vez, sentimos cheiros desconhecidos e fomo-nos apercebendo do ritmo das coisas. Em primeiro lugar, pouquíssimos preços são fixos ou estão afixados. Tudo é negociável, se estivermos dispostos a perder um bocado a regatear. Também ia com receio de parar para avaliar coisas só por curiosidade, porque tinha lido que iria materializar-se alguém ao meu lado para mas impingir. Acontece que muito pouca gente foi realmente insistente ao longo dos quatro dias. Só vivemos um episódio em que de facto o senhor tentou insistir e nos seguiu pela rua, mas não havia volta a dar: não íamos dar 200 dirham (c. de 18€) por 2 pulseiras que custam 3€ na Parfois. Não senti que, com isso, nos quisessem propriamente enganar. A minha mãe vendia nas feiras e sei como era importante ler os potenciais clientes e perceber quais os que estariam dispostos a apartar-se de uma boa quantia sem que isso lhes causasse moça enquanto, por outro lado, se cedia a um "preço de amigo" quando havia urgência em despachar a mercadoria ou contas inadiáveis a pagar. Para esse fim, basta evitar gritar Lindo! quando vemos algo de que gostamos, o que aumenta significativamente o valor do produto, e torcer o nariz quando a nossa amiga nos mostra os brincos que está a pensar comprar, o que resulta numa descida quase imediata do valor. A verdade é que uma de nós comprou um camelo miniatura de madeira por 50 dirham (c. de 4,60€), que noutro dia conseguimos arrebatar por 1 dirham (0,92€). Na mesma fileira de bancas, pediram-me 200 dirham por um artigo que comprámos mais adiante por 100. Por toda a parte, julguei tropeçar em sabonetes incrivelmente perfumados, mas depois descobri que são, na realidade, uma espécie de perfume sólido. Conseguimos obter cada por 80-100 dirham, e foi a única coisa do mar de quinquilharias que me entusiasmou realmente: o cheirinho intenso a âmbar e sândalo e jasmim e almíscar, bem como os chás de verbena, camomila, verde, hibisco.

Também foi evidente que a cidade vive de comércio e, para isso, os turistas são fundamentais. Fiquei com a impressão de que não seríamos de modo algum incomodadas, a bem de manter a fama de cordialidade e segurança. Por outro lado, o povo marroquino em si pareceu-me extremamente afável, acolhedor e inclusivamente atencioso, sem ser bajulador. Achei que há muita honra em regatear um preço e, depois de acordado, fornecer o troco exato sem mais deliberações. Por duas vezes vi-os abandonar a banca e correr pelo mercado com a nossa nota na mão, em busca de alguém que a trocasse, e nunca senti que "não voltaria a vê-la". Recebemos sorrisos, elogios a Portugal, sius e até um "É uma casa portuguesa, com certeza".

Nesse primeiro dia, enquanto me recolhi no frescor do quarto, as meninas foram até um hotel de 4* onde lhes foi dito que poderiam usar a piscina por 250 dirham cada. O nosso anfitrião telefonou para o balcão e regateou o preço, e acabaram por as deixar entrar por 200. A minha irmã ficou espantada (e francamente deliciada) por ter de discutir o preço da utilização da piscina de um hotel de 4*. Passaram o dia entre outros portugueses e espanhóis, de biquini, a tomar bebidas (sem álcool) ao sol.

