Há dois hábitos que os portugueses incitam na sua sociabilidade que me parecem nefastos, ou com potencial para isso. Pergunto-me se já pensaram nesta questão, ou se, inclusive, estão envolvidos nesses problemas.
Assim como é preciso uma aldeia para educar uma criança, também é preciso uma família ou um bom núcleo social para se superar um vício ou uma compulsão.
Começo por falar do álcool, porque é o que me parece mais grave. É preciso estarmos a antibiótico, ou a conduzir, ou a psicotrópicos para podermos esquivar-nos de aceitar álcool. Nunca tinha reparado nisso até dar por mim a anti-depressivos, há largos anos, e a sair à noite. A quantidade de vezes que eu tinha de repetir que estava bem, que não queria vinho, não queria um cocktail, não queria uma cervejinha, não queria mesmo um shot de ginjinha, ainda que a Maria fosse para Erasmus e quisesse despedir-se, não, não podia mesmo beber uma ginjinha, nem sequer tratando-se da caseira feita pelo avô da Maria. Tudo bem, não ia ficar mal por tomar anti-depressivos e beber um shot de ginjinha mas, não gostando de álcool por aí além, porquê ceder quando não me apetecia e até estava contra-indicado?
Já se deram conta de como oferecemos álcool com tanta disciplicência ou como insistimos para que se conviva em torno dele? Em nome da animação, da ligeireza e da descontração, empurramos copos para as mãos das pessoas indiferentes à sua recusa e às suas justificações. O vinho dá-me imenso sono, além de dores de cabeça. Gosto muito de um copinho de vinho acompanhado de jazz enquanto cozinho, mas é nesse contexto específico e é um hábito que tenho descurado há anos. Não me faz falta. Por esse motivo, sempre que vou almoçar com os colegas, recuso beber. Tenho de explicar que me dá sono; eles retrucam que é só um dedinho de vinho (nunca é), tenho de dizer que me dá mesmo sono, imenso sono. Dizem na brincadeira que assim sendo vamos todos dormir uma sesta a seguir. Tenho de dizer que também me dá umas dores de cabeça intoleráveis, e lá vem o argumento de que é só um bocadinho de nada, e andamos nisto até dizer ao empregado de mesa que leve o copo de pé porque não vou beber vinho. Ainda assim, se tiver o azar de haver um brinde, a conversa acima volta a repetir-se, desta vez porque está um dia lindo de sol e há que celebrar, além disso, não se brinda com água/água com gás/sumo/etc.
E se a pessoa for alcóolica? Tenho uma familiar próxima que sofre de alcoolismo. Tem sido vítima desse demónio desde que a mãe adoptiva lhe punha copos de vinho e cerveja à frente, tinha ela 12, 13 anos. Acho que é do conhecimento geral os danos que uma substância como o álcool causa a um cérebro em desenvolvimento. Começou a beber cedo e por várias vezes ia perdendo a família por conta desse vício. Também por conta do vício, meteu-se numa igreja evangélica mercenária que joga com as vulnerabilidades das pessoas. A IURD não oferece amor nem abraços: oferece medo, ameaças e promessas de cura. Também te promete que se deres 10 Jesus Cristo devolve-te 100. Prende as pessoas por via da culpa, dos vícios ou da ambição. No caso desta pessoa, sempre que frequentava as reuniões punha o álcool de lado, porque se sentia motivada. Quando as abandonava sentia que o diabo lhe mordia os calcanhares e voltava a refugiar-se nos copos.
