Sobre Mulheres Unidas na Arte e os Epítetos Artísticos
celiacloureiro
No dia 13 de abril de 2025, a escritora e cronista Ana Bárbara Pedrosa (ABP), publicou um texto de opinião intitulado “Qual literatura feminina?”. Como gosto de estar atenta ao que se discute no meio cultural português (ademais entorpecido pela rede de amiguismo que junta todos os ditos relevantes às mesmas mesas, de jurados, de festivais, de críticos, dificultando muito a possibilidade de criticar o trabalho e a opinião dos conterrâneos com imparcialidade), fiz uma leitura atenta das suas reflexões e decidi pôr a minha veia de investigadora, e pensadora, ao serviço desta causa. Começando pelo ponto que me visa pessoalmente, e que portanto estaria à partida mais propícia a defender com argumentos sentimentais, optei por recorrer a alguns factos para tentar compreendê-lo e justificá-lo. Comecemos por aí e pela evidente confusão que a ABP faz entre “associação/clube” e “produção artística”.
Um Clube de Mulheres Escritoras
Um clube, de mulheres escritoras ou de qualquer outro aglomerado de associados, constitui necessariamente uma marca a representar e a defender, em rota de colisão com “tudo o que a literatura [arte] não pode ser”? Será que associarmo-nos compromete o livre pensamento e a liberdade para criar?
Em 1855, surgiu a “Society of Female Artists”, atualmente “The Society of Women Artists” no Reino Unido, com o objetivo de “celebrar e promover as belas-artes criadas por mulheres”. A organização oferecia às mulheres a oportunidade de “expor e vender as suas obras”, tendo promovido exposições a partir de 1857.[1]
Do outro lado do Atlântico, algumas décadas depois, surgia a “National Association of Women Artists, Inc”, cujo mote, pelo menos ao dia de hoje, é “Empowering Women Artists since 1889”. A respeito dessa associação, encontro a seguinte descrição, que pode perfeitamente aplicar-se à atualidade: “A história da NAWA é um testemunho da força e resiliência de um grupo de mulheres fortes que não admitiram que as excluíssem de salões artísticos, galerias e exposições de arte abertos a artistas do sexo masculino durante o século XIX”.[2]
Também em 1877, se me permitem o salto temporal, surgia a “Alpha Society” no Iowa, “a primeira sociedade literária feminina”, com o propósito de permitir que as mulheres acedessem a um espaço até então exclusivamente reservado aos homens. A essa associação de mulheres é ainda reconhecido o mérito de ter estimulado a criação de muitas outras organizações femininas, algumas constritas ao campus universitário e à literatura, e outras que abriram espaço para as mulheres nas competições de basquetebol feminino, por exemplo.[3]
Um salto de sensivelmente um século leva-nos à Califórnia onde, em 1982, Harriet Williams e Virginia Laddey ficaram “horrorizadas ao descobrir a escassez de autoras do sexo feminino representadas nas listas de leitura dos liceus da região”. A fim de mudar uma realidade que ainda hoje prevalece (e basta recordarmo-nos do primeiro cartaz apresentado pelo Festival Literário de Penacova para 2025), as duas uniram-se para criar “The Festival of Women Authors”, cuja missão passa por levar o trabalho de autoras contemporâneas aos leitores e encorajar novas autoras a escrever.[4]
Na homenagem a Virginia Woolf, que lutou ativamente por uma maior representatividade das mulheres no espaço literário, a Livraria Lello recorda as suas palavras no seu sítio web: “para poder dedicar-se à escrita, uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só seu”.[5] Sem lugar nos escaparates das livrarias do seu tempo, Virginia e Leonard Woolf, seu marido, fundaram a Hogarth Press (1917) e publicaram obras de muitos dos seus colegas do grupo Bloomsbury. Concordo com a ABP, um grupo exclui os "outros" e transforma a sua produção cultural num nicho. Que maravilhoso este nicho!
