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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

14
Abr25

Sobre Mulheres Unidas na Arte e os Epítetos Artísticos


celiacloureiro

No dia 13 de abril de 2025, a escritora e cronista Ana Bárbara Pedrosa (ABP), publicou um texto de opinião intitulado “Qual literatura feminina?”. Como gosto de estar atenta ao que se discute no meio cultural português (ademais entorpecido pela rede de amiguismo que junta todos os ditos relevantes às mesmas mesas, de jurados, de festivais, de críticos, dificultando muito a possibilidade de criticar o trabalho e a opinião dos conterrâneos com imparcialidade), fiz uma leitura atenta das suas reflexões e decidi pôr a minha veia de investigadora, e pensadora, ao serviço desta causa. Começando pelo ponto que me visa pessoalmente, e que portanto estaria à partida mais propícia a defender com argumentos sentimentais, optei por recorrer a alguns factos para tentar compreendê-lo e justificá-lo. Comecemos por aí e pela evidente confusão que a ABP faz entre “associação/clube” e “produção artística”.

 

Um Clube de Mulheres Escritoras

Um clube, de mulheres escritoras ou de qualquer outro aglomerado de associados, constitui necessariamente uma marca a representar e a defender, em rota de colisão com “tudo o que a literatura [arte] não pode ser”? Será que associarmo-nos compromete o livre pensamento e a liberdade para criar?

 

Em 1855, surgiu a “Society of Female Artists”, atualmente “The Society of Women Artists” no Reino Unido, com o objetivo de “celebrar e promover as belas-artes criadas por mulheres”. A organização oferecia às mulheres a oportunidade de “expor e vender as suas obras”, tendo promovido exposições a partir de 1857.[1]

Do outro lado do Atlântico, algumas décadas depois, surgia a “National Association of Women Artists, Inc”, cujo mote, pelo menos ao dia de hoje, é “Empowering Women Artists since 1889”. A respeito dessa associação, encontro a seguinte descrição, que pode perfeitamente aplicar-se à atualidade: “A história da NAWA é um testemunho da força e resiliência de um grupo de mulheres fortes que não admitiram que as excluíssem de salões artísticos, galerias e exposições de arte abertos a artistas do sexo masculino durante o século XIX”.[2]

“Shakespearean Basketball Team”, 1909, in the University of Northern Iowa Photograph Collection, Box 10, Folder 1, ORG 5 Literary Societies, Shakespearean, Rod Library, University of Northern Iowa.

Também em 1877, se me permitem o salto temporal, surgia a “Alpha Society” no Iowa, “a primeira sociedade literária feminina”, com o propósito de permitir que as mulheres acedessem a um espaço até então exclusivamente reservado aos homens. A essa associação de mulheres é ainda reconhecido o mérito de ter estimulado a criação de muitas outras organizações femininas, algumas constritas ao campus universitário e à literatura, e outras que abriram espaço para as mulheres nas competições de basquetebol feminino, por exemplo.[3]

Um salto de sensivelmente um século leva-nos à Califórnia onde, em 1982, Harriet Williams e Virginia Laddey ficaram “horrorizadas ao descobrir a escassez de autoras do sexo feminino representadas nas listas de leitura dos liceus da região”. A fim de mudar uma realidade que ainda hoje prevalece (e basta recordarmo-nos do primeiro cartaz apresentado pelo Festival Literário de Penacova para 2025), as duas uniram-se para criar “The Festival of Women Authors”, cuja missão passa por levar o trabalho de autoras contemporâneas aos leitores e encorajar novas autoras a escrever.[4]

Na homenagem a Virginia Woolf, que lutou ativamente por uma maior representatividade das mulheres no espaço literário, a Livraria Lello recorda as suas palavras no seu sítio web: “para poder dedicar-se à escrita, uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só seu”.[5] Sem lugar nos escaparates das livrarias do seu tempo, Virginia e Leonard Woolf, seu marido, fundaram a Hogarth Press (1917) e publicaram obras de muitos dos seus colegas do grupo Bloomsbury. Concordo com a ABP, um grupo exclui os "outros" e transforma a sua produção cultural num nicho. Que maravilhoso este nicho!

Berthe Morisot, Le Berceau

Por último, o Metropolitan Museum of Art partilha a odisseia de um grupo que se autointitulou "Sociedade Anónima de Pintores, Escultores e Gravuristas" que, a partir de 1874, organizou exposições por sua conta, à margem da corrente estética em voga na época, marcando o início do movimento Impressionista. A Societé, à qual pertencia Degas, Monet e Pissarro, admitiu a participação da pintora Berthe Morisot, cuja obra também não tinha lugar nos salões convencionais[6]. O que os unia? A busca por espaço para divulgar, discutir e, quem sabe, até mesmo rentabilizar o seu produto cultural. Assim, concluo que a marca a ser defendida nos primeiros casos é a mesma que rege o CME, enquanto a “marca” defendida pelo último exemplo é o Impressionismo e a união enquanto força contracorrente. Não creio que isso os homogeneizasse nem os reduzisse a um conglomerado de pessoas em defesa de uma marca, limitados por um rótulo, quando muito uniam-se em defesa de uma causa: a do rompimento com as limitações do realismo. Muito menos acredito que a sua produção artística fosse menos “arte” porque estavam “alinhados” com outros colegas de ofício. Quem diz sociedade, diz clube.

 

O que une as mulheres no núcleo do CME, e que a APB reproduz no seu texto a propósito de práticas associativas que “menorizam” a literatura, rotulando-a de “feminina”, é que “Temos em comum a paixão pela escrita e a convicção de que, juntas, podemos levar mais longe a literatura escrita por mulheres”. Como membro do Clube, gostaria de dizer que a nossa ideia é original, ou que é a primeira vez que uma associação de pessoas com um ofício idêntico se une para lutar por objetivos comuns. Nem sequer somos visionárias ao fazê-lo em nome da Arte, porque outros fizeram-no anteriormente, sem prejuízo da qualidade ou dos rótulos que pudessem vir a ser impostos à sua produção.

Como é natural, unirmo-nos enquanto mulheres para promover literatura escrita por um grupo historicamente marginalizado pelos círculos intelectuais também tem muito pouco de original. O ideal seria que não houvesse necessidade de lutar por essa causa que já deu origem a tanto associativismo. A ABP receia que isso sugira que nos posicionados em defesa da “literatura feminina” quando, na realidade, nos insurgimos a cada intervenção contra a ideia de que exista essa distinção na literatura que, como bem reconhece, parece nivelar o nosso trabalho por baixo. Será que a existência de clubes como este “marginaliza” as mulheres, ou esta espécie de organização continua a ser necessária como o era em 1855, refém da mesma missão, porque também as circunstâncias continuam longe de ser as ideais? Importa saber se sublinhar a diferença é contraproducente para a correção de iniquidades, e creio que não.

 

Feminilidade enquanto caraterística literária

A heterogeneidade que o CME proclama na sua génese permite-me discordar das minhas companheiras de luta em determinados temas. Discordo de classificar a literatura enquanto feminina em termos qualitativos; contudo, e talvez seja neste ponto que tomo outro rumo, também discordo de que a literatura escrita por mulheres não tenha “particularidades específicas”. Pesquisei a respeito deste tema – no sentido de sustentar a minha opinião, embora ciente de que haverá decerto argumentos a desconstruí-la, e encontrei um trabalho de Cheryl Lange, do Departamento de Línguas Modernas da Universidade do Wisconsin-La Crosse, intitulado: Men and Women Writing Women (...)[7], portanto, podemos estar já aqui perante potenciais diferenças na escrita de homens e mulheres, pelo menos quanto à forma como representam o sexo oposto. Lange observa que Judith Kegan Gardiner e Williamson, investigadores da área, acreditam que “homens e mulheres têm vidas distintas devido ao seu sexo; assim, essas diferenças de género estarão refletidas na sua escrita”. Parafraseando a ABP, a literatura faz parte da vida. E, na vida, homens e mulheres são diferentes. Lange (2008) cita Gardiner (1980): “Numa sociedade dominada por homens, ser um homem é diferente de ser uma mulher. Como resultado, os comportamentos que são tidos como apropriados para cada género encontram-se severamente limitados e polarizados”. Num mundo de Andrew Tates e Andrew Tates da Shein, vulgo Numeiros, este tipo de observação continua atual.

Ao elaborar as suas conclusões, Lange enumera as semelhanças e diferenças entre obras com estruturas relativamente equiparáveis escritas sobre mulheres, por estas e por homens. Conclui, por exemplo, que “as relações entre mãe e filha são mais fortes em romances escritos por mulheres”. Como é evidente, trata-se de uma pequena amostra, mas talvez valha a pena refletir na possibilidade de homens e mulheres serem efetivamente diferentes e, como tal, escreverem de formas diferentes, sendo ambas as abordagens à literatura válidas. Eu diria que há outras questões a ponderar, talvez até do ponto de vista estatístico. Por exemplo: qual será a percentagem de clássicos em tamanho gigante escritos por homens vs. mulheres? A que se deve a discrepância que julgo antever à partida? A mulher estaria à espera da invenção dos eletrodomésticos para dispor de mais tempo livre? De ser admitida no espaço académico? Assim sendo, talvez possamos considerar que as mulheres são-no primeiro (ou foram-no, historicamente), e só depois puderam ser escritoras. Isso desvaloriza a sua arte?

E sim, infelizmente, a literatura escrita por homens continua a ser literatura per se, e não foram as sociedades de autoras a criar essa divisória, pelo contrário.

