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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

08
Mar23

What is a woman?


celiacloureiro

Vivemos num tempo em que se celebra o dia da mulher mas se receia definir o que é uma mulher. Escolho este dia para deixar a definição de mulher.

A mulher é o ser do sexo feminino da espécie Homo Sapiens Sapiens, o que sangra todos os meses e que continua a trazer ao mundo a continuação da espécie por via de suor, dor e lágrimas, porque “a natureza não se interessa pela dor, interessa-se pela reprodução, e continuamos a reproduzir-nos.” A nível sociológico, a mulher é uma coisa diferente em locais diferentes do globo. Foco-me em ser mulher aqui.

Nascer mulher aqui é descender de uma longa linhagem de desconsideração e por vezes até abusos. É nascer-se o sexo mais fraco num mundo pensado para os homens mas que temos vindo a conquistar aos poucos. É crescer com os pais e a família a imputar-nos responsabilidade, arrumação, asseio, a oferecerem-nos bonecas, nenucos, cozinhas e panelas. Enquanto isso, os nossos irmãos são crianças em paz. Sujam-se e brincam, e nada lhes fica “mal”. Por volta dos 12 anos (cada vez mais cedo agora) surge o período, e as regras voltam a apertar-se. “Agora és uma mulherzinha, tens de te comportar, não podes andar por aí feita maria-rapaz”. Em cima disso, há as dores menstruais, a endometriose tardiamente diagnosticada, o coro de vozes “passamos todas pelo mesmo, é normal”, e a compreensão relativamente recente de que não é. É passar a adolescência a ouvir “vê lá, não engravides”, porque a responsabilidade, aqui palavra de ordem, é dessa menina e não do rapaz, pois a sociedade já assume que esse deve é divertir-se, curtir a vida e atentar no futuro, sem obstáculos. É ser adolescente e ouvir constantemente comentários sobre o nosso corpo. Eu cresci com “é baixinha” e “é só pele e ossos, ela come?”. E ainda “não tem quase maminhas”, o que é imperdoável segundo a estética da imprensa. O meu irmão, a meu lado, “era alto e tinha olhos lindos.”

Ser mulher foi especialmente difícil na adolescência, e sobretudo quando se é pobre e não havia dinheiro para depilações a cera em salões, e as atividades da escola incluíam idas à praia e passeios de barco no Zêzere. Lembro-me especialmente desse passeio porque usei uma lâmina nas pernas e deixei-as como um cenário de massacre. Passei o dia quente de calções mais atenta às feridas nas pernas do que aos remos. Profundamente embaraçada. Imagino que os rapazes não passem por isso, se o fizerem é sem pressão social e por isso, mesmo que desgracem as pernas, o dia segue com naturalidade. Ou ir de férias e não aproveitar a piscina porque, apesar de toda a gente dizer que o tampão é seguro e higiénico e fácil de colocar, não é assim para todas. Ser mulher é ter uma despesa extra mensal com analgésicos e parafernália higiénica.

É engravidar sem o desejar e ter a opção de assumir uma criança que não se quis - eventualmente amá-la - ou ser mutilada para a remover, e possivelmente ter de viver com isso na consciência para sempre.

Ou não poder engravidar, e submeter-se a tratamentos e exames de diagnóstico, muitos deles dolorosos, enquanto o escrutínio ao parceiro é deixado para último recurso.

Tendo crianças, é esperado que seja a sua cuidadora máxima. E isso de ser o esperado já tem um grande peso. Não tendo crianças, por vezes é olhada como se houvesse algo de errado consigo por simplesmente não acalentar o desejo de ser mãe.

É ir a consultas de rotina e perguntarem-nos "alguma vez engravidou?", e ter de lidar com o painel emocional que se acende perante essa questão. Posso? Não posso? Quis? Não quis? Não, e tirei. Sim, e perdi-o. 

Ser mulher é ganhar peso mais tarde e ninguém se coibir de o mencionar. Ou as rugas que vão surgindo. Ou os cabelos brancos. Vão sugerir-nos cremes e cabeleireiros e tintas e soluções para “esconder” a fealdade que vai engolindo a mulher que envelhece naturalmente. No meu caso, é perguntarem-me várias vezes se estou grávida, quando estou apenas mais gorda, ou inchada.

É ter 33 anos e por isso estar numa sala de espera a aguardar uma ecografia mamária, porque além do patriarcado o cancro da mama é um grande inimigo do sexo feminino.

Por volta dos cinquenta, ser mulher é enfrentar as provações da menopausa, de sentir que somos uma flor que murcha, lá se vai a frescura, o sangue, os atrativos. Chegam os afrontamentos, as indisposições. O homem? O homem envelhece como o vinho, fica mais atraente com a idade (ou melhor, quando alguém se manifesta, é para este tipo de reparo, não para “estás a relaxar-te. Queres o contacto de uma clínica de implantes capilares? Já experimentaste aquele creme y? A barba branca fica-te mal, não dá para pintar?”

E fiquemo-nos por aqui. Não posso considerar isto tudo e recusar-me a responder à pergunta “What is a woman?”

Para mim, ser mulher é isto tudo. E isto merece ser dito. Não pode ser varrido para baixo de nenhum tapete. Não pode ser silenciado por receio de ofender. Isto é uma mulher.

08
Fev23

Leaving on a Jet Plane


celiacloureiro

O cancro é uma coisa imunda, cruel, do mais ignóbil que existe à face da Terra.

Quando percebemos que o cancro estava finalmente a apanhar a minha mãe, descobri uma canção de Peter, Paul & Mary chamada Leaving on a Jet Plane sobre uma partida. Não pensei que a minha mãe nos deixasse tão cedo. Pensei que ainda tivéssemos mais um bocadinho. Mais uma ida à Costa da Caparica, uma pequena trégua numa doença implacável. Mais um bocadinho do sorriso alegre dela, por entre sofrimento que nem consigo imaginar. A minha mãe devia ter dores. Devia ter carências. Devia ter medo. De algum modo, encapsulou tudo isso no seu interior e mostrou-nos sempre sorrisos e optimismo. Em janeiro, pelo braço do companheiro dos últimos dez anos, falava no verão. Falou sempre nos seus planos para quando voltasse a ter a sua vida de volta. Para quando nem tudo se resumisse a funções básicas corporais como comer, dormir, falar. Acontece que o tempo nunca voltou atrás por uma tarde que fosse. Cada degrau que ela descia era irrevogável, não havia volta a dar. Todas as capacidades que ia perdendo ficavam perdidas para sempre. Não houve medicina moderna que a ajudasse, ou sequer que a reconfortasse um bocadinho fora um Metamizol e uma malfadada bomba de Ventilan que pode, ou não, ter contribuído para o colapso da sua função cardíaca.