E o que fazem as famílias ou os conhecidos por estas pessoas? Oferecem-lhes álcool. Está tão enraizado que vi pessoas próximas a perguntarem-lhe se queria um copinho de vinho com o bacalhau de Natal, ou uma tacinha de champanhe na Passagem de Ano, ou uma cervejinha com os caracóis. Um alcóolico não tem a mesma relação que uma pessoa sem essa patologia tem com o álcool. Um alcóolico não sabe o que é beber pouco e socialmente. O cérebro entra em curto-circuito, quer mais, quer beber até saciar a sede que vem a sentir desde que se propôs à abstinência. A pessoa até vai bem, mas precisa do esforço conjunto dos que o amam. E, acima de tudo, precisa que a sociedade páre de oferecer álcool indiscriminadamente. O que me choca mais é o facto de uma pessoa alcóolica há quase 40 anos ter um histórico de crises, de escândalos, de empregos perdidos, etc., devido ao vício. E, ainda assim, os irmãos põem-lhe uma cerveja à frente num dia de sol. "É só uma". Ou insistem para que tome uma tacinha de Porto, "uma só não faz mal". Porquê tanta inconsciência? É angustiante. Por favor, da próxima vez que oferecerem álcool a alguém, e a pessoa recusar (ou hesitar - porque, no caso do alcóolico em remissão, nada lhe daria mais prazer do que aceitar), por favor não insistam. Pulem para a água, os sumos. Por favor, façam isso pelas pessoas que amam. Limpem-se desse modo de sociabilizar. A pessoa pode estar grávida e não querer dizer. Ou pode ter de facto o vício, ou pode estar a tomar medicação para uma questão delicada que não quer partilhar convosco. Não sejam insensíveis nem insistentes. Aceitem o primeiro NÃO que vos derem quanto a uma bebida alcóolica.
A segunda questão delicada é a da obesidade, ou do excesso de peso em geral. Nós, portugueses, até que não devemos ser dos povos que comem mais porcarias. Mas parece-me evidente que comemos em grandes quantidades. É ver os restaurantes a servirem-nos pratos enormes, é ver as avós a encherem-nos o prato uma segunda e uma terceira vez porque estamos "muito magrinhos", ou porque "isto anda mau e não podemos estragar comida", ou porque um prato "bem servido" é o lema de bem receber numa casa portuguesa. Mas e quando a pessoa é obesa ou está a lutar com o excesso de peso, ou simplesmente a tentar ser mais saudável?
Acompanhei de perto o drama de uma adolescente - digo "drama" porque além do distúrbio alimentar sucederam-se vários problemas psicológicos, motivados pela falta de auto-estima e pelas contradições entre os conselhos dos muitos médicos e nutricionistas a quem a levavam, a sua própria compulsão e o modo como a família lidava com a sua condição. A jovem era adolescente e a família (no caso a mãe e uma tia próxima) enchiam-lhe o prato até transbordar. "Ela é de alimento". Quando sobrava comida numa travessa, "para não se mandar fora", metia-se no prato da menina, "porque ela nunca diz que não". "Queres mais não queres?", e um risinho "Eu já sabia". Trata-se de pessoas amorosas, do mais doce e generosas que há. Mas porque razão não eram capaz de entender que um problema do foro alimentar é outro caso em que a aldeia tem de se unir para proteger um dos seus? Porquê essa atitude de aceitar a doença da jovem como algo "inevitável" e "insuperável", e continuar a promover o hábito que lhe causou tantos dissabores? Tanto bullying, tantas lágrimas? Ainda para mais quando ela própria não pedia mais comida, tentava seguir as indicações do médico e a comida lhe era oferecida à laia de "não desperdiçar"?
[Nem vou mencionar aquele episódio em que encontrei uma menina obesa com a mãe na secção de cereais de pequeno-almoço de um hipermercado, e em que a mãe a fez escolher uns novos cereais - de entre os costumeiros Estrelitas, Golden Grahams, Chocapic, etc. - conquanto que não escolhesse nada com chocolate, porque o médico disse-lhe que não coma "coisas que engordem"]
Temos de ser mais conscientes numa série de frentes. Estas são apenas duas. Para todos pensarmos no nosso papel e em como podemos ajudar os que nos estão próximos (e mesmo os menos próximos) a ultrapassar os seus desafios diários.