 

Epítetos literários e literatura em nichos

Sou obrigada a concordar que criar nichos para avaliar a literatura segundo rótulos (ou gavetas de bugigangas) é prejudicial e redutor para a boa literatura, além de que a rotulagem das obras é muitas vezes fruto de estratégias de marketing (o mercantilismo) das editoras. A visão da ABP parece alinhada com a do CME neste ponto, porque lutamos ativamente para acabar com essa distinção. Por outro lado, discordamos em relação à necessidade de ter prateleiras de literatura feminina em livrarias, ou livrarias apenas votadas à divulgação e comercialização de obras de mulheres. Porquê? Ver o que foi dito acima acerca da necessidade de continuar a lutar por espaço.

Assim, e de um ponto de vista da crítica literária, também sou a favor de se eliminarem os epítetos literários. Contudo, num mundo ideal, o crítico, enquanto pessoa, não seria minimamente abalado pela autoria da obra. No mundo real, o crítico é influenciado pelo nome que assina a obra. Diria que também aqui encontramos compartimentos, sendo os mesmos: amiguismo, género, colega de painel de jurados, colega de editora, colega da Universidade de Lisboa (Nova ou Clássica), sobrenome, parentesco. É ingénuo da parte da ABP considerar que o maior perigo que ameaça a crítica isenta é a classificação da literatura enquanto “feminina” ou “per se/masculina”.

Por outro lado, enquanto consumidores de literatura, não nos movemos todos pela preferência de nichos? A própria ABP, quando escolhe levar para casa Besson, Knausgård e Goethe, não está a ir buscar as suas leituras ao nicho dos talentos literários incontestáveis, por mais chatos que sejam? Não estará a seguir uma bitola que alguém – quiçá o mercantilismo literário – lhe apontou?

 

Autoria irrelevante

Não há dúvida de que a Arte não deve ser analisada à luz da sua autoria, mas sim do conteúdo, já Marx o dizia ao elogiar Balzac, em tudo oposto aos seus ideais. É também isso que defende o Clube, convidando os leitores a refletir se de facto existe uma literatura feminina e uma literatura masculina (para mim, apenas em termos qualitativos), e, não existindo, como concordamos com ABP que não existe, como se justifica que o espaço no mundo literário seja sobretudo concedido a vozes masculinas, que dominam cartazes, prateleiras, júris e a perceção pública de que a literatura pelas mãos de um homem, para parafrasear a autora da reflexão, é intrinsecamente superior àquela que sai das mãos de uma mulher.

Relativamente a ser-se primeiro mulher e só depois escritora por definição, gosto de acreditar que Hemingway era primeiro um bêbedo, e depois escritor. Que Woolf era, antes de mais, uma mulher profundamente deprimida, como o era Sylvia Plath. Esta ideia de sermos “apenas e só” criadores de arte é tão contemporânea quanto nociva. Para criar, é preciso viver.

Se tiver de ser alguma coisa antes de ser escritora (e sou muitas), que a primeira de todas seja mulher.

Despeço-me cordialmente, agradecendo à ABP a oportunidade de refletir sobre estes temas.

 

[1] HISTORY | SWA Site

[2] About Us – National Association of Women Artists, Inc. | NAWA

[3] Highlight: Women's Literary Societies | Special Collections and University Archives

[4] Literary Women | Festival of Authors | About

[5] Virginia Woolf e o papel da mulher na literatura

[6] Impressionism: Art and Modernity - The Metropolitan Museum of Art

[7] Men and Women Writing Women: The Female Perspective and Feminism in U.S. Novels and African Novels in French by Male and Female Authors

05
Abr25

Dilema literário: subtexto e final


celiacloureiro

Amy Beager (título ? / ano ?)

Não é fácil escrever um romance, e não é fácil pôr um ponto final num romance. Nunca escrevi um livro partindo do mero relato do dia-a-dia de alguém, navegando de acontecimento banal em acontecimento banal. Lembro-me que era isso que me incomodava na escrita da MRP quando comecei a lê-la, nos anos 2000. O "levantei-me, fui até à casa de banho, lavei os dentes, a cara, depois entrei no duche e regulei a água para a temperatura que achei confortável. Depois de me secar, fui até à cozinha, abri um pacote de bolachas e encostei-me ao balcão. Pensei: tenho de telefonar à EDP" nunca me disse nada. Isto são, muitas vezes, histórias de personagens à deriva no vento, à espera que venha um acontecimento (tantas vezes uma coincidência) que valide a narrativa. Atenção, há ótimos livros sobre personagens à deriva no vento. Vejam À Espera no Centeio, de J. D. Salinger, mas, mesmo aí, a deriva é mais emocional do que geográfica (embora também o seja), rotineira. Há pouco de interessante em relatar aquilo que é o quotidiano de todos. Quem sabe, daqui a um século, valha a pena saber como era a rotina de um cidadão do início do século XXI, logo após a viragem do milénio. Como literatura contemporânea, peca por secura.

Feita esta introdução, admito que ando às voltas com o subtexto do romance que estou a terminar. Trata-se de uma história concluída pela primeira vez em 2006, quando eu tinha 16 anos. Como é evidente, estava impregnada do meu romantismo juvenil, dos meus sonhos de futuro, de amor cego e ingénuo. Ainda assim, considero que há qualquer coisa que merece ser salva nesse enredo, então repesquei-o, mais uma vez  depois de várias tentativas de o reescrever , limpei-o dessa aura juvenil e creio que nunca estive tão próxima de o levar a bom porto. O objetivo não é, como não pode ser, agradar o leitor. Nem, tão pouco, falar ao leitor. Quando muito, pode ser convidar o leitor a refletir sobre o que ali se expôs. Posto isto, importa ponderar na forma de fazer chegar a mensagem. Porque, julgo que à semelhança de todos os meus livros, esta narrativa carrega reflexões importantes.

Eu não gosto de esfregar explicações na cara do leitor. "Maria bateu à irmã quando a viu abrir um presente melhor do que o seu porque tinha ciúmes da sua relação com os pais". Maria bateu à irmã quando a viu abrir um presente melhor do que o seu, ponto. O leitor saberá tirar as suas conclusões. Não gosto de dizer, no primeiro capítulo, que a personagem tem uma má relação com a mãe, para depois, no terceiro, lembrar que "uma vez que se dava mal com a mãe..." Caí nesse erro com maior gravidade no meu segundo livro, O Funeral da Nossa Mãe. É um crime de repetição que só serve para aborrecer o leitor. Ainda que muita gente tenha conseguido extrair a seiva desse livro, outros debateram-se com essa enxurrada de lembretes. É preciso livrarmo-nos do medo de que o leitor esqueça, de que não perceba. E, quando somos subtis, ou quando guardamos segredos enquanto contamos uma estória, é mais fácil cair nessa tentação. É neste ponto que me encontro encurralada.

Sei como o meu livro acaba. Na verdade, comecei-o com uma motivação, mas logo encontrei outra, que considero ainda mais pertinente. Sei o local exato onde cada personagem estará, no final. Conheço os seus sentimentos em relação ao que foi narrado, conheço os seus corações, as suas mágoas antigas e as novas. Contudo, não basta narrá-lo. A literatura, como o cinema, dispõe de uma câmara que aponta para um ângulo específico da trama. A título de exemplo, em Get Out, a expressão de puro terror, as lágrimas involuntárias de Chris Washington bastam para perturbar a audiência. É, talvez, mais aterrador do que ver, por exemplo, outra personagem a afiar uma faca com ar ameaçador. Em Atonement, Joe Wright mostra a devastação de Dunkirk pelos olhos de Robbie, atirando a audiência para o meio do caos e roubando-lhe(s) a esperança de um resgate bem sucedido. Ao mesmo tempo, a sequência de quatro minutos acompanha Robbie e os seus companheiros de armas, focando-se neles, na sua dificuldade em processar o que estão a ver, em navegar por entre destroços, em escapar ao horror da guerra e à degradação do estado físico e psicológico dos outros soldados, com cavalos a serem abatidos em pano de fundo, documentos e equipamento militar a serem destruídos e jovens a cantar Dear Lord and Father of Mankind, poema no qual se exalta a beleza da paz. Foi este ângulo que Wright escolheu para transportar o público para a Normandia de 1940, e não outro que se limitasse a mostrar uma praia arrasada, gente encardida de olhos encovados e um pianinho triste ao fundo. Há camadas de emoção e estratégias para o alcançar. Podemos dizer que o realizador estava a tentar emocionar o público, como podemos dizer que, profundamente comovido e comprometido com o episódio devastador que estava a encenar, o realizador optou por esta abordagem por a saber alinhada com os seus sentimentos e, assim, possivelmente, também com os da audiência. Espreitem aqui a cena em questão.

Uma vez clarificado aquilo a que me refiro como "ângulo", e consciente da importância desse ingrediente, estou perante algumas limitações, como o facto de a história ser contada sempre e apenas a partir do ponto de vista da personagem principal que criei em 2006. Por outro lado, tenho a liberdade do tempo, e tenho ainda a liberdade de poder quebrar com o ponto de vista único da personagem num epílogo, por exemplo, emprestando-o a outro interveniente na história. Sei o que acontece, como já estabeleci. Só não sei até onde quero contá-lo. Imaginemos que sei que as personagens vivem felizes para sempre — um final muito ao gosto dos irmãos Grimm. Se fosse uma telenovela, o último episódio poderia incidir sobre o casamento dos dois pombinhos, com as restantes personagens ao redor, felizes e airosas. Se fosse um filme romântico, terminaria com uma corrida desenfreada no aeroporto e uma declaração de amor emotiva. Se fosse do género comédia, terminaria com o casal no meio do caos doméstico, com filhos barulhentos e um cão felpudo. Se fosse um conto de fadas, terminaria com a queda do vilão e o casalinho a avançar para o pôr-do-sol, montados num cavalo branco. Se o final fosse triste, poderia acabar com alguém a desaparecer ao volante de um carro, numa estrada muito longa (é possível que tenha recorrido a isto em Os Pássaros). Se o final fosse em aberto, bem... vocês sabem, corta-se a coisa depois de dar sugestões de possíveis desfechos, para que o público imagine, mas tenha pelo menos bases em que se apoiar.