Por último, o Metropolitan Museum of Art partilha a odisseia de um grupo que se autointitulou "Sociedade Anónima de Pintores, Escultores e Gravuristas" que, a partir de 1874, organizou exposições por sua conta, à margem da corrente estética em voga na época, marcando o início do movimento Impressionista. A Societé, à qual pertencia Degas, Monet e Pissarro, admitiu a participação da pintora Berthe Morisot, cuja obra também não tinha lugar nos salões convencionais[6]. O que os unia? A busca por espaço para divulgar, discutir e, quem sabe, até mesmo rentabilizar o seu produto cultural. Assim, concluo que a marca a ser defendida nos primeiros casos é a mesma que rege o CME, enquanto a “marca” defendida pelo último exemplo é o Impressionismo e a união enquanto força contracorrente. Não creio que isso os homogeneizasse nem os reduzisse a um conglomerado de pessoas em defesa de uma marca, limitados por um rótulo, quando muito uniam-se em defesa de uma causa: a do rompimento com as limitações do realismo. Muito menos acredito que a sua produção artística fosse menos “arte” porque estavam “alinhados” com outros colegas de ofício. Quem diz sociedade, diz clube.
O que une as mulheres no núcleo do CME, e que a APB reproduz no seu texto a propósito de práticas associativas que “menorizam” a literatura, rotulando-a de “feminina”, é que “Temos em comum a paixão pela escrita e a convicção de que, juntas, podemos levar mais longe a literatura escrita por mulheres”. Como membro do Clube, gostaria de dizer que a nossa ideia é original, ou que é a primeira vez que uma associação de pessoas com um ofício idêntico se une para lutar por objetivos comuns. Nem sequer somos visionárias ao fazê-lo em nome da Arte, porque outros fizeram-no anteriormente, sem prejuízo da qualidade ou dos rótulos que pudessem vir a ser impostos à sua produção.
Como é natural, unirmo-nos enquanto mulheres para promover literatura escrita por um grupo historicamente marginalizado pelos círculos intelectuais também tem muito pouco de original. O ideal seria que não houvesse necessidade de lutar por essa causa que já deu origem a tanto associativismo. A ABP receia que isso sugira que nos posicionados em defesa da “literatura feminina” quando, na realidade, nos insurgimos a cada intervenção contra a ideia de que exista essa distinção na literatura que, como bem reconhece, parece nivelar o nosso trabalho por baixo. Será que a existência de clubes como este “marginaliza” as mulheres, ou esta espécie de organização continua a ser necessária como o era em 1855, refém da mesma missão, porque também as circunstâncias continuam longe de ser as ideais? Importa saber se sublinhar a diferença é contraproducente para a correção de iniquidades, e creio que não.
Feminilidade enquanto caraterística literária
A heterogeneidade que o CME proclama na sua génese permite-me discordar das minhas companheiras de luta em determinados temas. Discordo de classificar a literatura enquanto feminina em termos qualitativos; contudo, e talvez seja neste ponto que tomo outro rumo, também discordo de que a literatura escrita por mulheres não tenha “particularidades específicas”. Pesquisei a respeito deste tema – no sentido de sustentar a minha opinião, embora ciente de que haverá decerto argumentos a desconstruí-la, e encontrei um trabalho de Cheryl Lange, do Departamento de Línguas Modernas da Universidade do Wisconsin-La Crosse, intitulado: Men and Women Writing Women (...)[7], portanto, podemos estar já aqui perante potenciais diferenças na escrita de homens e mulheres, pelo menos quanto à forma como representam o sexo oposto. Lange observa que Judith Kegan Gardiner e Williamson, investigadores da área, acreditam que “homens e mulheres têm vidas distintas devido ao seu sexo; assim, essas diferenças de género estarão refletidas na sua escrita”. Parafraseando a ABP, a literatura faz parte da vida. E, na vida, homens e mulheres são diferentes. Lange (2008) cita Gardiner (1980): “Numa sociedade dominada por homens, ser um homem é diferente de ser uma mulher. Como resultado, os comportamentos que são tidos como apropriados para cada género encontram-se severamente limitados e polarizados”. Num mundo de Andrew Tates e Andrew Tates da Shein, vulgo Numeiros, este tipo de observação continua atual.