O lado menos positivo foi o facto de realmente termos de estar atentas a cada pormenor do discurso. Isto é, parece-me que, uma vez estabelecido um acordo oral, o mesmo será cumprido. Porém, se puderem ocultar alguns detalhes, o mal é nosso por estarmos a pensar na morte da bezerra. No segundo dia decidimos ir visitar os jardins Majorelle, coisa que não me entusiasmava por aí além, e que ficava a cerca de 40 minutos a pé da Medina. O nosso anfitrião aconselhou-nos a chamar um táxi e informou-nos de que o preço justo seriam 50 dirham. O primeiro taxista que encontrámos na Medina disse-nos que fazia 75. Dissemos-lhe que estávamos informadas de que o justo seria 50. Do outro lado da janela, em segunda fila, O Berbere disse-nos que nos levava lá pellos 50 acordados. Mostrou-nos os valores afixados no vidro do táxi: Jardins Majorelle, 50 dirham. Durante a viagem, não pudémos verificar mas, se dizia que assim era, que estava escrito, tudo bem. Avisou-nos dos taxistas que praticam preços à descarada.

Falámos do Cristiano Ronaldo, do Ramadão, dos berberes e dos árabes e do facto de se falar espanhol numa qualquer região no norte de Marrocos. A dada altura, começaram os conselhos para os quais nos tínhamos preparado psicologicamente. Disseram-nos que os Jardins Majorelle cobravam mais ao fim-de-semana, posto que íamos sem bilhete. Seria mais de 20 euros por pessoa, e estaria apinhado de turistas. Foi tão convincente que nos levou até à rua que lhe dava acesso, onde se viu um mar de reformados e de jovens, bem como a polícia aquartelada a impedir a passagem a mais veículos. Ofereceu-se para nos levar a outro jardim "muito mais giro", e ainda por cima gratuito, ao qual "teríamos de chegar de túnica e camelo e podíamos tirar uma foto". Eu não sou esse tipo de turista, o que gosta de se mascarar de local. Trabalhei nessa indústria durante anos e acho que o turismo deve, acima de tudo, causar o mínimo de impacto no local visitado e, sempre que possível, contribuir positivamente para o desenvolvimento local. Perguntámos se o outro jardim ficava muito longe, ele disse que era praticamente a mesma coisa e que esperava por nós para nos trazer de volta. Isso já começou a parecer-nos demasiada generosidade. De mencionar que tinha acabado de levantar uma soma de dinheiro considerável, posto que teríamos de pagar o hotel em numerário. O belo jardim prometido chamava-se La Palmeraie (ei-lo aqui), mas também nenhuma de nós tinha internet para compreender a onde nos estávamos a dirigir. Decidimos confiar. Fomos tontas? Talvez, mas nunca me senti em perigo. Aliás, olhámos umas para as outras cientes de que fomos a Marrocos para ser enganadas e levar a coisa na desportiva. 

Antes de chegarmos, O Berbere aconselhou-nos a visitar o vale de Ourika no dia seguinte, e fez-nos um preço de 60,00€ pelo dia inteiro, que sabia ser bom porque tinha consultado o das agências, que era de cerca de 90,00€ para as 4. Poderíamos almoçar à beira de um curso de água e fazer um passeio da natureza, e ainda espreitar as Montanhas Atlas. Estávamos mais ou menos convencidas a ponderar, dependendo de como corresse o passeio com o nosso "guia-taxista" privado. Mostrou-nos os valores afixados no vidro do táxi: Jardins Majorelle, 50 dirham. Durante a viagem, não pudémos verificar mas, se dizia que assim era, que estava escrito, tudo bem.

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Parámos naquilo que só posso descrever como um descampado com palmeiras de aspeto bastante sofrido, estilo "armadilha para turistas". Descemos do táxi e O Berbere fez um gesto para o seguirmos. Perguntámos-lhe onde era a entrada de tal "jardim", mas era aquilo o jardim. Aquelas palmeiras tristes e os camelos lânguidos a ruminar. Naquela espécie de oásis no deserto, estavam uns quantos matulões sentados em redor de qualquer coisa, e um senhor mais velho que nos mostrou a seleção de túnicas sebosas que iríamos "ter de vestir"numa corda entre duas palmeiras, para seguirmos até à pressuposta entrada do jardim em pompa e circunstância. Ficámos sempre a olhar para o além, para os muros ao fundo, a perguntar-nos onde raio ficava o tal jardim, e porque seria tão longe dali que não podíamos ir a pé, porque "tínhamos" de ir de camelo. Neste ponto, ressalvo que o francês não é sequer a minha terceira língua, é a quarta, e que posso ter compreendido alguma coisa mal. No entanto, penso que o mais provável é que o taxista tenha sido vago de propósito. A dada altura, estou a ouvir a minha professora de história a lembrar-me de que não há almoços grátis enquanto nos enfiam as túnicas pela cabeça sem nos tocar, e nos ajeitam os lenços na cabeça em estilo... berbere?

