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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

26
Mar20

Mas e as saudades?

13º dia de quarentena, bate a angústia


celiacloureiro

E as saudades?

Antecipei alguma ansiedade face ao meu posto de trabalho, ao pagamento das contas, à doença em si, sendo asmática. Mas não antevi que o pior disto tudo seriam as saudades. O Homem sobrevive em bando, desde sempre. Um caça e o outro curte as peles, certo? De repente vem isto – que me tenho esforçado ao máximo por ver pelo lado positivo, porque há alguns positivos, se bem esmiuçado – e aparta-nos uns dos outros. Tudo bem que há internet, e há telefones, e há uma panóplia de gingarelhos que nos mantém mais ou menos conectados. Mas não há o calor do abraço, do toque, do riso aqui ao lado. Só ontem entendi que o pior deste isolamento são as saudades.

Não equiparo as saudades à tragédia humana que está a desenrolar-se em Itália e em Espanha, nem ao esforço hercúleo do pessoal médico, à bravura das enfermeiras e de todos os que combatem na linha da frente. O que quero dizer é que, a ter sorte, as saudades são o que me vai doer mais neste contexto, e já doem bastante.

Nos últimos meses, fui passando mais e mais tempo com os meus sobrinhos. São quatro miúdos que me fazem feliz de mil e uma formas, que me surpreendem e me passam lições a cada dia. Ou passavam. A nossa menina de 3 anos costumava vir para a minha casa depois da creche, às vezes íamos buscá-la. Uma vez jantou aqui, foi um evento solene. Vimos a Cinderela pela terceira vez, servi-lhe frango assado com batatinhas assadas e cenoura. Disse-lhe que, se não comesse a cenoura – ou ao menos provasse – não a convidava mais para jantar. Eu costumo manter a minha palavra – acho que os miúdos precisam de conhecer alguns adultos que não falam da boca para fora -, e pretendia cumpri-la durante algum tempo. Depois, eventualmente, ia convidá-la de novo para jantar, ia perguntar-lhe se ia comer tudo o que lhe servisse, e ia ver se ela cumpria a sua promessa. A Letícia é Touro, nascida a 13 de maio. Parece ser do conhecimento geral da astrologia que isso se traduz em cabeça dura. A minha menina é teimosa até mais não, pelo que não há garantias de que cumprisse. Mas… não queria nada que ela pensasse que não pôde voltar aqui, ou a jantar connosco, porque há semanas se recusou a tocar na cenoura assada. Será que ela entende o que se passa?

Parte-me o coração que os lírios estejam em flor aqui a dois passos, e eu não posso vê-los. Passávamos os fins-de-semana rodeados de natureza – e agora penso que não a suficiente, porque havia mais -, a bebé chamou a primavera da sua mantinha na Casa da Cerca, e por toda a parte a natureza acorreu. A bebé tem 7 meses e daqui a dois dias faz 8. Estive lá no dia 28 de cada mês desde que nasceu. Quando estarmos juntas era um privilégio, mas eu não sabia, ela ainda se engasgava com o pão e as bolachas. Ainda oscilava muito quando a sentávamos. Ainda estava a aprender a usar cada dedo da mão individualmente, para poder valer-se dela por completo. Balbuciava ma-ma e pa-pa, sem lhe atribuir real significado. E agora estende as mãos para que lhe peguem, aprendeu a fazer brr brr como o motor de um carro, chora se deixada sozinha numa divisão, come bolachas e pão sem se engasgar, e também pratos de comida sólida – peixe, legumes, batata. Adora a sopa e o puré de fruta. Cada dia é uma descoberta, e eu não estou lá. Não posso estar lá. Não posso cheirá-la nem abraçá-la, nem ajudá-la a suster-se de pé, nem, em breve, assisti-la nos primeiros passos, ou aplaudi-la nas primeiras palavras. Queria pôr-lhe uns totós, agora que começaram a surgir-lhe caracóis junto das orelhas, dar-lhe mil beijinhos na nuca, onde o pescoço faz um refego, morder-lhe ao de leve os pulsos e deixar que me arranque os óculos da cara ou os brincos das orelhas com aquelas mãozinhas perscrutadoras.

E não posso. E isto pode durar meses… E ela pode chegar a julho, celebrar um ano, e isto continuar. E o que devia ser felicidade é isolamento. E o que podia ser riso é introspeção. O Rodrigo Guedes de Carvalho diz que éramos felizes e não sabíamos. Também diz “resistirei”.

Não tenho dúvidas de que resistirei, mas a que preço? A vida em stand-by, quando o tempo e os momentos são a coisa mais importante nela.

Estou em casa há 13 dias. 13 dias, e o chamamento da liberdade não me incomodou. Não quis estar em lado nenhum durante algum tempo, exceto ao lado dela. São as saudades que me espremem. As que sinto e as que hei de sentir.

Tudo porque, num mercado chinês, duas gaiolas com espécies que jamais se encontram na natureza foram deixadas perto uma da outra. E porque um humano que os explora as manuseou. Tudo porque, do outro lado do globo, no oriente distante e incompreensível, uma borboleta bateu as asas. E agora aqui estamos, no umbigo do ciclone, todos tão ligados uns aos outros na nossa solidão imposta...