Neste caso, o final não é aberto. A história termina da mesma forma desde 2006, o meu dilema está em quanto revelar depois da resolução final das personagens. Quanto explicar dos motivos que as levaram àqueles três dias de escapismo, sem tratar o leitor como burro, sem me repetir, sem repisar pontos que as personagens, para quem tudo isso é óbvio, não teriam interesse em repisar? Deixo que o leitor leia os sinais? Confio nessa sua capacidade, num mundo de desatenção em que eu própria sofro desse déficit, para unir pontas no fim?

O equilíbrio a encontrar é entre manter-me subtil ou plantar, propositadamente, um ou outro indício do que vem aí. Mas, mais importante ainda, do porquê de tudo, quando a leitura terminar. Não quero levar o leitor a concordar ou a discordar, a perdoar nem a julgar, mas apenas a refletir com base em toda a informação disponível. Agora, quanta informação disponibilizo?

Supunhamos que, a dada altura, as personagens conversam sobre um crime que, para o outro, é imperdoável. No final do livro, tendo a outra personagem cometido o tal crime que sabe que é imperdoável para a primeira, vale a pena ressalvar "eu sabia que, para x, isto era imperdoável!"? Neste ponto, tendo a optar por não o sublinhar, e por esperar que os leitores cheguem sozinhos a essa conclusão. Não só que, para o primeiro, o tal crime cometido pelo segundo é imperdoável, como também à conclusão de que o segundo está plenamente ciente disso. Idealmente, talvez o subentendam do estado de espírito geral da personagem.

Outra questão, imaginem que queremos mostrar o porquê de a personagem z ter cometido o tal crime, tudo isto no campo hipotético, não estou a dar spoilers do livro mas, quem sabe, do tal subtexto do livro. Vale a pena desfiar um background que o mostre? Ou basta um diálogo sucinto, uma explicação clara mas breve ou, como os americanos e os britânicos adoram, um aceno de cabeça, cujas lacunas o leitor depois preenche com tudo o que acabou de ler a respeito da dita personagem?

Como leitora, gosto muito de preencher lacunas. De fazer o puzzle. De dizer Ah, foi por isso que...! Então foi assim! Contudo, já percebi que há dois tipos de livros que pecam perante o leitor contemporâneo: os que explicam de mais e os que explicam de menos. Então, como encontrar o equilíbrio entre o que revelar e o que guardar? Também aqui, parto sempre do princípio de que devo escrever para mim, enquanto leitora. Teria apanhado aquela pista? Hum, depende. Estaria atenta? O trecho é especialmente aborrecido? O livro tem 120 páginas ou tem 670? Principalmente, quem são os meus leitores e com que disposição partem para os meus livros, agora que estou a ponderar fazer-lhes chegar um nono? 

Enfim, é neste ponto que me encontro. Acredito que só irei conhecer o último capítulo no último instante. Até lá, ficarei à espera de um ângulo de naturalidade que não destoe das cores do resto (laranja, verde-floresta, verde-musgo, ocre), e que não procure arrancar piedade nem condenação ao leitor. Não gosto de dar lições de moral nas minhas obras, embora, às vezes, não consiga evitá-lo (em Demência, talvez?)

O leitor que julgue: ao escritor cabe apenas narrar a história nos termos que esta exigir ser contada.

03
Abr25

A liberdade de dizer alarvidades


celiacloureiro

Há um discurso predominante na atualidade, proferido por pessoas bem-intencionadas, que me preocupa bastante. Isto de apelar para que que a liberdade de expressão dos mal-intencionados seja silenciada é-me preocupante. Levanta várias questões pertinentes, a primeira das quais: quem são os mal-intencionados, e o que define essa má-intencionalidade. A segunda questão implica que calar as eventuais boçalidades que nos ofendem é assumir que ofendem a sociedade em geral, que o meu pensamento está alinhado com o da maioria, que pertenço a uma cultura una e homogénea, com uma base social, educativa e económica semelhante, com as mesmas oportunidades e portanto perspetivas de futuro, com as mesmas dificuldades e desafios diários, com o mesmo código de valores. Portanto, que haveria consenso quanto ao tipo de discurso que pode ser propagado, e o tipo de discurso que deve ser silenciado. Isto é, que há um encontro cultural, geracional, étnico e ideológico no seio de uma nação quanto a questões que se têm levantado nas últimas décadas (ou até mais recentes).

Não acho que seja moralmente correto cingirmos a liberdade de expressão a quem pensa contrariamente a nós, determinando que pensamentos são corretos e aceitáveis, e que pensamentos são intoleráveis e devem ser abafados, esmagados, porque, de alguma forma, a sua liberdade de expressão é nociva. No passado, sempre que um governo, representando uma nação, por via democrática ou não, definiu o que pode ou não ser dito pelos cidadãos, pelas entidades, em esfera pessoal ou pública, o regime era ditatorial. A História definiu que essas ditaduras eram prejudiciais para o bem-estar dos cidadãos, em geral. Que um governo não pode exigir um pensamento único, um consenso em relação a uma religião, a uma corrente política, a uma convulsão social, a um movimento combativo atual. É necessário que  haja contestação, debate, confronto, é desses embates que o pensamento maioritário emerge e prevalece, e não pode haver equilíbrio se a maioria for silenciada em prol de minorias. Para que a sociedade funcione, é preciso que haja espaço para que cada um se exprima e viva a sua individualidade sem penalizações. A situação complica-se quando a liberdade de um grupo ameaça a do outro, mas é alarmante decidirmos que livros podemos queimar, e quais devemos guardar.

A esquerda moralista é mais ativa nesse apelo ao silenciamento da direita conservadora, dita preconceituosa, retrógrada e cruel (é o que sugere o subtexto desses discursos). Criminalizar os comportamentos racistas, a discriminação com base em sexo, etnia e outras individualidades parece-me necessário, porque me parece que uma sociedade equitativa pressupõe que todos os cidadãos que a compõem mereçam o mesmo tipo de respeito e de tratamento, sobretudo por parte das instituições públicas. Contudo, exigir o cancelamento, a remoção de certos intervenientes, com base em opiniões pessoais, ou da esfera do privado, porque ofendem, parece-me perigoso. A História provou que é perigoso. Não é sensato assumirmos que estamos do lado “certo” quando silenciamos opiniões distintas das nossas. A liberdade de expressão pressupõe que todo o pensamento é válido, a menos que seja criminoso. E há que ter cuidado com o que se criminaliza. Também acho que é importante que se possam dizer alarvidades, como concluí da conversa entre Ricardo Araújo Pereira e Tomás Magalhães, no podcast Despolariza, porque me parece igualmente importante debater, desmantelar, destruir as alarvidades que consideramos intoleráveis, com vista à construção da tal homogeneização de opiniões, que precisa do seu tempo para se estabelecer.

João Pedro George foi, recorrendo às etiquetas de que dispomos atualmente, misógino e machista nos seus comentários em relação à escritora Madalena Sá Fernandes, na medida em que comentou a sua postura nas redes sociais, o seu corpo e o seu sorriso numa conversa para a qual nenhum desses elementos vinha a propósito. Penso que, até aqui, o pensamento seja consensual: foi um comportamento ignóbil, uma alarvidade de que talvez até o próprio já se tenha apercebido, uma atitude que descredibilizou muito do que disse, no mesmo espaço, sobre o tema em discussão: um livro da autora à luz da crítica literária, com a subreflexão, igualmente pertinente, a respeito do espaço que o mesmo conquistou no meio literário português. A definição de machismo e misoginia enquadra-se perfeitamente nesta apreciação descabida da imagem e da postura da autora. A sua abordagem manchou os argumentos de que se valeu, talvez suportados pela sua longa experiência e conhecimento enquanto sociólogo e crítico, e que pôs em causa a qualidade do seu parecer em relação a questões anteriores, em obras como Couves & Alforrecas, Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto, ou Chatear o Camões, Inquérito à Vida Cultural Portuguesa, que me encontro de momento a ler. E é uma pena porque, depois deste episódio, fiz um levantamento das bandeiras do JPG, acompanhei algumas das suas intervenções em plataformas como o Youtube, ouvi a sua entrevista sobre a biografia de Fernando Pessoa, que me parece promissora até pelo modo como pesquisou para a elaborar, recorrendo a relatos da sobrinha do autor, e escutei atentamente as denúncias que tem feito a respeito da promiscuidade no panorama cultural português. Concluí, desencantada, que a sua perspetiva sobre este meio complementa a minha.

É preciso coragem para denunciar o amiguismo no meio cultural em Portugal, uma bravura que não é necessária quando se critica a vida política do país. É aceitável que se tenha opiniões divergentes quanto a políticos, ao caráter dos políticos, às suas motivações, honestidade ou falta dela, relações e rede de influências. No mundo cultural – talvez devido à subjetividade do valor do produto cultural – é impensável levantar-se suspeitas, acusações, sobre as conquistas de determinado indivíduo. É impensável discutir-se a sua qualidade, uma vez legitimada pela opinião de Y, o blurb Z ou o prémio literário X.

Como diz o próprio JPG algures, se falarmos em termos genéricos há consenso: sim, é provável que haja nepotismo, amiguismo, compadrio, troca de favores, entre autores, júris, instituições culturais, meios de comunicação, etc. Há-o em todo o restante meio português, porque não na Cultura? O problema é quando se nomeia alguém.

