A ditadura da cosmética (a indústria e a nossa conivência)
- ou como descobri que tenho a cara suja -
celiacloureiro
Há uns dias, horrorizei a funcionária de uma parafarmácia com um hábito chocante. Tinha-me dirigido à secção das marcas sonantes para procurar dois cremes que pesquisei primeiro online. É que as minhas sobrancelhas andam sempre a escamar durante o inverno, e agora a pele ao redor também estava a ficar vermelha e irritada. De modo que fui pesquisar e o meu amigo Google sugeriu que pode ser dermatite seborreica. Antes de marcar uma ida ao dermatologista, decidi comprar um creme adequado para esse meu autodiagnóstico e ver se a coisa funciona. Depois de me esclarecer quanto aos dois cremes que me puseram em dúvida, perguntou-me como lavava o rosto. E agora pasmem: lavo a cara com água. Umas vezes morna, outras fria. Pronto, é isso, sou uma porcalhona. Fora as vezes em que uso maquilhagem, que são muito poucas, e em que passo desmaquilhante (em creme, toalhitas ou águas micelares etc.), não tenho o chamado ritual de beleza. Aquela coisa do instagram e das revistas? "A rotina de beleza de ....?", nope, não tenho. Basicamente, eu acordo, tomo banho e saio de casa. Quando saio do banho, considero que a cara já está lavada, foi esfregada com a esponja de banho. Se estiver frio, seco o cabelo à pressa. Se não, vou mesmo com ele molhado. No fim do dia, desfaço os nós do cabelo e lavo a cara (com água, em várias vezes) do fumo, suor, gordurices do dia.
A senhora começou a falar no pH da água, dos cremes de supermercado, disto e daquilo, e tentou vender-me um frasquinho de uma água qualquer coisa com “extratos naturais”, suave e sem perfumes, para eu, digamos, tirar o surro da pele.
Saí de lá apenas com o meu cremezinho básico (já de si bem caro), depois de lhe explicar que já usei a emulsão hidratante da Avène, o sérum mineral da Vichy 89, e mais uma panóplia de porcarias que às vezes me dá para comprar e que depois de duas utilizações nunca mais uso. Por isso não, dispenso dermocosmética a esse preço e com essas funções.
Porquê? Porque detesto sentir coisas na cara. Detesto sentir maquilhagem, detesto sentir cremes. Sinto que a minha pele não está a respirar, e está a absorver uma quantidade enorme de porcaria. Quando saía à noite, costumava pintar-me sempre para essas ocasiões. Entretanto, isso desapareceu e raramente ponho alguma coisa na pele. Também tenho muita dificuldade em pôr base. Faço a cedência ao BB cream, que costumo usar quando me pinto, apenas porque me parece menos agressivo do que a base. Nunca me pintei para fingir que tenho pestanas maiores, ou que tenho os lábios mais grossos, ou que não tenho sardas. Nunca usei a maquilhagem para esconder nada. Mas há quem o faça, e isso é um problema maior do que estético. É um problema de mentalidade. Creio que é melhor, até para a autoestima, preservamos o que temos, realçá-lo, talvez, mas não nos transformarmos em pessoas de plástico num mundo em que somos cada vez mais iguais, por via do sugestionamento das marcas e das influências digitais. É ver as manas Kardashians/Jenner, com os seus lábios, narizes, rabos e contornos faciais falsos. Milionárias de calções de ciclismo. Porque tiramos o cérebro da avaliação destes hábitos? Ou, se não quisermos julgar, porquê não pensar antes de adoptar esse tipo de excentricidade para as nossas vidas?
É um mal que nos chega de todas as partes. No Instagram, há instantes, apareceu-me um anúncio de base a falar da sua capacidade de cobertura. Basicamente, tapa tudo. Tapa sardas, tapa a palidez, tapa sinais, tapa vermelhidões, tapa-te a ti. Há uns tempos, vi umas unhas de gel com pestanas lá coladas, na mesma rede social. É meio extremista, mas há quem o faça. Quando eu era pequena, a minha bisavó usava pó de arroz. Apenas. A minha tia-avó usava as unhas impecavelmente limpas, curtinhas e bem limadas. A minha avó nem isso, nem sequer pintava o cabelo. Nós agora temos de pôr creme hidratante, primer, corretor de olheiras, base, iluminador, blush, sombra, rímel, eyeliner, pó matificante e fixador de maquilhagem no fim. Nem introduzi o stick de contorno facial, que seria mais uma camada de claros e escuros. Para quê tanta porcaria?
Eu respondo: para os gigantes da cosmética fazerem dinheiro. Muitas vezes, o dinheiro vem das crianças que trabalham nas minas de mica que fornecem a matéria prima para os glitters e os highlighters. Já se luta por maquilhagem cruelty free para os animais, e que tal também free de trabalho infantil?
O segredo para contornar tudo isto não seria parar de abraçar hábitos nocivos para nós mesmos e para o planeta? Parar de consumir em massa, cremes e maquilhagem, inclusive?
A senhora que ficou chocada por eu lavar a cara deficientemente, tinha várias camadas de betume na cara, além de pestanas falsas, a boca pintada com aqueles batons mate que parece que estás desidratada, e podia atestar que aquela não era a cor da pele dela. Porquê que as pessoas se prestam a isso? Usam uma máscara todos os dias, mesmo quando o seu trabalho é dar conselhos de limpeza e de saúde. A sua autoconfiança depende dessa tal máscara? Julgam mesmo que podem sufocar a cara em toxinas e depois salvá-la com cremes e emulsões e séruns e tónicos faciais?
Compram todas as novas teorias, como aliás as mulheres o fazem desde sempre (já no século XIX ficavam carecas de tanto usar ferros de encaracolar para estarem à la mode). Além disso, inventou-se a primeira máquina de encaracolar cabelos e as mulheres dispunham-se a passar seis horas ali sentadas. Porque é que nos deixamos ser escravas da beleza? Ou melhor, porque é que embarcamos com tanta facilidade no padrão de beleza que nos impõem?
Há uma indústria enorme por detrás disto tudo. Uma indústria que te convence a pôr pestanas falsas (que te envelhecem bastante), que te convence a usar unhas de gel (o maior flagelo estético do século XXI), apesar dos avisos de que a luz que os aparelhos emitem pode causar cancro de pele, convencem-te a fazer solário e, se não tiveres tempo (ou dinheiro) aposta no autobronzeado. Há quem use extensões, quem se banhe em perfume logo pela manhã e que quase me mata de alergia nos transportes públicos apinhados e sobreaquecidos.
Não sei se a boa saúde da minha cara se deve a andar tantas vezes limpa dessa quinquilharia toda (ou suja, na ótica da senhora da loja), mas a verdade é que cheguei aos 30 com uma pele boazinha. Esperaria chegar assim aos 40, e depois aos 50. Com as devidas rugas, mas sem a secura desértica de algumas peles maltratadas pelas águas tónicas, pelos séruns disto e daquilo, pelas esfoliações e máscaras, spas faciais e etc.
As mulheres libertaram-se de tantas coisas nos últimos cinquenta anos… Porque é que ainda se deixam escravizar e escravizam as outras com a ditadura da imagem?
https://www.health.harvard.edu/cancer/do-gel-manicures-increase-cancer-risk
Link das imagens:
https://www.express.co.uk/news/uk/506355/Slap-in-the-face-for-women-who-love-make-up