Ao elaborar as suas conclusões, Lange enumera as semelhanças e diferenças entre obras com estruturas relativamente equiparáveis escritas sobre mulheres, por estas e por homens. Conclui, por exemplo, que “as relações entre mãe e filha são mais fortes em romances escritos por mulheres”. Como é evidente, trata-se de uma pequena amostra, mas talvez valha a pena refletir na possibilidade de homens e mulheres serem efetivamente diferentes e, como tal, escreverem de formas diferentes, sendo ambas as abordagens à literatura válidas. Eu diria que há outras questões a ponderar, talvez até do ponto de vista estatístico. Por exemplo: qual será a percentagem de clássicos em tamanho gigante escritos por homens vs. mulheres? A que se deve a discrepância que julgo antever à partida? A mulher estaria à espera da invenção dos eletrodomésticos para dispor de mais tempo livre? De ser admitida no espaço académico? Assim sendo, talvez possamos considerar que as mulheres são-no primeiro (ou foram-no, historicamente), e só depois puderam ser escritoras. Isso desvaloriza a sua arte?
E sim, infelizmente, a literatura escrita por homens continua a ser literatura per se, e não foram as sociedades de autoras a criar essa divisória, pelo contrário.
Epítetos literários e literatura em nichos
Sou obrigada a concordar que criar nichos para avaliar a literatura segundo rótulos (ou gavetas de bugigangas) é prejudicial e redutor para a boa literatura, além de que a rotulagem das obras é muitas vezes fruto de estratégias de marketing (o mercantilismo) das editoras. A visão da ABP parece alinhada com a do CME neste ponto, porque lutamos ativamente para acabar com essa distinção. Por outro lado, discordamos em relação à necessidade de ter prateleiras de literatura feminina em livrarias, ou livrarias apenas votadas à divulgação e comercialização de obras de mulheres. Porquê? Ver o que foi dito acima acerca da necessidade de continuar a lutar por espaço.
Assim, e de um ponto de vista da crítica literária, também sou a favor de se eliminarem os epítetos literários. Contudo, num mundo ideal, o crítico, enquanto pessoa, não seria minimamente abalado pela autoria da obra. No mundo real, o crítico é influenciado pelo nome que assina a obra. Diria que também aqui encontramos compartimentos, sendo os mesmos: amiguismo, género, colega de painel de jurados, colega de editora, colega da Universidade de Lisboa (Nova ou Clássica), sobrenome, parentesco. É ingénuo da parte da ABP considerar que o maior perigo que ameaça a crítica isenta é a classificação da literatura enquanto “feminina” ou “per se/masculina”.
Por outro lado, enquanto consumidores de literatura, não nos movemos todos pela preferência de nichos? A própria ABP, quando escolhe levar para casa Besson, Knausgård e Goethe, não está a ir buscar as suas leituras ao nicho dos talentos literários incontestáveis, por mais chatos que sejam? Não estará a seguir uma bitola que alguém – quiçá o mercantilismo literário – lhe apontou?
Autoria irrelevante
Não há dúvida de que a Arte não deve ser analisada à luz da sua autoria, mas sim do conteúdo, já Marx o dizia ao elogiar Balzac, em tudo oposto aos seus ideais. É também isso que defende o Clube, convidando os leitores a refletir se de facto existe uma literatura feminina e uma literatura masculina (para mim, apenas em termos qualitativos), e, não existindo, como concordamos com ABP que não existe, como se justifica que o espaço no mundo literário seja sobretudo concedido a vozes masculinas, que dominam cartazes, prateleiras, júris e a perceção pública de que a literatura pelas mãos de um homem, para parafrasear a autora da reflexão, é intrinsecamente superior àquela que sai das mãos de uma mulher.
Relativamente a ser-se primeiro mulher e só depois escritora por definição, gosto de acreditar que Hemingway era primeiro um bêbedo, e depois escritor. Que Woolf era, antes de mais, uma mulher profundamente deprimida, como o era Sylvia Plath. Esta ideia de sermos “apenas e só” criadores de arte é tão contemporânea quanto nociva. Para criar, é preciso viver.
Se tiver de ser alguma coisa antes de ser escritora (e sou muitas), que a primeira de todas seja mulher.
Despeço-me cordialmente, agradecendo à ABP a oportunidade de refletir sobre estes temas.
[2] About Us – National Association of Women Artists, Inc. | NAWA
[3] Highlight: Women's Literary Societies | Special Collections and University Archives
[4] Literary Women | Festival of Authors | About
[5] Virginia Woolf e o papel da mulher na literatura
[6] Impressionism: Art and Modernity - The Metropolitan Museum of Art
[7] Men and Women Writing Women: The Female Perspective and Feminism in U.S. Novels and African Novels in French by Male and Female Authors