Quando demos por nós, estávamos as quatro a olhar umas para as outras naquela fatiota, e o taxista chamou-me para a lateral do carro para me dizer que depois de andarmos de camelo teríamos de dar a contribuição de 75 por pessoa pelo passeio e pela túnica. Assim que regresso para perto da minha irmã, ela nem precisou de abrir a boca: quanto?, é o que diziam os seus olhos.

Levam-nos para junto dos camelos e, ao primeiro olhar para os pobres animais, já sei que não vou ter coragem de ser conivente com esse tipo de exploração. Prometi a mim mesma que ia deixar a sensibilidade de ocidental na Europa, mas não tive coragem. Senti que aqueles camelos só precisavam de uma coisa de mim: que os deixasse em paz. Todas nos recusámos a montá-los mas, para não dizer que achamos aquilo um tanto desumano, dissémos que tínhamos muito medo dos camelos, muito medo mesmo. Passaram um bocado a tentar convencer-nos de que devíamos tocar-lhes, eram muito dóceis. Em momento algum me senti em perigo, e diria que sou hipersensível ao perigo, mas também não me pareceu muito seguro estar ali no meio de homens cujos braços me percorriam do joelho ao pescoço a negar-lhes a minha bolsinha cheia de dirhams. Recusámo-nos veementemente e o taxista acabou por dizer que a escolha era nossa. Entretanto, o senhor que não falava francês disparou números em francês, 250 por pessoa para andar de camelo. E nós paradas diante dos bichos, a recursar-nos. 200, pronto. Nada feito. No final a coisa já ia em 75 dirhams por pessoa, como o taxista começara por anunciar, mas tive de lhe dizer no meu francês mais polido que não era uma questão de dinheiro. Simplesmente não conseguíamos ultrapassar o nosso pavor a dromedários. Afinal onde era a porta do jardim? E de quanto tempo precisávamos para o visitar? Porque não havia ali mais táxis, só nos restava regressar com ele.

Com um revirar de olhos e um bufo muito universal, o senhor das túnicas e dos camelos desistiu, enquanto o taxista nos mandou dar uma volta pelo "jardim" que ficava à nossa espera durante o tempo que quiséssemos. 

Assim que começamos a afastar-nos, digo à minha irmã que era para aquilo que estávamos ali, a experienciar outro mundo. Para ser enganadas e para nos rirmos disso. Ela esticou a túnica e riu-se: Como é que isto aconteceu? Como é que acabei num descampado com este traje? Tirámos algumas fotos e o quarto elemento, ainda mais aluado do que eu, perguntou então onde era o jardim. Deve ter sido aí que começámos a rir-nos às gargalhas e percebemos que o jardim era aquilo. aquilo. Combinámos que, ao regressar, íamos dar 50 dirham ao senhor das túnicas e estava ótimo. Nota em riste para não termos de abrir as malas entre tantos pares de olhos, e enfiei a nota na mão do senhor no instante em que nos livrámos das túnicas. Percebi que estava desapontado e começou a discutir com O Berbere, que nos disse que era 50 por cada, e não 50 total. E eu, que não tinha acordado nada, virei-me e voltei para dentro do táxi com elas. O Berbere seguiu-nos meio aborrecido, porque o passeio não tinha sido tão lucrativo como tinha imaginado que seria. Disse-lhes que eram estudantes, esclareceu. Como se não estivessem fartos de saber que as pessoas vão até ali ao engano.