Vejamos um exemplo. Em 2021, a TVI concedeu a Francisca Cerqueira Gomes o papel de protagonista numa telenovela do canal. Levantaram-se imensas vozes, inclusivamente do meio da cultura – atores e atrizes –, a condenar o facto de a jovem ter sido beneficiada pelo canal, presumivelmente através da influência da mãe, do número de seguidores, etc., em detrimento de profissionais que estudaram para o efeito e que não obtém as mesmas oportunidades porque não estão nas boas graças de quem manda no canal. Como consequência, FCG perdeu o papel e não pôde “cumprir o seu sonho”, segundo entrevista na SAPOMAG (7 de abril 2021). Não houve dúvidas quanto a condenar esta escolha por parte da TVI, não houve dúvidas quanto à motivação para a concessão desta oportunidade a FCG, nem quanto à justiça de a ver afastada porque a oportunidade era “forjada”. Quantos cidadãos terão opinado que FCG foi eleita para protagonista apenas e só porque se destacou no casting que a TVI garante que realizou na Plural? Sem que a posição da mãe no canal, ou o peso da sua presença nas redes sociais, ou simplesmente a sua beleza e porte, tivessem contribuído para essa escolha?

Repare-se nesta questão que, quanto a mim, é crucial: a TVI é gerida pelo grupo Media Capital, com fundos privados, e deve poder investi-los como bem entender. Ainda assim, a indignação do público teve esse efeito: travou aquilo que se entendeu ser uma injustiça para com os profissionais “sérios” da cultura.

Por outro lado, quando surgem rumores de que determinado autor beneficiou de determinada benesse, com recurso a fundos públicos, a maioria dos discursos acusam o crítico de inveja, má-fé, e um rol de outros argumentos, e não admitem que outros profissionais possam ter sido prejudicados por esse favoritismo. Porque, através da Cultura, o Estado Português vem erigindo os ídolos intocáveis do país desde 1974, com a conivência do povo, que se manifesta sobre tudo, menos sobre aquilo que receia que o faça soar ignorante.

Há uma relação de facto promíscua entre quem estabelece o que é qualidade cultural no país e os postos que ocupa em instituições culturais que se regem também através de financiamento público, com forte contributo da comunicação social, jornais e instituições-chave que fazem circular entre si as oportunidades que existem na área da Cultura. Apoiando o trabalho de um artista, dando-lhe espaço de divulgação, validando-o através de opiniões tidas como fundamentadas, colocando-o nos sítios certos, à hora certa, é possível fabricar-se um ídolo cultural, ludibriar o país, através da validação concedida por esses nomes/instituições-chave, convencendo-o de que isto é o melhor que a cultura tem para oferecer, e que a carreira da pessoa x merece visibilidade, investimento e projeção, por ser de qualidade indiscutível. O CV da pessoa vai-se construindo em torno dessas oportunidades concedidas, muitas vezes, com recurso a investimento público.

Como é evidente, há aqui um casamento entre intervenientes públicos e privados, sendo que os privados se deixam levar à boleia das vantagens que essas colaborações lhes trazem, nem que seja a simples validação, para uma editora, de vozes que se tornaram portentos da cultura à boleia do Estado. Há vários casos que podem ser analisados por esta perspetiva, mas, seguindo a ideia abordada acima de que falando genericamente, sem apontar nomes, é mais fácil levar à concordância do público, parto de Chatear o Camões, Inquérito à Vida Cultural Portuguesa, para montar o puzzle abaixo:

Imaginem que, no início da década de 90, é inaugurada uma Casa Museu de Literatura, na posse da CML. Como diretora, é escolhida a senhora X. Três anos depois, decidindo-se liberar financiamento para uma revista literária gerida pela dita Casa Museu de Literatura, é selecionado, para seu diretor, o marido da senhora X. A senhora X torna-se, posteriormente, Secretária-Geral da Casa YY. Dois anos depois, o marido recebe o prémio literário de poesia que mais significado poderia ter para a Casa YY em Portugal, atribuído por uma universidade que não consta como colaborando oficialmente com a Casa YY, mas que organiza vários eventos em parceria com a Casa YY, e divulgam iniciativas mútuas nas redes sociais e outros meios de comunicação. De modo que, ainda que a título informal, há evidências de comunicação e de colaboração entre as duas entidades. 

Imaginem que o senhor Y, advogado, pertenceu à primeira comissão administrativa pós-25 de Abril, foi deputado da Assembleia Constituinte, foi Secretário de Estado da Segurança Social e diretor do primeiro canal público do país, foi administrador da INCM e vice-presidente do P.E.N. Clube português (entidade que, a partir de 1980, passou a atribuir prémios literários em colaboração com o IPL, mais tarde DGLAB), tudo isso até à década de 80. Nos anos 90, recebe um prémio literário da instituição que presidiu e, nos anos 80, recebeu dois prémios literários de uma Câmara Municipal cuja orientação política coincide com a sua, fora muitos outros que, de momento, não tenho tempo nem disposição para investigar.

Imaginem que o senhor Z, grande vulto da cultura em Portugal, na qualidade de presidente de uma comissão para a organização de uma exposição a nível internacional sediada em Lisboa, na década de 90, vê as suas decisões financeiras auditadas e condenadas pelo Tribunal de Contas, num documento obviamente público, onde se destaca a prevalência de ajustes diretos, a derrapagem sucessiva do orçamento e a conclusão de que um projeto que deveria ter resultado em lucros para o Estado Português resultou num prejuízo avultado. O mesmo senhor Z, volvidos meia dúzia de anos, está no conselho de administração de outra grande instituição cultural portuguesa, uma fundação também financiada pelo erário público. Sem esquecer, obviamente, que este grande vulto dinamizador da cultura portuguesa também foi agraciado com dois prémios literários, já depois da auditoria do Tribunal de Contas, atribuídos por outros município do país e com financiamento público.

Posto isto, há ainda quem recuse a ideia de que a cultura se reja por amiguismo, e não por mérito. Que os autores elogiados na comunicação social, entrevistados, com tempo de antena, cuja qualidade é legitimada por esses mesmos meios de divulgação, pelas instituições X e Y, administradas pelos senhores Z e W, são todos exemplos isentos e imparciais daquilo que de melhor se cria em Portugal. Ainda que muitos consigam romper as malhas da promiscuidade em torno dos fundos para a credibilização das grandes figuras da cultura em Portugal, há muitos escritores que, talvez sem o pedirem, muito menos sem o exigirem, são levados ao colo por essa rede cerrada que decide quem entra no clube e quem não é bem-vindo. É difícil acreditar que o convívio em delegações, comissões, eventos, festivais, etc., não crie um tecido de afetos que depois é transposto para a distribuição de oportunidades. Basta ver como o vencedor do prémio de literatura X, com o aval do membro do júri Y, premeia o concorrente Y assim que se vê na posição de júri, volvidos dois ou três anos, quase como uma retribuição pela cortesia inicial. Também isto não é uma suposição, é um facto que pode ser consultado online por quem tiver interesse em realizar um inquérito ao mundo cultural português. Contudo, devo avisar-vos de que as conclusões irão deixar-vos maldispostos, por isso partam para a investigação com o frigorífico atestado de Água das Pedras.

Por último, e ainda que concordando que JPG se comportou como um alarve em trechos dolorosos de assistir no terceiro episódio de Quinteto Literário, é urgente que não o cancelemos. Que não amordacemos o discurso de pessoas como ele que, à guisa de crítico literário, vai denunciando a vergonha que é termos um meio cultural refém de uma teia de influentes tecida no pós-25 de Abril. Atrevo-me a dizer que a mesma está já a transitar para a segunda geração, e que há muito pouco de coincidência na consagração da genialidade dos intelectuais portugueses. Basta ver que, nestes três episódios, JPG se dispôs a discutir o que se escreve em Portugal, os fenómenos de popularidade nacionais, e não figuras intocáveis, como Goëthe, sobre as quais já se disse e escreveu (quase) tudo.

30
Mar25

Tinta


celiacloureiro

Estou a entrar no último mês que vou viver com este jardim idílico no Redondo, antes de me mudar definitivamente para a minha casa. Há dias, refletia sobre isso. Sobre o adaptarmo-nos. Vivi a vida toda em Almada, mas não sinto falta nenhuma da cidade onde passei 35 anos. Gosto daqui. Gosto de descobrir as subtilezas que a geografia imprime nas pessoas. Ontem, ao pequeno-almoço, quatro idosas discutiam a morte no café. Descreviam o esqueleto do pai de uma delas, que foi exumado seis anos após o sepultamento. Outra dizia que levou porrada, imensa porrada, mas que não morreu por isso. Sou uma sortuda. Parece que o maior fardo que terei de arrastar comigo, pela vida fora, é o desta neurodivergência. De resto, parece-me que a violência ficou para trás. 

Faz-me bem estar perto da natureza, embora lute por fortalecer o coração. Vejo raposas, gatos, ouriços mortos nas bermas das estradas. Sustenho a respiração a cada vez que um pássaro cruza o meu caminho em voo picado. Temo, sobretudo, a impiedade do verão alentejano.

Hoje, reorganizei o meu novo romance. Acabei de pintar um quadro. Depois, conforme o sol se punha, estive apenas sentada, sem nada para fazer, a olhar a fileira de oliveiras para lá da cerca. Fui à lenha, limpei a salamandra, preparei o fogo para logo. Por todo o lado, abelhas. Comigo, a toda a hora, a arte, a criação, sob qualquer forma. Sempre insisti em viver fora de mim, penso que seja isso que me espera pela vida fora. No final, serei um conjunto de trabalhos melhor ou pior conseguidos. Letras e cor. Papel e tinta.