O que me entristece - quando me permito sentir - é saber que ela tinha medo. Ela tinha muito medo do fim, da escuridão do desconhecido, do silêncio do nada, da inação. A minha mãe preenchia todos os instantes de trejeitos de voz, de palavras infindáveis, de narrativas, de apartes, de histórias. E eu, sabendo que ela estava a ir embora num jet plane, sentia-me triste por saber que ela estava prestes a confrontar-se com esses seus receios. Pensava nos meus próprios receios - abandono, solidão - e imaginava-me diante deles. Doía-me pensar que não havia nada que pudesse fazer para mitigar os seus receios. 

A minha mãe foi embora - I don't know when I'll be back again - e eu não sei se lhe disse vezes suficientes que a amava. Acho que ela não chegou a conhecer bem o colo do amor, o amparo do afeto incondicional. Viveu sempre a sentir falta da mãe biológica, do pai adotivo que a deixou numa Consoada para nunca mais regressar, e até do piano que tocava aos quatro anos e que saiu pela porta em troca de dez contos de reis quando ainda era demasiado pequena para compreender ou se opor. Deve ter atravessado a vida com um vazio terrível, condenada a enfrentar as suas batalhas a sós. Longe dos pais, dos filhos, apenas com a música e a Feira da Ladra como amigos do peito, companheiros constantes.

 

Vou ter saudades, mamã.

Sei que voltaremos a encontrar-nos para um grande, grande abraço.

13
Jan23

Piso 3 (Outra Vez)


celiacloureiro

Hoje foi dia de exame ao coração. Pus um batom vermelho para me sentir confiante no meio das dificuldades e, antes de apanhar a dona Vanda, pus The Beatles a tocar. Da última vez ouvimos The Supremes/Diana Ross. A minha mãe adora música, e a música põe-nos para cima.

Subimos até ao terceiro andar, as senhas não funcionam. Na secretaria, pedem-nos que esperemos a nossa vez para realizar o exame junto à porta x, e ainda estamos a percorrer o corredor de mão dada quando vemos a técnica à espera. É daquelas pessoas que, por trás da máscara, falam com um sorriso. Diz-nos que somos os últimos “clientes” do dia, e a sua animação faz-nos sorrir. Perguntei se podia acompanhar a minha mãe, deixaram porque ela declarou imediatamente que ia precisar de ajuda para despir as camisolas. De repente, está cheia de calor. A caminhada da porta até ao fundo do corredor deixou-a exausta, respira com dificuldade. O peito que lhe foi removido é muito mais estético do que temi. Nunca a tinha visto despido desde a remoção do peito, mas ali está ele: como o peito de uma adolescente, com uma espécie de mamilo pequeno e subdesenvolvido, mas harmonioso. Se calhar, estas pessoas precisam que alguém lhes diga que a sua mama ausente é bonita, que apesar da assimetria o corpo continua a ser uma paisagem de beleza, principalmente quando há saúde.

A minha mãe não consegue respirar deitada, nem de lado como lhe pedem que se posicione. Dão-lhe tempo para recuperar o fôlego, abrem a ficha dela. Eu sacudo o seu leque, a seu pedido. Rio-me, rimo-nos as duas. Jamais prevemos que, um dia, eu haveria de a abanar com um leque. Sempre foi ela que arregaçou as mangas e me ajudou, sempre recusou ajuda. Pouco depois, espalham o gel no seu peito, com a maca soerguida e a minha mãe deitada de lado, com a respiração um pouquinho mais calma (e sem máscara, Deus abençoe as técnicas, porque o valor máximo de um hospital devia ser não provocar mais sofrimento aos pacientes). Parece uma ecografia, e penso que seja uma variante disso, mas o órgão que se move nos dois ecrãs é o coração da minha mãe. Visto de vários ângulos. Ventrículos, válvulas e formações fibrosas aqui e ali. A mãe está bem, conseguiu acalmar-se, não tem frio. E eu absorvo por um instante a circunstância de estar a olhar para o coração de uma pessoa – a minha mãe – naquele ecrã. Vejo-o a trabalhar, abre, fecha, a válvula parece a lagartinha do livro de Eric Carle. As técnicas são minuciosas, trocam comentários. Oiço palavras como “fraco”, “esforço”, “formação fibrosa”, “colapso”, “função comprometida”. Depois interpelam a minha mãe, dizem-lhe, num tom meio alegre, se ela se perdeu entre 2018 e 2022. Não voltou lá porquê? Porque faltou às consultas? A minha mãe suspira, aperta os lábios, alça as sobrancelhas. A técnica diz-me que é possível que ela já tivesse problemas cardíacos há algum tempo, não sabemos porque esta paciente é muito esquiva. Disse-me, no entanto, que há líquido nos pulmões. Auscultaram-na (não sei se são técnicas, se eram médicas, só sei que tinham o dom de cuidadoras). A oncologista da minha mãe não a auscultou. Não quis despistar uma pneumonia, não quis perceber como estava aquele par de pulmões a funcionar em tempo real. Não ponderou interná-la.

Enfim, a minha mãe é forte. Saímos dali de mãos dadas uma vez mais. Sentámo-nos na sala para ela recuperar. Depois chamámos o elevador e entrámos. Pareceu-me tão pequena, ali de pé, com o casaco enorme e as calças largas. A última coisa que vejo diante de mim, antes de a porta se fechar, é a placa do piso 3 que indica, à esquerda, a unidade de Cirurgia Maxilo-Facial. Onde o meu pai passou dois dos três últimos meses da sua vida. A proximidade das duas alas parece-me ofensiva, mas nada melhor do que voltar a sorrir.

Vou buscar o carro. A mãe não quer esperar no interior, diz que quer ver-se livre da máscara. Lá fora, arfante, precisa de se sentar. Não há bancos. Eu vou buscar o carro em corrida, ligeiramente animada pelo que ela me disse quando saiu do elevador. “Se estou cheia de calor e sem fôlego agora, imaginem quando chegar o verão”.