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Foi então que considerou que era boa altura informar-nos de que os Jardins Majorelle eram 50 dirham, mas La Palmeraie era 100, por ser mais distante. Apontou para o vidro e dessa vez lemos mesmo: estava certo. Era 100, ele bem que podia ter avisado quando sugeriu a mudança de trajeto. A minha irmã começou a remexer na roupa e percebi que pensava o mesmo do que eu. Disse-lhe, no português mais tortuoso que consegui - porque ali todos parecem falar francês, inglês, espanhol, árabe e mesmo português - que, se ele aceitasse os 100 total, iríamos no tour ao vale de Ourika no dia seguinte. Se não os aceitasse, nada feito. Certo que, neste ponto, devíamos ter simplesmente afastado essa possibilidade por completo. Mas, é como vos digo, senti que havia honra nestes caminhos sinuosos para "ludibriar" os turistas, porque o prometido é sempre devido, é só estarmos atentos ao que se promete.

Chegamos à Medina, e portanto ao nosso hotel - vivas, com o dinheiro mais ou menos intacto e profundamente aliviadas, O Berbere teve de se dirigir à minha irmã para receber, e ela sorri bem menos do que eu, Alá a abençoe. Passou-lhe 100 e, após um compasso de espera, ele disse-lhe que 100 era por percurso. Passou-lhe os outros 100 e ele nem insistiu sobre o dia seguinte, disse apenas que estaria por ali se quiséssemos encontrá-lo.

No total, gastámos cerca de 23 euros entre as quatro para fazer uma panorâmica, ver camelos tristonhos, palmeiras delapidadas, o acesso ao Jardim Majorelle e tirar umas fotos mascaradas. Não achei totalmente mau, foi uma manhã bem passada.

Tirando esta experiência em que estivémos com menos mão no leme, o resto passou-se com bastante tranquilidade. Os restaurantes oferecem menus marroquinos com muita inspiração francesa, a doçaria é maravilhosa, comemos tudo, inclusive alimentos crus como laranja, cebola, alface e tomate. Ninguém passou especialmente mal (eu passei, mas já ia com uma virose daqui). 

Nessa primeira noite saímos para jantar num terraço em torno da praça principal e revisitei as tajines, que já tinha comido em Paris há dois meses. Viva a Schweppes citron e continua (...).

 

08
Mar23

What is a woman?


celiacloureiro

Vivemos num tempo em que se celebra o dia da mulher mas se receia definir o que é uma mulher. Escolho este dia para deixar a definição de mulher.

A mulher é o ser do sexo feminino da espécie Homo Sapiens Sapiens, o que sangra todos os meses e que continua a trazer ao mundo a continuação da espécie por via de suor, dor e lágrimas, porque “a natureza não se interessa pela dor, interessa-se pela reprodução, e continuamos a reproduzir-nos.” A nível sociológico, a mulher é uma coisa diferente em locais diferentes do globo. Foco-me em ser mulher aqui.

Nascer mulher aqui é descender de uma longa linhagem de desconsideração e por vezes até abusos. É nascer-se o sexo mais fraco num mundo pensado para os homens mas que temos vindo a conquistar aos poucos. É crescer com os pais e a família a imputar-nos responsabilidade, arrumação, asseio, a oferecerem-nos bonecas, nenucos, cozinhas e panelas. Enquanto isso, os nossos irmãos são crianças em paz. Sujam-se e brincam, e nada lhes fica “mal”. Por volta dos 12 anos (cada vez mais cedo agora) surge o período, e as regras voltam a apertar-se. “Agora és uma mulherzinha, tens de te comportar, não podes andar por aí feita maria-rapaz”. Em cima disso, há as dores menstruais, a endometriose tardiamente diagnosticada, o coro de vozes “passamos todas pelo mesmo, é normal”, e a compreensão relativamente recente de que não é. É passar a adolescência a ouvir “vê lá, não engravides”, porque a responsabilidade, aqui palavra de ordem, é dessa menina e não do rapaz, pois a sociedade já assume que esse deve é divertir-se, curtir a vida e atentar no futuro, sem obstáculos. É ser adolescente e ouvir constantemente comentários sobre o nosso corpo. Eu cresci com “é baixinha” e “é só pele e ossos, ela come?”. E ainda “não tem quase maminhas”, o que é imperdoável segundo a estética da imprensa. O meu irmão, a meu lado, “era alto e tinha olhos lindos.”