 

14
Mar25

Os maus também morrem


celiacloureiro

Na sexta-feira passada, quando fui à minha aldeia buscar o meu irmão e os colegas de labuta de volta a Évora, para o autocarro rumo a casa, reparei numa coisa. Na casa em frente à minha, um pouco abaixo na rua, um dos vidros da porta principal estava partido. No seu lugar, ondulava um pedaço de plástico inútil. Não sou nenhuma santa, mas sempre que me apercebo de algo que creio poder remediar, tento fazê-lo.

Sabia que a pessoa que vivia nessa casa era um homem magro, na casa dos setenta (talvez um pouco mais novo, mas bastante debilitado), sempre acompanhado de uma bilha de oxigénio, tal como o meu avô. À semelhança do meu avô, igualmente magro e mais ou menos da mesma estatura, era grande apreciador de cigarros e usava uma boina de lã. Vi-o poucas vezes, a última delas sentado nesse degrau, diante da porta cujo vidro então me incomodou.

Disse ao meu irmão que podíamos ver se tínhamos algum vidro, do muito material de que ainda nos falta desfazer-nos, que pudéssemos disponibilizar-lhe. Talvez o meu irmão pudesse mesmo instalá-lo? Não sei, era uma janela específica de alumínio, e não custa indagar. A coisa ficou arrumada para esta semana.

Na segunda-feira, ao fim do dia, de volta à aldeia, o meu irmão comunica-me, com algum pesar, que o senhor tinha morrido e que o funeral havia sido no domingo. Uma estranha coincidência, mesmo porque, no início da obra, o meu irmão e o colega criaram alguma empatia e proximidade com o senhor. O senhor tinha uma casa e um terreno uma casa acima da nossa, em ruínas, e deixou-nos tirar tijolos e estacionar ali o carro em troca... de cigarros. Certo, não se deve dar cigarros a alguém que claramente tem os pulmões comprometidos, mas acredito que haja um código entre quem depende de nicotina, do género não se nega um cigarro a um irmão. A dada altura, apercebendo-se de que o senhor pedia cada vez mais cigarros, coisa que evidentemente não lhe fazia bem, decidiram começar a negar-lhos. Como consequência, o senhor afastou-se e o contacto resumiu-se a um aceno quando se cruzavam de frente na aldeia.

Nós já sabíamos que o senhor não se dava bem com a família, porque tínhamos abordado o tema do terreno em ruína, que ponderei comprar, sem poder fazê-lo porque o senhor explicou que pertence a uma série de herdeiros, todos de costas voltadas entre eles.

Hoje, ao retomarmos o assunto, o meu irmão diz que, durante quase um ano, sempre viu aquele homem sozinho, à janela ou sentado no degrau de casa, sempre na companhia da fiel bilha d oxigénio. Agora, passada menos de uma semana desde a sua morte, já apareçam familiares para visitar a casa vazia, já repuseram o vidro na janela. Em breve, segundo ele, haverá uma placa de imobiliária a anunciar a venda do imóvel. Senti pena do senhor, da sua solidão que poderia ter testemunhado da minha janela da cozinha. Não obstante, nas aldeias todos se conhecem. Consta que o senhor teve imensa gente a estender-lhe a mão. Ainda assim, optou por viver com a mãe, nunca se interessando por ter uma família ou uma carreira. Foi para o estrangeiro trabalhar, mas regressou logo depois, rejeitando a oportunidade concedida por um parente. Terá tido um historial de drogas e prisão. Para mim, era só o senhor da bilha de oxigénio, parecido com o meu avô. Afinal, parece que era violento e, possivelmente, explorava a mãe, que partiu poucos anos antes de ele próprio. Parece que "não se dava com ninguém".

Refleti no tema enquanto conduzia de volta a casa, por entre paisagens idílicas que se por fim se encheram de luz depois de uma semana de chuva constante. Quem irá recordá-lo? Quem irá guardá-lo na lembrança? Daqui a quanto tempo terá sido totalmente esquecido?

Pois é, os "maus" também morrem. Não só morrem, como também se evaporam.

12
Mar25

Desatentas


celiacloureiro

A vida no campo tem acalmado o meu espírito e a minha alma, tem-me permitido dedicar-me a paixões novas e às de sempre, mas, como previa, não é suficiente para mitigar esta bênção e esta maldição que é a PHDA. Muita gente, inclusive próxima de mim, com um olhar direto para a minha rotina (ou falta dela) e desafios, já se pronunciou sobre o facto de esta condição não ser “desculpa para tudo”. Claro que não, quero acreditar que eu existo para lá dessa perturbação. Porém, condiciona muito do que sou e, sobretudo, muito do que faço ou que deixo de fazer.

Ontem, passei um tratamento para madeira na mesa de cabeceira que ando a restaurar. Abri o frasco, altamente inflamável e cheio de truques, e pensei “não posso perder esta tampa”, ainda por cima vermelha e vistosa. Passei mais de uma hora a percorrer o jardim, para cima e para baixo, à procura da dita cuja tampa quando terminei o trabalho. Arrasto-me devagar, porque não vale a pena perder a cabeça, revoltar-me contra mim própria. É o meu normal: perder um tempo injustificado, cansar-me desnecessariamente, para realizar tarefas simples que não fui capaz de executar bem à primeira. Entrei em casa, procurei na caixa das ferramentas, no saco do lixo, nos bolsos do robe. Voltei a sair e a percorrer o jardim, mesmo as partes que pareciam um pântano por causa da chuva, que tem sido constante. Chap, chap, chao. Os cães andavam entretidos com os seus ossos da discórdia, por isso não estava com eles. Além disso, eu lembrava-me de ter pensado que não podia perder aquela tampa. De entre todas as tampas, aquela. Desisti de procurar o dito pedaço de plástico mais de uma hora depois, depois de apalpar e revirar o saco do lixo duas ou três vezes, depois de esvaziar e voltar a encher a caixa de ferramentas, depois de procurar e voltar a procurar nos bolsos do robe, no chão, sobre as superfícies, dentro das gavetas, etc. Parece algo que alguém escolhesse para si? Parece que alguém seria assim se pudesse evitá-lo?

            De volta ao jardim. Apática, medicada para a PHDA com Elvanse, subi-o e desci-o. Já não sabia quantas vezes o havia feito. E pensei no tempo que passa e na falta de produtividade de que tanto sou acusada. Como ser produtivo quando precisamos de uma hora ou mais, diariamente, para corrigir disparates? É desmotivante, cansativo, insuportável. Há dias em que, para não errar, nem apetece sair da cama.

            Hoje fui almoçar ao Intermarché do Redondo, porque tinha mesmo de lavar roupa nas máquinas industriais do parque de estacionamento. Uma vez mais, vim protegida pelo Elvanse. É crucial que consiga avançar no meu trabalho, porque já estou uma vez mais atrasada com uma deadline. Dói-me que pensam que acontece porque não me importo, ou porque sou irresponsável, ou porque não tenho os outros e os seus compromissos em consideração. Eu esforço-me. Eu canso-me. Não estava deitada, nem a ler um livro, por muito que me apeteça, nem a ver televisão. Estava a andar para cima e para baixo no jardim, profundamente desiludida comigo mesma, frustrada, à beira das lágrimas. É possível que, se alguém for espreitando por cima da cerca ao longo da minha vida, seja sempre este o cenário que vai encontrar:

            Eu de braços caídos ao lado do corpo, a caminhar devagar, a olhar em redor, a espreitar debaixo de pedras, por entre a vegetação, dentro dos vasos, a tatear os bolsos, a suspirar, apática, de cenho franzido e lábios pressionados. Irritada. Cansada. À procura de qualquer coisa insignificante – mas crucial – que perdi. Acabei por desistir e tapei a rolha com um pedaço gigante de plástico, para pelo menos reparar e não o entornar quando voltar a pegar-lhe.

            Na noite do dia 3 de março, em Paris, decidi reencaminhar os bilhetes da Disneyland para o grupo da família. As crianças estavam excitadíssimas, é gratificante poder conceder-lhes uma experiência que estava a anos-luz de nós durante a nossa infância. Sabia que iam adorar e que, mais novos ou mais velhos, seria algo que iria proporcionar-lhes muitos sorrisos e alegria. Reparei que os bilhetes, que desde o primeiro dia assumi serem para o dia 4 de março, tinham, na verdade, a informação de que eram válidos apenas para o dia 3. O dia que se aproximava rapidamente da meia noite. Pensei que logo resolvia o problema no dia seguinte. No meio dos azares, até costumo ter sorte.

            Acontece que no dia seguinte, perante as cancelas do parque temático mais famoso do mundo, fomos barrados. O bilhete era realmente apenas válido para o dia 3, e não havia garantia de que viesse a haver qualquer reembolso. As crianças estavam alerta, assustadas com a hipótese de não poderem atravessar um torniquete para o mundo de maravilhas que andávamos há meses a prometer-lhes. Não hesitei. Peguei no telemóvel, no cartão de crédito, e comprei os bilhetes todos de novo. Sete bilhetes para a Disneyland Paris, comprados em cima do joelho perante a cancela. Lá entrámos e tentei abster-me de mais essa distração ruinosa. Como funciona o meu cérebro, tentei compreender mais tarde. A resposta não tardou a encontrar-me. A lógica foi – deve ter sido – que não iria comprar os bilhetes para a terça-feira de Carnaval (4), porque o parque estaria muito cheio, por isso optei por adquiri-los para o 3 de março. Contudo, o que guardei em mente foi que íamos à Disney no Carnaval.