Se ela acredita que o verão há-de chegar, porque hei de duvidar?

05
Jan23

Piso 8


celiacloureiro

Estou de volta ao piso 8 do Hospital Garcia de Orta. De volta aos velhinhos que não sabem inserir o cartão de cidadão na ranhura para validar a consulta. De volta à sala de espera de oncologia, rodeada de condenados e de um punhado de futuros milagres. Desta vez, a pessoa ao meu lado é a minha mãe. Uma vez mais, o médico dirige-se a mim, porque a pessoa ao meu lado, sobre a qual paira a foice, não tem palavras.


Enquanto o médico da minha avó era mais reservado, esta oncologista é direta, sucinta, incisiva. Não há nada a fazer. Não há cura. Pode fazer quimioterapia ou não, diga-me você, você é que sabe, eu acho que devia, mas você é que sabe. Não sabe quanto tempo a quimioterapia poderá comprar-nos, se descobrirmos agradece que a informemos. É uma roleta-russa. Continuamos a remar, apesar de sabermos que estamos sozinhos no meio do oceano, sem salvação possível, ou pousamos os remos e deixamos que o sol e a sede nos devorem? Morrer a lutar ou morrer tranquilo, sem viagens ao hospital, sem salas de espera, sem catéteres nem o assalto do cheiro a antisséticos?

Lá estou eu, a descer às catacumbas do hospital para marcar outro exame de medicina nuclear, mais de quatro anos depois. A suportar 35 utentes à minha frente para marcar as análises, as senhas que não funcionam, a funcionária que se ausentou um instante, a fila desordeira e o utente que assoma só para “perguntar uma coisa”.

Lá estou eu, ao lado de outra pessoa condenada, sem palavras, sem plena noção de que o que lhe anunciam é o fim, com a Ponte 25 de Abril para lá da janela, uma paisagem solarenga que não se coaduna com o silêncio da médica que digita a um ritmo insuportavelmente lento a transcrição total do relatório de um raio-x ao tórax. Fomos chamadas para uma consulta de oncologia e, nos primeiros dez minutos, a médica passa o olhar do relatório para o teclado, ocasionalmente para o monitor de um HP antigo, e continua a transcrever a nossa sentença. Parece-me pouco humanizado, o processo. Por fim, pousa os cotovelos na mesa, apoia o queixo nos dedos e diz: Pronto, o cancro espalhou-se. Está nos dois pulmões, nos ossos e no fígado. Não tem cura, está num estado muito avançado. Quer tentar fazer quimio ou peço consulta de cuidados paliativos?

E as respostas absurdas. Tal como o meu pai, há quatro anos, a minha mãe também tenta combater as dores de um cancro terminal com Ben-u-ron. Mas diz que nem sempre o toma, porque receia que lhe faça mal. Ou dormir, nem sempre (quase nunca) dorme, mas também não toma nada por receio que lhe faça mal. Também não come, come pouco ou nada, se a médica pudesse ajudá-la a recuperar a fome… A médica procura-me os olhos, é tudo o que vemos uma da outra. Repete: Tudo vai dar ao mesmo. Ao cancro. Encolhe os ombros, como quem diz “para o pouco tempo de vida que tem, tome os comprimidos que quiser para dormir.”

Pede algo que lhe abra o apetite, porque a médica diz que 45kg para uma mulher de 1,60m não é peso de gente. Saímos do hospital depois de correr três pisos para marcar exames e de sermos extorquidos no parque de estacionamento. A ronda das farmácias não corre bem. O comprimido para o apetite está esgotado nos fornecedores. Um suspiro profundo, como se daí pudesse vir a salvação, e agora tudo estivesse perdido.

Antes de bater a porta do carro para entrar na farmácia, a voz arfante da minha mãe pede-me: Traz-me Halibut, custa-me a estar sentada.

E eu regresso minutos depois, a perguntar-me como foi que viémos aqui parar: a este estranho momento no tempo em que o Halibut passa das minhas mãos para as dela, 33 anos depois.

07
Dez22

Outra vez a Bolsa DGLAB


celiacloureiro

Na segunda-feira, saiu uma vez mais a lista de bolseiros atribuída pela DGLAB para 2023. Alguém que se sinta inseguro quanto à qualidade do seu trabalho e que não tenha sido contemplado pode considerar que se trata apenas disso: falta de qualidade. No meu caso, e detestando teorias da conspiração, não posso deixar de passar os olhos pelos vencedores (pelo menos dois deles pela segunda vez) e de me perguntar uma vez mais sobre a justiça e os critérios que levam à avaliação das candidaturas. Isto é: os projetos são avaliados por aquilo que são (um escritor bom com um projeto mau, um escritor desconhecido com um projeto bom), ou pelo nome de quem apresenta a candidatura?

Este ano, assim que recebi a lista e que vi que poderíamos consultar a ata do júri relativa aos projetos vencedores, tomei um duche, meti-me no carro e rumei à Cidade Universitária. Entrei pela primeira vez na Torre do Tombo (uma espécie de arca de Noé) e subi até ao gabinete da DGLAB. Fui recebida com cortesia num escritório ao fundo de um corredor cheio de retratos a preto e branco de autores portugueses consagrados (alguns imortalizados). Pedi para ver a ata do júri, bem como a classificação dos meus projetos (apresentei dois). 

Para termos direito a bolsa, temos de obter a classificação máxima (10) em todos os critérios. Todos os bolseiros tiveram 10, e apenas eles. Por um lado, parece-me uma classificação muito simplista. Basta correr os "favoritos" a 10, sem sequer lhes dar margem para um ponto menos forte na candidatura.

Um dos meus projetos teve 8. Anteriormente, tive um projeto com 8,6. É agridoce. Olhei para a nota, revirei as páginas nas mãos e pensei: é preciso que nenhum favorito se candidate com um projeto sobre rissóis para que este 8 se torne um dia num 10.

Atenção: não estou a dizer que todos os contemplados sejam favoritos mas, das 7 bolsas atribuídas para Ficção Narrativa, parece-me evidente que pelo menos 6 estão no circuito dos prémios literários (a sério, investiguem os juris, as organizações, e estabeleçam as conexões), dos pais escritores, dos nomes sonantes, dos passeios ao colo do Público e das editoras que ditam o que é "cultura" em Portugal.