Ser mulher foi especialmente difícil na adolescência, e sobretudo quando se é pobre e não havia dinheiro para depilações a cera em salões, e as atividades da escola incluíam idas à praia e passeios de barco no Zêzere. Lembro-me especialmente desse passeio porque usei uma lâmina nas pernas e deixei-as como um cenário de massacre. Passei o dia quente de calções mais atenta às feridas nas pernas do que aos remos. Profundamente embaraçada. Imagino que os rapazes não passem por isso, se o fizerem é sem pressão social e por isso, mesmo que desgracem as pernas, o dia segue com naturalidade. Ou ir de férias e não aproveitar a piscina porque, apesar de toda a gente dizer que o tampão é seguro e higiénico e fácil de colocar, não é assim para todas. Ser mulher é ter uma despesa extra mensal com analgésicos e parafernália higiénica.

É engravidar sem o desejar e ter a opção de assumir uma criança que não se quis - eventualmente amá-la - ou ser mutilada para a remover, e possivelmente ter de viver com isso na consciência para sempre.

Ou não poder engravidar, e submeter-se a tratamentos e exames de diagnóstico, muitos deles dolorosos, enquanto o escrutínio ao parceiro é deixado para último recurso.

Tendo crianças, é esperado que seja a sua cuidadora máxima. E isso de ser o esperado já tem um grande peso. Não tendo crianças, por vezes é olhada como se houvesse algo de errado consigo por simplesmente não acalentar o desejo de ser mãe.

É ir a consultas de rotina e perguntarem-nos "alguma vez engravidou?", e ter de lidar com o painel emocional que se acende perante essa questão. Posso? Não posso? Quis? Não quis? Não, e tirei. Sim, e perdi-o. 

Ser mulher é ganhar peso mais tarde e ninguém se coibir de o mencionar. Ou as rugas que vão surgindo. Ou os cabelos brancos. Vão sugerir-nos cremes e cabeleireiros e tintas e soluções para “esconder” a fealdade que vai engolindo a mulher que envelhece naturalmente. No meu caso, é perguntarem-me várias vezes se estou grávida, quando estou apenas mais gorda, ou inchada.

É ter 33 anos e por isso estar numa sala de espera a aguardar uma ecografia mamária, porque além do patriarcado o cancro da mama é um grande inimigo do sexo feminino.

Por volta dos cinquenta, ser mulher é enfrentar as provações da menopausa, de sentir que somos uma flor que murcha, lá se vai a frescura, o sangue, os atrativos. Chegam os afrontamentos, as indisposições. O homem? O homem envelhece como o vinho, fica mais atraente com a idade (ou melhor, quando alguém se manifesta, é para este tipo de reparo, não para “estás a relaxar-te. Queres o contacto de uma clínica de implantes capilares? Já experimentaste aquele creme y? A barba branca fica-te mal, não dá para pintar?”

E fiquemo-nos por aqui. Não posso considerar isto tudo e recusar-me a responder à pergunta “What is a woman?”

Para mim, ser mulher é isto tudo. E isto merece ser dito. Não pode ser varrido para baixo de nenhum tapete. Não pode ser silenciado por receio de ofender. Isto é uma mulher.

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