            A conta foi elevada, mais um prejuízo em cima de um ano é que os tenho cometido aos magotes. Não é algo exclusivamente meu, é a maldição de quem sofre de déficit de atenção. E depois a culpa, a insegurança quanto às nossas próprias capacidades, o medo da rejeição, do desafeto, que nos faz assumir os prejuízos, pedir desculpa uma e outra vez, recear chamar os outros à razão quando, logicamente, nos sentimos injustiçados.

            Hoje, aproximei-me do balcão das refeições no Intermarché e esperei pela minha vez com a bandeja sobre o apoio. Fui escolhendo a refeição, analisando os preços, mudando de ideias uma e outra vez. Enquanto isso, pelo menos duas pessoas passaram à minha frente, dirigindo-se diretamente à caixa para pagar pedidos menores. Quando se sentaram com os seus cafés e sobremesas, a empregada deu as costas ao balcão e começou a arrumar a louça lavada a uma velocidade estonteante. Foi evidente que estava ocupada, mas perguntei-me se seria a prioridade correta: arrumar louça quando não havia mais ninguém atrás de mim e quando estava ali há, pelo menos, quinze minutos. Olhando sobre o ombro, a senhora lá reparou em mim. Continuou a mover-se com a eletricidade com que estivera anteriormente a lavar a louça, mas houve algo que se destacou de imediato: pediu-me desculpas uma, e outra, e outra vez. Pareceu que estava a ver-me ao espelho. Tanta subserviência. Não é que tenha medo do patrão, de ser repreendida ou despedida. Simplesmente, assumiu que foi outro dos seus erros constantes e desdobrou-se em pedidos de perdão. Explicou exaustivamente que estava concentrada a arrumar a louça, que tinha imenso que fazer, que tentava desdobrar-se em mil e que, simplesmente, não me tinha visto. Esforçou-se ao máximo por me atender com diligência, foi simpática e, ainda na caixa, antes de pagar, voltou a pedir desculpa outra vez. Por essa altura, já estava atenta a todos os sinais de PHDA. Então, saí de detrás do balcão e apresentei-me perante o terminal de multibanco, para pagar. Estava de jardineiras e com uma camisola oversize por baixo, enrodilhada em torno da cintura. Ela deu um salto e disse, de imediato: ainda por cima está grávida e fi-la esperar! Ao que eu, com a minha própria impulsividade, respondi Não estou grávida, mas fiquei a saber que estou gorda. E a mulher voltou a ficar mortificada, voltou a desdobrar-se em desculpas. A dada altura, disse algo do género: eu e esta boca, falo sempre sem pensar.

            Sentei-me depois de lhe garantir, uma vez mais, que estava tudo bem. Acontece. Eu também sou distraída. Enquanto comia, fui ouvindo as suas conversas com os clientes e os colegas. Toda a gente parece conhecer-se, e ela era realmente extrovertida (ou parecia), falava muito e estava em toda a parte ao mesmo tempo. Entre as corridas e os pedidos de desculpa que continuei a testemunhar, levantei-me para ir buscar um pacote de açúcar para o café e aconselhei-a a considerar a possibilidade de ser hiperativa. Ela disse que talvez seja, a rir-se, a levar tudo com leveza e brincadeira. Mas continuou a pesar o assunto e, enquanto eu comia, voltei a ouvi-la dirigir-se para um colega e dizer: sei lá, às vezes não sei o que estou a fazer, deve ser de ser hiperativa, ou psicopata, ou lá o que é. Outra pessoa poderia ficar ofendida com as suas palavras, mas eu ri-me. Esta inconveniência também é minha.

            Depois de lhe pedir uma caixa para levar o que sobrou da comida, com o espaço mais vazio, pude perguntar-lhe algumas coisas, e tudo o que ela disse me levou a acreditar que tenha realmente PHDA. Diz que dorme mal. Bebe seis e sete cafés por dia, sem que “façam nada” e, ainda antes de me ir embora, ouvi-a dizer a uma cliente sua conhecida que estava sem telemóvel, porque o tinha perdido. Escrevi-lhe PHDA por extenso no verso da minha fatura e entreguei-lho, pedi-lhe que veja disso. Voltou a pedir-me desculpa, disse que está cansada porque anda sempre a fazer mil coisas ao mesmo tempo, e para a chamar quando for assim, caso ela não repare em mim. Disse que, às vezes, se pergunta se tem Alzheimer. Era algo que eu costumava perguntar-me muitas vezes, antes do diagnóstico.

            Enquanto tirava a roupa já seca da máquina industrial, refleti sobre o quanto a sociedade é injusta para connosco, mulheres, e também para com as pessoas que sofrem deste tipo de condição. Somos acusados de preguiça quando nos esforçamos muito mais do que os outros – não por vontade, mas porque é necessário para atingirmos objetivos vagamente semelhantes. Passamos os dias a colar os cacos do nosso comportamento desatento, desastrado. Passamos a vida a pedir desculpas. E a sentir-nos inadequados, de algum modo diferentes, incapazes de realizar tarefas que os outros fazem com uma perna às costas. A resistência sobrenatural a coisas simples, rotineiras, o congelamento perante assuntos que não nos estimulam, não nos oferecem nada de novo.

            É uma sorte sermos aceites. É uma sorte termos quem nos ame apesar de toda a incompreensão. O que vos peço? Que sejam meigos no julgamento dos outros. E que não deixem de se lembrar de que as mulheres – as vossas filhas, mães, irmãs – podem estar a passar por isto sem qualquer ajuda, sem compreensão de si mesmas e do próprio comportamento –, porque o diagnóstico de PHDA demora décadas a chegar ao sexo feminino.

18
Fev25

Chapéu de palha


celiacloureiro

Imagem WhatsApp 2025-02-18 às 19.02.33_c40222e8.jHá sempre uma espécie de inquietude em mim, mas há muito que não sentia estar onde pertenço. Fez ontem um mês e 10 dias que vivo no Alentejo, e precisamente um mês que vivo numa pequena aldeia a poucos quilómetros do Redondo. Hoje, enquanto despachava uma série de recados de manhã, passeava por aquelas ruas e perguntava-me porque tive tanto medo de me afastar de Lisboa, porque tracei um raio tão próximo da minha velha vida para vir enraizar-me. Fui mal vestida - é um perigo, a pessoa cede ao conforto e descura a estética, pus roupa a lavar numa máquina industrial de rua e fui comprar 20 metros de cerca. Por toda a parte onde peço informações, as pessoas desviam-se do seu caminho para me dar indicações. Os jovens ajudam os idosos, eu icei um escadote para uma carrinha de caixa aberta e o funcionário da drogaria carregou as paletes. Onde quer que vá, tenho onde estacionar. Tudo funciona a um ritmo lento, a uma cadência humana e conversadora, em que as pessoas realmente se relacionam umas com as outras. Fui aos CTT e fiquei a saber que o senhor não era de lá, como eu não sou de cá. Fui às piscinas municipais e fiquei um bocadinho desiludida com o horário da natação livre, mas haja resiliência, retomo em breve. Comprei a rede e um chapéu de palha com uma fita às florinhas.

Passei a tarde a montar a cerca para evitar que os cães perturbem os borregos do vizinho. Estava vento, chuviscava, o cão tentava arrancar-me as luvas dos bolsos, o outro ladrava ao vento depois de saltar o muro atrás do qual tentei retê-lo. Naquelas condições, no meio dos arbustos do quintal para aceder à cerca existente, por vezes até com folhas na boca, com John Mayer a tocar no bolso do casaco e as mãos despidas, torci o arame uma e outra e outra vez. Usei o alicate, estendi a rede. Não estou habituada a trabalho físico, doía-me tudo, mas persisti até a chuva me impedir de continuar. Foi então que me ocorreu o pensamento: prefiro montar cercas no Alentejo a voltar a trabalhar num escritório em Lisboa. E é verdade. A sensação de peito cheio que tenho experimentado não tem par. A solicitude das pessoas, a verdadeira camaradagem, cooperação... Gosto de estar metida no meu canto, mas é mais fácil quando sentimos que estamos rodeados de bons corações. Nem um espirro. Nem uma lágrima. Na estrada de acesso à minha aldeia, as amendoeiras já estão em flor. Por toda a parte garças, grous, pegas, ovelhas, vacas, cavalos. A exuberância da natureza inspira-me e enche-me de calma, de uma felicidade tranquila e basilar. 

Que eu encontre aqui a minha casa, porque não me imagino mais feliz noutra.

30
Jan25

O Fosso


celiacloureiro

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Quando minimizam o trabalho de uma escritora como eu, ou como alguns dos muitos escritores que conheço, homens e mulheres, que não tiveram a sorte de um juri composto por três ou quatro pessoas ter adorado o seu trabalho a determinado momento e achado que o mesmo era digno de uns milhares de euros, de uma editora com visibilidade, de eventos de promoção e de um lugar de destaque entre os pares, uma posição vitalícia no estrelato elitista do nosso meio cultural, fico triste. Pior do que triste, fico mesmo muito chateada. Não digo "desiludida", porque não espero nada do meio cultural do meu país. Não espero que passem as ver as obras em vez dos nomes que as escrevem, nem que deixem de nomear e premiar conhecidos e amigos sempre que se encontram como juris de um prémio/bolsa/apoio/residência literária. Há premiados por mérito, não há dúvida disso, mas é sempre uma pequena fração do nosso dinheiro e do interesse público a ser verdadeiramente contemplada.