Ana Teresa Pereira - pela segunda vez, Grande Prémio Romance e Novela APE/DGLAB 2011 (isto é, organizado pelo mesmo gabinete, possivelmente com os mesmos funcionários/juri a regê-lo). Tem mais de 40 obras publicadas, segundo o nosso amigo Google, por isso a parte em que a Bolsa se propõe a permitir que o bolseiro se dedique exclusivamente à escrita (parafraseando) também não importa quando o escritor já o faz independentmente dos fundos da cultura.

Frederico de Melo d'Ornellas Pedreira - o senhor d'Ornellas é um Doutorado na própria Universidade de Letras de Lisboa, no coração da qual temos este bonito escritório da DGLAB.

Daniela Margarida Duarte Leitão - quem é Daniela Leitão? A única que recebeu a bolsa por mérito?

Ana Mafalda Leitão Ivo Cruz Valente - Grande Prémio APE do Romance e Novela 2003, muitas raízes deste prémio terão ligação com a nossa querida DGLAB

Maria Antónia Neves Nazaré Oliveira - académica com especial interesse no nosso Camilo Castelo Branco

Matilde Maria D’Orey de Sousa Campilho - bisneta materna do 5º Duque de Palmela, querem convencer-nos que é um génio da poesia mas agora vai escrever contos e a bolsa, que favorece outras obras de referência na mesma área a que nos candidatamos, fechou os olhos. É um 10. O que quer que saia da pena da bisneta do 5º Duque de Palmela será ótimo e será anunciado na Sábado com ovação

Ana Margarida Taborda Duarte Martins de Carvalho - filha do nosso querido Mário de Carvalho, recebe bolsa pela segunda vez, a última sendo em 2017, também foi agraciada pelo Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2013 (em colaboração com o mesmo gabinete que atribui as bolsas)

Posto isto, o que me pergunto uma vez mais é se o Ministério da Cultura está ao serviço dos autores, do surgimento de mais vozes, ou ao serviço de apelidos e de personalidades construídas pela própria DGLAB, muitas delas sem qualquer reflexo nos hábitos de leitura dos portugueses. Trata-se de dinheiro público a pingar constantemente sobre as mesmas pessoas - por muito genias que possam ser (duvido), será que as classificações são atribuídas com o rigor que se espera a um comité responsável por gerir estas oportunidades? 

Pergunto-me se um serralheiro mecânico da Azinhaga, apenas com a escola técnica, teria direito a bolsa neste mundo de académicos. Se é preciso um doutoramento para pensar, para sentir e, portanto, para escrever.

Este país exaspera-me.

26
Nov22

Pai Natal Solidário CTT


celiacloureiro

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Há dois anos, oferecemos um computador portátil à Laura através do Pai Natal Solidário. Reparei na carta da Laura já tarde, e era das últimas que precisavam de atenção.

É triste imaginar que algumas destas crianças não irão receber o que pediram, e às vezes são coisas tão singelas que comovem.

Este ano decidi ajudar com antecedência, elegendo duas cartinhas pelas quais serei pessoalmente responsável (juntamente com a minha irmã que não pode ouvir expressões como "roupa quentinha" que começa a chorar).

Porém, como juntos conseguimos mais, peço uma vez mais o vosso apoio para realizar mais desejos de Natal de crianças desfavorecidas.

 

Como consta no website dos CTT, que podem visitar aqui:

O Pai Natal Solidário dos CTT é uma ação de solidariedade social que surpreende crianças em situação de risco, realizando os seus desejos de Natal.

Estas crianças, até aos 12 anos de idade, são convidadas a escrever cartas ao Pai Natal, com os presentes que desejam receber. Depois, as responsáveis pelas instituições entregam as cartas nos CTT, que tratam de as colocar online e nas Lojas CTT para serem escolhidas.

Qualquer pessoa pode fazer com que o desejo de uma destas crianças se torne realidade e surpreendê-las no Natal. Para isso, apenas tem de apadrinhar uma das cartas que estão disponíveis durante os meses de novembro e dezembro.

 

Selecionei algumas cartas que me comoveram especialmente, e proponho-me a:

- Receber os vossos donativos e atribuir um número de "doador" a cada pessoa que me aborde em mensagem privada. A pessoa poderá ver o seu número na listagem de doações recebidas e a respetiva contribuição, para ter a certeza de que foi contabilizada;

- Organizar os donativos carta a carta, segundo a ordem abaixo, sempre que fechar uma carta aquele presente está assegurado e passamos à próxima;

- Escolher artigos de qualidade e duradouros, sempre que possível em saldo/com desconto, sem prestar atenção a marcas a menos que ofereçam a melhor relação qualidade/preço;

- Apresentar as faturas, fotos e quaisquer materiais de apoio para que acompanhem o processo deste lado.

 

Informo-vos que também poderão fazê-lo a título pessoal indo ao site dos CTT e apadrinhando uma carta. Depois só têm de entregar o presente diretamente num balcão e os CTT entregam-no gratuitamente. No entanto, essa opção funciona para presentes mais modestos. É para os mais "bicudos" que podemos precisar de ajuda. E para os mais urgentes.

 

Selecionei estas cartas, por ordem de "importância"

1. Uma Mochila e estojo para o Nataniel + chuteiras nº 40 // Budget 50,00€

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 2. Fraldas Nº 3 Dodot + Toalhitas Pele Sensível Dodot // Budget 35,00€

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 3. Brinquedo musical e roupinha para o Aildo - Budget 50,00€

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4. Uma cozinha para o Dinis - Budget 50,00€

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5. Fraldas tamanho 3 e leite Aptamil 2 para a Dulce (2 fraldas tamanho 3 Pingo Doce + 3 latas Aptamil) - Budget 50,00€

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6. Uma bola do Benfica e uns ténis da Fila nº 32 para o Carlos - Budget 50,00€

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7. Uma Casa de Bonecas para a Lia - Budget 25,00€

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8. Um bebé com carrinho para a Petra - Budget 25,00€

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9. Uma guitarra e um livro de colorir para o Lucas - Budget 25,00€

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10. Legos para o Rodrigo - Budget 20,00€

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11. Ténis para a Aguinalda - Budget 25,00€

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 12. Uma bicicleta para o Gihaith - Budget 200,00€

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Então, estamos juntos?