24
Mar20

O vírus, a economia, o turismo


celiacloureiro

Trabalho em Turismo, no chamado Incoming. Significa que tudo o que conquistei na vida foi graças às nossas fronteiras abertas, ao interesse dos estrangeiros. O meu núcleo laboral é composto por guias-intérpretes, motoristas de turismo, hoteleiros, comerciais, etc. Sem pessoas a vir, a nossa vida fica em suspenso. Tudo bem. A saúde primeiro, havemos de dar a volta.

Sobre o vírus, só me resta dizer que as pessoas continuam a não entender, e as autoridades não têm agido conforme esperado. Das poucas vezes que saí de casa, fiquei horrorizada com tudo o que testemunhei. Não posso garantir que não tenha tocado no vírus, ou que não o tenha trazido para casa. Levei os meus próprios sacos, tentei não tocar em nada… Mas ainda assim tive de empurrar o carrinho no supermercado, que abrir os frigoríficos de iogurtes, que meter as laranjas no saco, sem saber se a dona Helena não terá estado lá primeiro a apalpá-las todas… Quando pus as coisas na caixa, a senhora (sem luvas nem máscara, aliás como todos os funcionários), passou um pano imundo só para fingir que se preocupa com o vírus e que está a fazer o mínimo, e depois passou-me tudo com as mãos nuas, que tive de pegar com as mãos nuas e trazer para casa. Quando dei por mim, estava a marcar o código do cartão no terminal que toda a Almada havia tocado nessa manhã, e desinfetei as mãos com álcool ao preço do ouro antes de pegar no saco.

Nem vou mencionar o senhor do talho, que me partiu o frango, e depois fez os hambúrgueres com as mãos, sem nunca as lavar entre manejamento de carnes e sem luvas. O meu passeio de terror biológico terminou com o senhor da mercearia a esfregar a mão na minha para me dar as moedas de troco. E eu a desinfetar de novo as mãos, tipo maluquinha de Arroios.

Por fim ajudar os produtores e os hotéis e a restauração local… Os produtores de álcool que produzem a garrafa a 4,95€, vai custar-me muito ter vontade de os ajudar. Quanto aos hotéis em Portugal, a fazer férias em Portugal… Desde 2017 que repito que passei férias dois anos seguidos na Andaluzia porque Portugal era demasiado caro. E Portugal foi ficando sempre mais e mais caro. Eu entendo, é o capitalismo. É renovar as alas dos hotéis e a decoração de novo. É o buffet do pequeno almoço com granola e ovos Bennedict. Tudo bem, os estrangeiros adoram, e eu também.

Mas também é verdade que conheço funcionários de hotel, empregados de restauração, que eram explorados com salários mínimos enquanto os quartos eram vendidos ao preço da ocupação – altíssima. Já era indecente antes, e agora é intolerável. Uma amiga, secretária de um diretor de uma unidade 5 estrelas, com acumulação de funções e mestrado feito fora de Portugal, levava para casa pouco mais do que o ordenado mínimo atual. Acabou por abandonar o posto porque não é edificante, não é digno, a nível psicológico, receber-se tão mal depois de um tão grande investimento em formação e de assumir, de segunda a sexta, funções que requerem tanta responsabilidade.

Outro exemplo que adoro é o do restaurante onde gostava de ir comer bacalhau, para o qual também levávamos turistas. Trata-se de um restaurante nas Avenidas Novas, em Lisboa. O valor do menu de bacalhau com natas, com entrada, prato principal e bebida, era 13 euros até 2016. Pode parecer barato, mas tinham outros menus bem mais caros, e a sala tinha capacidade para 100 pessoas ao almoço e 100 pessoas ao jantar. Em 2017, com a loucura do Centenário de Fátima e a enxurrada de visitantes, o mesmo menu subiu para 17 euros. Em 2019 custava 27 euros. Liguei para lá e perguntei se tinham acrescentado uma azeitona que fosse ao menu, se o chef era novo e minimamente reputado. Foi uma piada, mas eles não se riram. “Não, é este o preço”.

Em 2017, quando se tornou urgente encontrar um hotel em Lisboa/arredores com budget para o mercado polaco, que não tem o poder de compra de outros mercados, mas que compensa em volume de viajantes, fui visitar um hotel naquilo que só pode ser considerado Buraca, mas que ostenta o nome de "Alfragide". Trata-se de uma unidade de 2 estrelas, e apresentei-me, indicando ao diretor que buscava alternativas para mercado polaco. Mostrou-se desiludido, perguntou se não trabalhava com outros mercados. "Sim, com italianos, canadianos." "Mande-me os canadianos, deixe lá os polacos." Deu-me um gozo enorme dizer-lhe que os canadianos não vinham do Canadá para ficar alojados na Buraca. E a insolência? As políticas gananciosas e restritivas de alguns hotéis para com as agências de viagens, como se fôssemos completamente dispensáveis, e éramos. Os turistas chegavam de aluvião... Grande volta que isto deu, não?  