Nunca achei que haver mais autores prejudicasse o meu rumo, para mim, quantos mais melhores. O sucesso ou insucesso de outro autor não interfere com a minha caminhada nesta estrada. Manifesto-me, sim, contra o facto de haver dinheiros públicos que deveriam ser direcionais aos portugueses (a quem lê, a quem escreve), e que são manipulados pelo mesmo círculo desde 1974. Não duvidem de que tudo neste país é político, é uma rede de contactos que abre portas através de contactos e que, volta e meia, concede um docinho à "oposição", para disfarçar o facto de existir, sim, um monopólio da cultura em Portugal.

 

Alguns são vítimas de editoras mal intencionadas, outros nunca chegam a ver a porta das editoras aberta, alguns têm de escrever quando os filhos já foram dormir e demoram anos a concluir um romance.

Quando alguém de uma posição de privilégio abre a boca para criticar a literatura feita pelos novos autores portugueses, aqueles que continuam a produzir literatura porque os leitores os acarinham, os abraçam, estão a desrespeitar-me não só a mim, não só o trabalho por detrás dos 7 livros que escrevi, revi, publiquei e divulguei nos últimos 14 anos, sem qualquer tipo de ajuda, mas também os milhares de leitores que os leram, se emocionaram, perderam tempo a recomendá-los, a fazer reviews, a refletir sobre o seu conteúdo e a seguir a pessoa que os escreveu e que o faz de forma honesta e abnegada, não como profissão, não em busca de dinheiro, prestígio, fama. Mas porque lhe é essencial escrever, e porque, desse lado, continuam a ler-me.

Sempre escrevi e sempre escreverei, em primeiro lugar, para mim. Sem agendas políticas nem temas politicamente corretos, sem dizer o que querem ouvir nem procurar criar polémicas. Escrevo sobre o que me incomoda. Depois, publico (é diferente) porque há quem goste de me ler e porque acredito que devo disponibilizá-lo a essas pessoas. Ler faz bem, e se o que escrevo fizer bem a alguém, ótimo. É por esses leitores que procuro abrir mais espaço para a minha literatura e dos meus pares. Para que vos chegue, vos dê prazer, vos desconcerte. Não escrevo nem nunca escrevi para obter apoios, para ganhar dinheiro, para sair em revistas, para lamber botas ou para me auto-validar. Não escrevo para os pares e muito menos para juris ou lobbys. Escrevo porque é o que sou. Publico porque me leem. O saldo é negativo: perco mais do que ganho. No fim das contas, não saberia fazê-lo de outra forma.

Para concluir, quando abrimos a boca para falar mal dos livros, desses autores e autoras que andam por aí, em bando, generalizando, sem conhecer, sem ler, estamos ainda a desrespeitar e a minimizar o trabalho das editoras que apostaram nessas obras, nos editores que se debruçaram nelas durante horas e que decidiram apostar nelas.

Segundo essas pessoas, o mercado está a crescer, os livros são cada vez mais lidos, comentados, adquiridos, emprestados, porque estamos todos errados. Somos todos burros, incultos, uns iliterados. O nosso país é um país de ignorantes, para essas pessoas. De escritores mercenários e de leitores sem dois dedos de testa.

Não gosto do mundo dessas pessoas. Há muito livro por aí que não gosto, que não leio, mas há muito que adotei a máxima "é melhor ler um livro fraco do que não ler nada". A leitura é um caminho árduo, comecemos sem o peso do sbonismo. Leiam, leiam. Qualquer livro mau é melhor do que livro nenhum.

E, felizmente, Portugal tem muitos livros bons. E não são só os que a elite aprova.

10
Jan25

A minha vida dava um filme turco


celiacloureiro

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Ultrapassada a era dos filmes indianos como os mais dramático-inverosímeis, introduzo uma nova etapa na minha vida: a dos filmes turcos. Desde dia 7 que vivo em Évora, eu e os dois cães, numa casinha alentejana de 20m2. Ainda falta alguns meses (quero acreditar, na melhor hipótese, que sejam três) para que possa mudar-me para a minha própria casa. Entretanto, sou nómada.

As aventuras começaram quase desde o início, desde precisar de ajuda para conseguir abandonar a minha casa (o tempo voa e eu sou só uma), dormir no chão, lidar com um cachorro de dois meses e meio arraçado de capetinha, outro cão medroso, e a roda-viva de gente a entrar e sair da casa que, ao fim de sete anos, abandonei na terça-feira passada.

Saí de Almada ao crepúsculo, com o que restava da casa às costas e um cheque de cinco dígitos que não consegui depositar porque, como a minha vida dava um filme turco, a porta eletrónica/automática do meu banco estava "fora de serviço". Conduzi cansada, exausta, a ouvir música boa, com um cão a dormir e ressonar e o outro a remexer-se, inquieto.

Em Évora, passei bem na primeira noite, frio na terceira e estava a ver, há pouco, que ia passar calor na quarta. Isto porque, ontem, o quadro começou a disparar em intervalos cada vez mais próximos. Deitei-me sem luz, sem bateria nos aparelhos, sem frigorífico a arrefecer nem aquecedor a funcionar. Gelada. Hoje, tinha um único compromisso, além do trabalho, que era urgente: levar o meu irmão à rodoviária de Évora para o autocarro das 17h30.

O quadro elétrico, que ontem ainda se ia ligando a intervalos esporádicos, não ligava de todo. Eu, sem ter lavado o cabelo ontem, olhei-me ao espelho: patilhas oleosas, pele ressequida (do frio), cabelo digno de um acidente ferroviário. Sem dizer que não trouxe calças, à exceção das rotas e manchadas de tinta que trazia no corpo. Contei 7 camisolas, 0 calças nas malas. Não podia tomar banho, porque o termoacumulador não aquecia desde a noite anterior. Descobri que os cães só tinham um resguardo. Não podia ligar o fogão (elétrico) para fazer café nem comer o pão duro porque a torradeira também estava fora de questão. Liguei ao proprietário do AirBnB, que me fez esperar apenas meia hora e que tentou despistar o problema. Incapaz de o fazer, pediu ao eletricista da sua confiança que viesse à casa, e o mesmo prometeu vir depois de almoço. Tive de me resignar aos factos: não ia poder trabalhar nem tomar banho. Vesti o casaco por cima do pijama (não conseguiria vestir roupa lavada sem tomar banho) e propus-me a sair para ir, apenas, buscar os resguardos e uma manta para os cães, além de uma mopa para secar as constantes intervenções da esfregona. Como me perco (seja fisicamente, seja em pensamentos), era uma da tarde quando terminei o recado. Pensei em dar um pulo ao Évora Plaza para almoçar, posto que não saberia quando poderia comer e ainda nem tinha tomado o pequeno-almoço. Para meu azar, há logo uma Fnac à entrada, e eu queria um caderno para poder desenhar enquanto não tivesse bateria/internet. Entrei a sorrir, de mãos nos bolsos, a pensar "que sorte que não conheço ninguém em Évora, posso andar à vontade mesmo neste estado deplorável". As pessoas aqui são super vagarosas, não é mito, e estava uma senhora postada mesmo diante dos cadernos que eu queria espreitar, em busca de um com folhas que servissem também para aguarela. Quando pedi licença à pessoa para que se desviasse, dou de caras com a minha professora de Literatura, cujo trabalho sobre a Madame Butterfly submeti há cerca de três semanas. O meu choque e horror... Comecei por explicar a minha vida toda, sem sequer lhe permitir dar-me as boas tardes: estou em mudanças, a casa não está pronta, estou temporariamente num AirBnb, não há eletricidade no AirBnb, quer dizer, há, mas não desde ontem, não pude tomar banho, não sei das calças de ganga, ainda nem comi... Foi uma chamada à Terra: não andar armada em sem-abrigo (com todo o respeito aos que o são por força das circunstâncias) em Évora.

Há dois dias também vivi uma aventura assustadora. Decidi ir mudar o carro de uma rua paga para um estacionamento gratuito e, uma vez que os cães estavam a pirar numa casa tão pequena, decidi levá-los. O Peanut é medroso, o Balú ainda não tem o reforço da vacina e sair é altamente desaconselhado, além de que o peitoral foi comprado à pressa no chinês e o feltro abria constantemente. Contudo, achei que faria melhor ao desgraçado do cão gastar um pouco da sua energia num passeio de 100 metros até ao carro a continuar trancado e a enlouquecer, a ir buscar a bolinha a 2 metros de distância num loop infinito.

Acontece que, ao regressar, parámos num semáforo movimentado. O cachorro, que passeou alegremente e não demonstrou medo em nenhum instante, decidiu assustar-se quando um camião se aproximou. Eu estava de olho no Peanut, que tremia como um chihuauha perante as demonstrações de afeto das minhas sobrinhas, e o Balú deu um safanão no peitoral e... Desatou a correr pela estrada na direção oposta. Quando dei por mim, estava a correr e a gritar atrás dele, com o Peanut e a trela com o malfadado peitoral a reboque. Consegui apanhá-lo - por milagre - e a partir daí seguiu ao colo. Só quando estávamos seguros e ele a dormir no meu colo é que percebi a irresponsabilidade que tinha cometido. E, também, que já amo este Capetinha. 

Quando o eletricista saiu hoje do AirBnb, por volta das 16h00, depois de identificar um fio terra em contacto com outro (?) dentro de uma tomada, a sobreaquecer e a fazer disparar o quadro, pude finalmente tomar banho e ir buscar o meu irmão. Acontece que, antes disso, o proprietário ainda quis resolver a questão do ar condicionado, que liga e trabalha ruidosamente, mas não aquece. Era o filtro e, depois de o lavar e secar (com os cães a fugirem para a rua e eu a persegui-los uma vez mais, mas é um beco sem qualquer movimentação de veículos), despediu-se. Era tarde, mas recusei-me a voltar a sair toda sebosa. Como pessoa que sofre de défice de atenção, às vezes penso que estou a despachar-me super rápido, mas na verdade não. Esperei um pouco pela água quente do termoacumulador e, quando estava prestes a sair de casa, vi que eram 16h50 e eu tinha ficado de apanhar o meu irmão às 16h45. A casa estava a arder por causa do ar condicionado, mas não consegui encontrar o comando e fui-me embora, a trotar até ao carro, ciente de que teria de fazer o percurso a 130km/hora se quisesse ter alguma hipótese de o meter naquele autocarro até às 17h30, estando ele a 25 km de distância (50, com a ida).