 

Estas e outras cartas aqui:

Pai Natal Solidário (painatalsolidario.pt)

06
Set22

Setembro


celiacloureiro

Li algures que somos a geração que mais trabalha. Não me espanta. O que me espanta - e não sei se temos tempo para o analisar -, é que trabalhemos por status, por conforto, por vício. Vivemos num estado de alimento garantido. De privilégio constante. Vivemos de pequenos luxos, e não conseguimos imaginar o dia-a-dia sem eles. Ir de carro para o trabalho. Refeições fora. Um certo coleccionismo - no meu caso, de livros. Mais olhos do que barriga sobre quase tudo, quase sempre.

De repente, tenho muito pouco tempo livre. Estou sempre cansada. Por um lado, trabalho a partir de de casa. Às vezes, dou por mim a trabalhar fora de horas, só porque sei que a tarefa tem de ser concluída, e já não há a barreira dos transportes, das horas, do anoitecer lá fora e da chuva no caminho a impedir-me de a concluir. Depois, lembro-me que tudo é um bater de asas de borboleta, e que o efeito dominó faz com que por consequência fique cansada, desinspirada, e me deite mais cedo para recomeçar tudo igual no dia seguinte.

Também continuo a traduzir livros. É preciso uma cabeça limpa e ideias coerentes para rever ou traduzir um livro. Se falhar nessa tarefa, vou ficar mesmo muito desiludida comigo mesma. Creio que, um dia, é aos livros que hei de ir buscar o meu sustento. E não me refiro à escrita. Traduzi uma mão cheia de livros em seis meses, mas, pelo motivo que mencionei no primeiro parágrafo, uma falha parece ter sempre mais peso do que uma tarefa concluída com louvor. Tenho medo de errar. Medo de que venha o cansaço e me atire por terra.

Tem-me apetecido escrever, mas não há tempo; não há vida. Há sempre algo que exige a minha presença noutro lugar. Ou uma atividade menos cansativa para concluir. 

Tenho tido cada vez menos tempo para pensar na vida. Na importância de attraversarla de olhos abertos. Atenta ao que vai acontecendo ao redor. Para ser. Para escutar o universo. Para me sentir mulher, viva, livre. . Olhando para trás, compreendo que não me conhecia muito bem. Achava que, por esta altura, teria uma vida igual à dos outros. Estaria casada e submergida pelas exigências da maternidade. Daqui a uns anos divorciava-me e voltava às amarguras da escrita, ao alívio destes desabafos. Não vi, de início, que sou feita de um material que se deixa ficar à parte, a observar, enquanto os outros vivem, triunfam e cometem erros. Acabo por julgar, por opiniar, e também por me emocionar até às lágrimas com a vida que corre como o rio para o mar, sem se deter, ao meu redor. E que não é a minha. Eu permaneço sobre uma rocha à beira do riacho, abraçada às pernas. Ora choro por nunca ter lugar na corrente, ora me dou por satisfeita por não andar à deriva por águas turvas. É mais fácil suportar os elementos a partir da margem. Em tempos, escrevi num romance algo a respeito de uma garça à beira-mar. Vem a espuma das ondas e salpica-lhe as asas. Mas a garça permanece.

Resta-me observar. Sonhar. Escrever. Viver, anestesiada, porque sentir é-me tantas vezes insuportável.

Chegou setembro. O meu mês favorito. Voltei a tomar chá e a calçar meias. Tenho um cão. Ainda consigo alinhavar algumas frases em tom literário quando me sinto inclinada a isso. Debato-me com as palavras, mas não ao ponto da exasperação. Coisas bonitas hão de chegar para mim, e todas elas cheiram a papel, a tinta e a tipografia. Livros, livros e mais livros.

Sem livros, que vida me restaria para viver?

Mood.

 

03
Jun21

Pobreza e menstruação


celiacloureiro

História Instagram a Violeta e Pêssego com Pince

A 28 de Maio, o Jornal de Notícias e outras plataformas divulgaram uma proposta do Bloco de Esquerda para a distribuição de tampões e pensos higiénicos em escolas e postos médicos. Com a ressalva de que "No ano passado, o projeto foi chumbado e depois de a medida ser aprovada em países como a Escócia, Nova Zelândia, Canadá ou Inglaterra, o Bloco decidiu voltar a insistir."

Uma vez mais, sinto que o nosso governo socialista favorece a igualdade (e os votos que daí podem advir) face à equidade. Nem todas as crianças precisam que lhes ofereçam os livros escolares. Não era necessário baixar propinas para o Ensino Superior - o que é necessário é um sistema que garanta os estudos a quem não puder pagá-los, e isso já existia através das Bolsas de Estudo. Talvez seja necessário que algumas meninas e mulheres possam levantar material higiénico para fazer face a uma necessidade fisiológica mensal. 

A Escócia, ao tornar-se o primeiro país do mundo a distribuir estes materiais gratuitamente,  baseou essa necessidade no facto de que «Uma em cada 12 jovens britânicas usa jornal como penso higiénico».

Ao ler sobre isto, recordei-me da minha própria experiência. Corria o ano do senhor de 2002, e, ao contrário das minhas colegas que estavam doidas por terem o período, eu não queria nada ter "o Benfica a jogar" em casa. Tinha feito 12 anos há 2 meses, estava no 7º ano e pouco antes a escola tinha distribuído dossiers sobre saúde sexual, com enfoque na menstruação. Tinham oferecido amostras de pensos higiénicos e de tampões. Como sempre fui uma aluna medíocre a Ciências, devo ter passado pelas brasas durante algumas das explicações. Quando uma dor de barriga aflitiva veio interromper-me um teste de Francês, pedi licença para ir à casa de banho. Nessa altura andava sempre com um penso diário, porque estávamos todas a começar a ser atingidas pelo mal comum. Não tardava muito a ser eu... Acontece que quando me limpei vi sangue, suspirei de resignação. Mandei o penso para o lixo e pensei "Boa, por este mês já estou livre".

Meti uns cêntimos no telefone pré-pago da escola, chamei a avó. Dei-lhe a notícia de que "já era uma mulherzinha", como sempre a tinha ouvido dizer, e fiquei muito espantada quando ela me perguntou se estava suja. "Como assim, suja? Por este mês já foi". A avó ficou em pânico - para ela, deixar que os outros vejam o nosso sangue menstrual sempre foi a vergonha máxima a que uma mulher pode sujeitar-se. Tinha muitas histórias do género para contar, do  tempo em que a mulher se arranjava com uma toalha dobrada e vestia saias, pelo que era mais propensa a acidentes. O verdadeiro choque veio aí, quando ela me disse que o período tinha acabado de chegar, e que havia de ficar durante alguns dias. Lá fui eu para as aulas, com meio rolo de papel higiénico nas cuecas, ciente de que em casa apenas tinha pensos diários - baratos e duradouros.

História Instagram a Violeta e Pêssego com Pince

A parte da pobreza se interligar com a  menstruação, mesmo na Área Metropolitana de uma capital europeia, deve-se ao facto de a minha luta ter começado nessa noite: a avó esperava-me com toalhas. Disse-me que usasse panos, porque os pensos eram caros. Ela recebia apenas a pensão de quem nunca descontou, o avô tinha uma reforma minúscula (porque antecipada). O pai e a mãe também estavam desempregados, e enfrentavam outros demónios que sugavam os parcos recursos familiares. 

Tive de envolver as primas na situação para conseguir que me cedessem 2 euros para comprar 16 pensos higiénicos. Ajudaram-me a convencer a avó de que no século acabado de entrar não era higiénico nem aceitável que uma menina que frequentava a escola, que fazia Educação Física, que se sentava manhãs e tardes seguidas numa sala de aula, tivesse de usar panos durante quase uma semana por mês. Ficou então entendido que os tempos tinham mudado, e ganhei o direito a comprar um pacote de pensos por mês. As conversas, ainda assim, repetiram-se todos os meses até aos meus 17 anos, com apelos para usar menos pensos, para não os mandar logo fora "quando caía uma gota de sangue", e etc., etc.

Aos 17 anos comecei a trabalhar e a ganhar o meu dinheiro. Aos 18 entrei na faculdade, despedi-me e vali-me da Bolsa de Estudo (a tal, para quem precisa) para os meus alfinetes. Nunca mais voltei a usar pensos higiénicos pagos por outrem, nem a enfrentar o horror de ter de usar uma toalha de rosto dobrada nas cuecas (nunca cheguei a usar porque sempre me recusei). 

Hoje em dia vivo com duas irmãs. É evidente que a necessidade de pensos higiénicos, tampões e panafernália de combate mensal ao período trazerem despesas acrescidas aos agregados familiares. Cá em casa somos três mulheres em idade menstrual, duas das quais além do material habitual precisam também de analgésicos para suportar as dores. Somando tudo, ao fim do ano temos uma bela conta. Ao fim de 40 anos de menstruação, podia pelo menos ter feito um cruzeiro nas Caraíbas.

Por sorte, e apesar de desempregada, ainda posso pagar essas coisas. Mas pergunto-me como é que o governo pode chumbar uma medida destas, quando o interior do país sofre de carência a tantos níveis, quando há tantas meninas sem acesso a planeamento familiar, a aconselhamento, a cuidados de saúde e de higiene básicos, e depois distribui bens indiscriminadamente - os livros escolares, a baixa de propinas - para quem precisa e para quem não precisa. Os recursos, na minha opinião, devem ser direccionados. Existem para garantir que quem precisa nunca lhes sentirá falta.

26
Jan21

Os ciganos, o coisinho e as finanças do Estado


celiacloureiro

No Domingo elegeu-se Marcelo Rebelo de Sousa para presidente da República Portuguesa, e não foi surpresa a sua reeleição. A surpresa foi o circo montado em torno do candidato da extrema-direita, e, para mim, maior surpresa foi ver que os portugueses não o puseram no seu lugar nas urnas mas, pelo contrário, cerca de meio milhão de pessoas votou nele e nas suas ideias para presidente.

O 25 de Abril teve lugar há 47 anos. Antes disso havia censura, partido único, prisões políticas, sovas a opositores do sistema, exílios e desterros. Gostaria de acreditar que ninguém com mais de 47 anos tenha votado num grão disto que fosse, mas infelizmente também aqui me enganei. Porque ficou Ventura em segundo lugar no Alentejo, por exemplo? O que significam, na realidade, os números desta eleição?

Começar por dizer que a abstenção esteve na ordem dos 60.51% - significa que dos quase 11 milhões de portugueses inscritos em cadernos eleitorais, 6.5 milhões não se deram ao trabalho de ir às urnas. Isto coloca as coisas numa outra perspetiva: é que o tão falado Ventura, o tal que diz que os portugueses se uniram para votar num partido contra o sistema, desaparece neste gráfico de minha autoria, que expressa o comportamento dos portugueses perante a eleição. O que se agiganta é o mar de portugueses que se absteve.

Grafico.png

O que tirei deste gráfico foi que meio milhão de portugueses (sim, ainda assim muita gente) achou por bem sair de casa e ir apoiar este candidato às urnas. São 0,5 em 11 milhões de Portugueses, e quero acreditar que somos melhor do que a crença iludida desses 0,5. A esses 0,5 peço que esqueçam o suposto rosto anti-sistema, e que se foquem nos seus argumentos para "salvar o país". Mas salvar o país de quê? De quem? Ora vejamos.

Fonte dos dados no gráfico: Resultados do ano 2021, Eleições Presidenciais , RTP Notícias

Hoje estou virada para os números, por isso fui informar-me sobre os números da população cigana em Portugal, que em 2017, segundo o alto-comissário para as Migrações, era de c. 37 mil individuos, "e 91,3% não têm o 3º ciclo." 37 mil indivíduos merecem, de facto, ser culpados por tantos dos problemas que o Chega identifica em Portugal? Não estarão a inventar inimigos do Estado e da população, à semelhança de outros demagogos do passado?