Arranquei de Évora atordoada, com a cabeça a fazer cálculos e a sobreaquecer, percorrendo o caminho que já percorri dezenas de vezes até casa. Desta vez, como a minha vida dava um filme turco, enganei-me no caminho. Fui dar ao mesmo sítio, mas desconfio que perdi uns 3 minutos na brincadeira (apontem). De seguida, ao aproximar-me da Route 66 (batizámos assim a estrada que liga Évora à minha aldeia isolada), detetei um carro lento à minha frente. Como não me atrevo a ultrapassar ninguém na route, soube que teria de o fazer no preciso instante em que ele acionou o pisca para a direita e virou para lá. Contornei-o pela esquerda a toda a velocidade, apesar de isso implicar atravessar a banheira de água turva que se acumulava à esquerda do trilho. Segui imperturbada (a uma velocidade bem acima da recomendada, estou certa), até ver os dois salvadores da minha casa à distância. Parei o carro em duas rodas, eles saltaram para dentro e, ao voltar à Route 66 com os rapazes sentados, de cinto apertado e malas na bagageira, cruzei-me com o carro lento que tinha ultrapassado e que ficou assim a saber que a nova vizinha é doida.

O meu irmão sentou-se no carro as 17h18 e disse que não havia forma de conseguir apanhar o autocarro das 17h30. Eu disse-lhe que já tinha apanhado o autocarro para Almada muitas vezes e que, pelo menos o das 19h00, sai de Évora sempre com atraso de pelo menos 15 minutos. Decidi olear o acelerador para aumentar as suas probabilidades de chegar a casa a horas decentes. A dada altura, ele disse: o melhor presente é estar presente, ou uma variante disso, e percebi que era hora de lhe dar um cheirinho de travão.

Apanhámos um TVDE à nossa frente que, simplesmente, farejou o nosso desespero e fez questão de se arrastar a 30km/hora por mais de uns 3km, empurrando o relógio para as 17h33, guinando para a esquerda e para a direita a cada vez que eu, sequer, cogitava ultrapassá-lo. Mas estávamos a chegar e, se não fosse por ele, em vez de termos chegado às 17h38 teríamos chegado às 17h35, possivelmente a tempo de apanhar o autocarro. Isto, mais os 3 minutos perdidos à deriva pelas rotundas de Évora no início da odisseia, e de certeza que teriam conseguido apanhar o autocarro.

O próximo era às 19h00, de modo que, para me desculpar, paguei os novos bilhetes e convidei-os para uma bifana do Levy. Uma vez lá, os olhos dos rapazes voltaram a brilhar quando leram "choco frito" no menu. Acontece que havia um problema com a eletricidade e, por isso, nada de choco frito por um bocado, não tinham "como o fritar". É o costume. De seguida, um deles pediu Coca-cola, mas só havia Pepsi. Depois, pedi que incluíssem dois cafés na conta e a senhora tirou-os logo, deixando um dos meus convidados (e vítimas) desconsolado por ter de o beber frio, depois de comer. 

Lá entraram no autocarro das 19h00, que só chegou às 19h20, e eu voltei para "casa" a pé, à chuva, a ouvir a Someone That Cannot Love, do David Fonseca, debaixo de uma morrinha refrescante e com o astigmanismo a debater-se com os borrões das luzes de Natal por desmontar e os faróis dos carros. Se o TVDE me tivesse apanhado, depois de termos conseguido ultrapassá-lo e os rapazes o chamarem de santo aos berros, tenho a certeza de que teria alegado que tinha um problema no alinhamento da direção e o veículo tinha resvalado para a berma, passando-me involuntariamente a ferro. Mas pronto, isso não aconteceu, porque a minha vida dava um filme turco, não uma novela mexicana.

Fui a sorrir até à minha casinha dentro das muralhas, apesar da montanha de trabalho para terminar este fim-de-semana, do espaço útil de 20m2, dos cães aborrecidos, do cobertor que me dá alergia na cama. Parece que estou em casa. Há muito que não me sentia em casa. Ao abrir a porta, fui recebida pelo calor sufocante de um ar condicionado em pleno funcionamento. Agora, o fim-de-semana é meu sem interrupções, e a minha única preocupação é descobrir quem hackeou o meu Spotify e anda a adicionar-lhe playlists de forró.

24
Dez24

Balanço de 2024


celiacloureiro

Eu sei que o balanço de cada ano se faz no Ano Novo, mas eu prefiro fazê-lo agora, no Natal. É no Natal que faço o balanço das relações, das alegrias, das tristezas, sobretudo das ausências. 

Desde pequena, sempre adorei o Natal. Desde pequena, o Natal foi sempre uma altura complicada. Nunca sabia se a família ia estar reunida. Se ia haver harmonia, se ia haver tréguas. Se o meu pai ia estar bem ou chateado, porque em dias de maior carga emocional as dependências químicas também batem com mais força. Não sabia se a minha mãe ia aparecer e, aparecendo, se viria sóbria, alegre ou embriagada e cheia de acusações. Não sabia se ia ver os meus irmãos, estar com eles, e se eles estariam melhor ou pior do que eu.

Era costume que o Natal fosse época de generosidade, mas não de abundância nem de exageros, nem de mesa farta, nem de pessoas gratas por estarmos uns com os outros. Havia o tio amuado. A mãe amargurada, o pai desinteressado, a avó cansada e desanimada, o avô que só queria um copo de Porto e ver televisão sem que o aborrecessem. Os irmãos, quando vinham, os presentes, quando os havia. 

Ainda assim, sempre adorei as luzes de Natal. O cheiro do pinheiro natural que, aí até aos 12 anos, a minha vizinha trazia de um pinhal em Fernão Ferro todos os anos. A esperança - a cada ano mais ténue - de um milagre - de entendimento, de uma resolução para uma vida melhor. A avó a fazer um arroz doce de última hora, porque não havia dinheiro para mais e acabava por ceder às minhas insistências. O bolo rei, de que nunca gostei, que alguém oferecia ao avô. O Porto, sempre, oferecido. Às vezes, figos secos. O vapor das couves cozidas, do bacalhau na água borbulhante, a cozinha nessa nuvem com o cheiro caraterístico do Natal. Lembro-me do Natal com a minha bisavó, muito magra, tolhida pelo Alzheimer, mas sei que comia aquele bacalhau com couves como havia feito a vida toda, e com certeza que isso lhe traria alguma espécie de alento, de conforto familiar. A mesa da sala posta uma vez por ano. A melhor louça, as travessas do enxoval da avó. O meu pai a levar-nos a passear depois de jantar, para fazermos tempo até à meia-noite, e eu de mãos nos bolsos, a fazer figas para que nevasse, porque não custa sonhar e sempre sonhei mais ou menos alto.

Este ano, tenho sentido a falta de muita gente. Da avó, do avô, da minha mãe que, apesar das dificuldades durante toda a vida, acabava por se comover sempre no Natal, prisioneira das suas próprias boas lembranças, distantes, mas preciosas. Do meu irmão, que não tive coragem de chamar para junto de nós este ano, porque me faltam forças, coragem, disposição. É o último ano na casa onde vivi seis anos e nove meses. É o último ano em que vivi com as minhas irmãs. É o ano que começou em maio, quando percorri pela primeira vez a estrada ladeada de flores que conduz à minha nova casa, à aldeia que escolhi para viver, onde os vizinhos deixam sacos cheios de laranjas no Natal, e outros com romãs no outono.

É o ano em que decidi regressar à Universidade, descobrir se conseguia sobreviver - adaptar-me, sair-me bem - no ambiente académico. Foi um ano muito especial. Mais um ano em que a Sertralina ajudou a manter-me à tona, mas foi também o ano em que descobri que tenho déficit de atenção e em que pude recorrer ocasionalmente a medicação para trabalhar, para me manter alerta, responsável.

É o ano em que tive de pesar o que quero e o que já não quero, o que é importante e o que é acessório. Foi um ano pesado, difícil, mas também cheio de conquistas. Publiquei um romance que considero o meu melhor até hoje (bem sei que o favorito dos leitores é o Demência, mas este é o melhor, para mim). Escrevi e publiquei um livro sobre personagens históricas. Fui a inúmeros eventos, conheci imensos colegas autores, leitores. Abracei, beijei, aconselhei e fui aconselhada. Recebi o prémio de literatura Mais Alentejo, fui ao FLO, a Bragança, ao FALA, à rádio, ao A Nossa Tarde, à Feira do Livro de Évora, à de Lisboa, participei no Páginas com Graça. Foi um ano em torno de livros. Foi um ano cansativo, mas muito gratificante.

Que 2025 seja um ano para recalibrar. Para abrir mão de mais coisas que não têm importância e para abraçar com mais força, mais perto, as que têm. Que seja um ano de introspeção, criatividade e serenidade. De saúde, de estabilidade. Que o próximo Natal tenha a família reunida, em paz, e tocos de lenha a estalar no recuperador de calor. Que se ouça o repicar dos sinos da igreja alentejana da minha nova aldeia. Que a chaminé fumegue e a felicidade pura e simples nos enlace.

 

 

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