O projeto Pare, Escute, Olhe refletiu sobre a questão da atribuição do RSI a elementos desta etnia em 2015, e concluiu que "estudos, baseados em dados cedidos pelo Instituto de Segurança Social, apontam que entre 3% e 6,5% das  93.731 famílias beneficiárias do RSI são de origem cigana.  Ainda assim, não se pode negar que algumas pessoas procuram viver dos apoios sociais mas este fenómeno pode ser observado em qualquer grupo, independentemente da sua origem étnica ou social." Traduzido por miúdos, das 93731 famílias que recebiam o RSI em 2015, apenas 93,5% (no mínimo) dos beneficiários eram de etnia não cigana. Os ciganos são, portanto, uma pequeníssima fatia dos subsídio-dependentes do Estado, conforme o Chega leva a crer. Quanto a recusarem-se a trabalhar, o mesmo projeto refere o seguinte: 

  • 50,7% da população cigana já se sentiu discriminada no local de trabalho;
  • 35,3% disseram terem sido rejeitados numa entrevista por causa de sua etnia;
  • 26,9% sentiam-se mais controlados e/ou monitorizados;
  • 11,9% têm experimentado situações que os impedem de desempenhar funções com visibilidade pública por causa de sua raça ou origem étnica.

Neste ponto, gostaria de contestar André Ventura nas soluções que propõe para acabar com a subsídio-dependência e para pôr os ciganos a trabalhar, mas não o ouvi falar em integração, em combate à discriminação, em por ex. benefícios fiscais a empregadores que contratem funcionários de etnia cigana, ou seja lá o que pudesse contribuir para inverter os problemas laborais desta etnia e, consequentemente, afastar esses 6.5% (no máximo) do RSI. 

Pensando em soluções - se realmente a minoria cigana for um problema - creio que as coisas passem por dois pontos: aplicar a lei de igual modo para todos os cidadãos portugueses, independentemente da sua etnia, e reforçando a intervenção de assistentes sociais junto das famílias de minorias étnicas que possam entrar em colisão com aquilo que é o cumprimento da lei da nossa República (a isto chamaria investir num futuro mais inclusivo). Menciono também o abandono escolar por parte da etnia cigana (91.3% da população cigana não tinha o 3º ciclo, em 2017 - segundo o mesmo artigo do Expresso acima citado), e outras práticas como a excisão genital feminina, que devem ser combatidos sem pruridos culturais por violarem direitos universais. 

O combate à corrupção deve ser ativamente praticado por todas as instâncias do nosso Estado, e qualquer português com acesso à internet pode consultar, por exemplo, a lista de devedores à Segurança Social online. Encontramos os devedores divididos em duas classes: pessoas singulares e coletivas. Fui às coletivas e encontrei 12 páginas de devedores listados para dívidas entre 1 e 5 milhões de euros (12 milhões se cada um dever pelo menos 1 milhão), mais 12 páginas de meio a 1 milhão, e 42 páginas de 250 mil a meio milhão de euros. Por entidade devedora. Divirtam-se aqui.

No site da autoridade tributária encontramos o mesmo esquema. Temos  22 entidades listadas num PDF, sinalizadas como devendo mais de 5 milhões de euros ao estado cada, e 6 páginas A4 com listas de devedores de 1 a 5 milhões. Há muito mais escalões de devedores.

Também há que nos preocupar com a TAP, o BES, os Berardos e os Luís Filipes Vieira desta vida (cujo grupo económico, em 4 anos, causou 225 milhões de euros de prejuízo ao BES e que é um dos principais devedores ao banco que os portugueses estão fartos de resgatar). Mais detalhes aqui.

A somar a isto, roubam os proprietários de certos estabelecimentos - e roubam até ao manter empregados sem contrato de trabalho, sem passar faturas, sem serem honestos nas declarações que fazem. Em Portugal, foge-se aos impostos e às contribuições, às dívidas e às obrigações desde o topo até cá abaixo. Aqui em Almada, por ex., há proprietários de redes de pastelarias que pagam o salário mínimo a funcionários sem contrato por 6 dias de trabalho semanais. Proprietários que se passeiam de carrão e que entregam o dinheiro em envelopes em mãos à multidão de empregados cujas famílias dependem destes escroques para se alimentarem e não serem subsídio-dependentes. Vai a ver-se e são estes senhores que, entre uma baforada de charuto e mais um envelope para pagar os seus muitos funcionários ao fim do mês (o retrocesso civilizacional!), dizem que quem destrói o país são os ciganos e os estrangeiros que, em 2017, representavam apenas 3,8% da população residente em Portugal, e que por exigências do SEF têm de se manter ativos no mercado laboral para poderem permanecer no país.

Vergonha é importante, mas é a começar por cima, e não a escolher bodes expiatórias na arraia-miúda. 

Informem-se. Parem, escutem, olhem. Com olhos de ver.

15
Dez20

Dói, ser mulher


celiacloureiro

Sufferingwomen.png

Nos últimos tempos, tenho refletido muito acerca da condição da mulher (e da minha condição de mulher). Pensei em colocá-lo num desenho, e saiu este que uso para ilustrar este post. O sangue é, com toda a certeza, aquilo que salta à vista. Mas este sangue não é a menstruação, nem um aborto espontâneo, nem o que fica de uma violação. Este sangue é tudo isso, e muito mais.

Ontem estava a ver um episódio intitulado Métodos Contraceptivos de uma espécie de mini-documentário da Netflix chamada Resumindo, Sexo. São 25 minutos sobre o modo como a mulher sempre foi a principal responsabilizada por uma gravidez indesejada, e como isso resultou na sua pobreza, por vezes ostracização, dependência do marido, linchamento público, enxovalhamento social, etc. Ao longo de toda a História as mulheres submeteram-se a toda a espécie de mezinha, ritual, brutalidade, para interromper gravidezes indesejadas. Também inseriam objetos estranhos no próprio corpo e lavavam-se com vinagres, poções ou mesmo com excrementos de animais (de elefante, na Índia, por ex.), para evitar gravidezes. Apenas na década de 50 do século XX é que a indústria farmacêutica se interessou por produzir estrogénio sintético, e a pílula revolucionou a vida das mulheres no mundo inteiro. Inicialmente, as mulheres foram cobaias dessa mesma indústria, e poucas décadas depois tornou-se claro que essas pílulas traziam muitos efeitos secundários indesejáveis - alguns letais - para essas mulheres-cobaias. Pouco depois surge o DIU, um anzol de cobre, também disponível em plástico, implantado no útero de mulheres inicialmente de Porto Rico, também como cobaias, para apenas depois se tornar opção nos EUA e restante mundo. Pelo menos 18 mulheres terão morrido, nesses primeiros anos, com choques sépticos e infeções graves do útero e outros órgãos. O documentário dá voz a Loretta Ross, que usou uma nova espécie de DIU aquando da sua saída no mercado, e que perante as dores e o desconforto que sentia no ventre os médicos procuraram incessantemente uma DST. Mulher negra com tantos cuidados para não conceber, só podia ser uma promíscua e portanto estar infetada com uma doença desse espectro. Foi apenas quando entrou em coma que se percebeu que o DIU lhe havia destruído o útero, e lho removeram de emergência. Porquê? Porque as mulheres não são ouvidas, e eu continuo à procura do motivo, do porquê. Terminam dizendo que existe, há anos, uma pílula masculina em testes, porém os efeitos secundários não agradam aos laboratórios nem às entidades que poderiam acolhê-los e distribuí-los no mercado. É inconcebível que os homens fiquem sujeitos a coágulos, flutuações de humor, sensibilidade extrema, mamilos sensíveis e dores de cabeça, como ficam as mulheres ao tomar a sua pílula. O homem não aguenta desconforto? Ou a indústria é mais terna com o sexo masculino? Ou simplesmente mais preguiçosa, com a mulher? A resposta é clara, posto que continuam a tentar minimizar esses efeitos do medicamento antes de o lançarem no mercado.

Avancei para o episódio sobre Fertilidade, e uma vez mais a mulher é a responsabilizada em quase todos os casos de infertilidade num casal. Faz sentido, na medida em que o corpo da mulher é o labirinto que recebe a semente, e se algum caminho estiver vedado não há gravidez. Por outro lado, é mais uma responsabilidade psicológica em cima da mulher. E, quando o problema é mesmo da mulher, é a mulher quem extrai óvulos, é a mulher quem se injeta sozinha na barriga, na coxa, com hormonas para aumentar a produção de óvulos, é a mulher que se submete aos tratamentos In Vitro, é a mulher que depois carrega o embrião, o feto, e o alimenta com o seu corpo, e é ela que sofre os pontapés na bexiga, a incontinência, as dores nas costas, os enjoos, as tonturas, o cansaço, o sono, o parto. O parto - com ou sem anestesia, o parto em que tantas vezes arrisca a vida, o parto, e depois são dela os mamilos abocanhados, feridos, gretados, pela criança, é sobre ela que recai o julgamento social se não perde peso suficientemente rápido.

Mas há mais, há o Parto, que é o episódio que se segue. Outro episódio na minissérie sobre Sexo em que, afinal, tudo é sobre a mulher e as dores, físicas e psicológicas, que tem suportado ao longo da História. Dizia uma das vozes que a mulher é a mamífera que experiencia mais dor ao dar à luz, e que assim é apesar dos milénios de evolução sobre a nossa espécie. Porquê? Porque a Natureza não se interessa pela dor, interessa-se pela sobrevivência, e a nossa espécie continua a reproduzir-se, com ou sem dor. Mas e a Ciência, não podia interessar-se um pouco mais pela dor, na mulher? Neste ponto, uma das comparações pareceu-me preciosa. O ser humano é o único animal que sofre por antecipação. A mulher chega ao parto aterrorizada, confusa - epidural ou sem epidural? Vou conseguir trazer a criança ao mundo de parto natural ou vou acabar na sala de cirurgia? - e tudo isto são também reflexos de cultura, a cultura a imiscuir-se no momento em que a mulher deveria estar em plena harmonia com a natureza - com ou sem drogas, acreditar que de algum modo foi feita para conseguir ultrapassar aquele momento. A comparação que se estabelece é com uma pessoa a tentar fazer necessidades numa sala em que é constantemente interrompida e, por embaraço, retém-se. Imaginem sentir o vosso corpo prestes a explodir em fluidos viscosos enquanto estão rodeados de estranhos... Os hospitais tentam proteger alguma da privacidade da mulher, mas as salas continuam a ser partilhadas com outras, as enfermeiras entram e saem, trocam turnos, há auxiliares, vozes, bebés a chorar ao longe, mães a gritar na sala ao lado. A mulher retém-se. O parto dura para sempre e, no fim, acaba a defecar na maca às vezes. Como é que a Ciência chegou onde chegou - isto é, mete homens no espaço e tudo -, mas a mulher continua a parir com dor e trauma?

E há toda outra dor. Há a dor física, o desconforto, a escolha - dói assim ou dói assado? Por exemplo, no meu caso particular, tenho dores atrozes quando estou com o período. Cheguei a sair do trabalho e a apanhar um táxi para casa, do outro lado do rio, porque não conseguia conduzir naquela aflição (e com analgésicos). Tive de escolher isso ou as dores de cabeça horríveis que tenho agora, nos dias que antecedem o período, e a possíbilidade de coágulos sanguíneos mesmo tendo má circulação. Isto, ou aquilo? E nada é isento de dor. E porque continuam a demorar tanto a diagnosticar a endometriose quando a mulher se queixa d dores excruciantes? Porque és mulher, aguentas com certeza.

Na última consulta ginecológica, o colo do meu útero foi salpicado com ácido acético, e isto enquanto estava ali, de pernas abertas, com duas pessoas ao meu redor e uma dor excruciante na lombar, porque... já disse que quando o período vai vêm as dores na lombar? Antes não tinha, será da pílula? Será de ser mulher? Por sorte, não houve biópsia. Havendo, e estando já à beira do desmaio, teria com certeza perdido os sentidos. Sem anestesia. Porquê? Parece-me muito importante despistar cancro, mas porquê fazê-lo de um modo tão horrível que receio regressar àquele gabinete, repetir aquele exame? Os homens passam por procedimentos do género sem a ajuda da ciência analgésica? Pela primeira vez, numa maca de hospital e com um espéculo dentro de mim, ouvi uma médica dizer, quando me encolhia: Isto não é fita, dói-lhe mesmo. Estes úteros jovens são muito sensíveis.

Significa que não sofro sozinha, sofremos todas, mas não sofremos juntas. Porque não sofremos juntas? Porque é que há tantas mulheres na ciência e continuamos a ter de passar por procedimentos dolorosos sem que se busquem alternativas, e a assumir responsabilidades que, na realidade, são de todos?

Ser mulher dói. Tem doído muito nestes 31 anos. E há-de doer mais, se vier tudo o que descrevo acima...

Ciência, porque não te lembras de nós?

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