Para 2020 tinha planeado uma viagem de uma semana a Itália, tendo, claro, simulado uma viagem por Portugal primeiro. Eu adoro o meu país, adoro meter-me num carro e ir de aldeia em aldeia. Falta-me o Norte profundo, Foz Coa, o Douro, Miranda, regressar a Vila Real, ir até Caminha, ao Gerês, a Viana do Castelo. Resumindo: uma semana em Portugal, contabilizando gasolina, portagens e alojamento, ficava mais caro do que uma viagem a Roma, com voo, transfers e alojamento, num hotel central simples. Desisti dessa ideia por dinheiro. Porque o hotel de 4 estrelas onde fiquei em Évora há dois anos custava 70,00€/noite em Junho, e agora custa 130,00€. Desisti de Portugal (nunca sequer tive em conta o Algarve), porque não posso pagar um salário mínimo em 4 ou dias de alojamento. A somar a isso as portagens e a gasolina com taxas absurdas para o nível de vida dos nossos cidadãos desmotivam grandes deslocações. Tenho saudades de Braga e de Guimarães, mas não vou pagar 140,00€ para ir voltar num fim-de-semana. Com esse valor meto-me no aeroporto e, dependendo da altura do ano, vou até Espanha, França, Itália, Holanda, Londres, Irlanda, Marrocos ou Alemanha. Pois é… o Portugal dos anos 90, que pedia aos portugueses para “irem para fora, cá dentro”, há muito que não tem interesse na carteira dos portugueses. Não conseguem extrair-nos o lucro que extraem de povos com um poder de compra muito superior. E por isso chateia-me que nos peçam para apoiarmos a economia local, como se, no caso do Turismo, eu preferisse qualquer outro sítio do mundo ao meu próprio país. O meu país é se tornou proibitivo, e por isso viajei muito mais para fora do que no interior. As limitações de tempo e de dinheiro a isso obrigam.

Não procuro romantizar o vírus, nem nada que o valha. Mas reparem como estamos todos tão ligados uns aos outros, e como what goes around comes around….

17
Mar20

Duas colheres de café


celiacloureiro

Por um lado, tenho medo do filme de ficção científica que está a passar-se para lá da minha porta. Por outro, não consigo deixar de pensar que, apesar da sombra de falência, colapso financeiro, desemprego e miséria generalizada, a minha geração precisava disto.

Nós desconhecíamos o significado de liberdade. A definição de direitos, os conceitos vagos de fome, de dificuldades. Estamos habituados a sair à sexta para o nosso restaurante favorito de comida de fusão, e ao sábado para um lounge onde um cocktail custa o mesmo que um livro.

Isto é a nossa Terceira Guerra Mundial, e não é uma guerra de países contra países, mas uma guerra de cientistas contra um vírus de fácil propagação, e de governos contra os interesses económicos das suas nações a favor do valor máximo da vida. Também é uma guerra de pessoal médico e auxiliar contra a falta de investimento das nações na saúde, e contra a falta de condições generalizada.

É uma guerra que expõe as fragilidades dos povos e dos governos, e deixa mais ou menos a claro que a religião ou Deus não têm qualquer utilidade para a resolução dos verdadeiros problemas. Quando o Vaticano anunciar o apoio financeiro que dará à crise mundial que se avizinha, quiçá eu mude de ideias. Nos entretantos, somos pessoas diferentes. Tornamo-nos, a cada dia, diferentes. Crescemos e tornamo-nos mais criativos na adversidade. A minha cunhada já descobriu que o sabão azul e branco substitui a pastilha da máquina da roupa, eu tenho feito bolos e farei pão, algumas pessoas descobrirão, em breve, que o papel higiénico não é essencial.

Hoje de manhã fui até à farmácia. Esperei uns quarenta minutos pela minha vez, e apenas tinha três pessoas à frente. O protocolo a isto exige, por segurança. Todos esperamos tranquilos, apesar do vento, do frio, do desconforto de estar ali em pé. Olhei para a copa da árvore que derramava flores lilases na minha cabeça, e dei-me conta de que, este ano, a primavera não vai ser nada do que eu tinha imaginado. Eu queria ir até à Casa da Cerca ver a horta deles, ver como anda o centeio, o trigo e a cevada que, no verão encontrei dourados e prontos a colher, e que no inverno se tinham recolhido à terra. Queria ir até lá sentar-me no banco onde, em abril do ano passado, terminei de ler Cem Anos de Solidão sob canteiros de lírios amarelos. Será que já despontaram, esses lírios?

A nossa guerra é silenciosa. (Exceção feita ao boi do vizinho que hoje bateu o portão da quinta às 05h46). Fora o vento, quase não se ouviam motores nem vozes na rua. As pessoas têm medo de se abordar umas às outras, não vá o outro aproximar-se. E, malvestida, com o cabelo por lavar porque decidi que tomaria o duche diário no exato momento em que chegasse a casa (e não antes de deixá-la), dei-me conta que isto é o tipo de matéria que sai nos livros de história. Ali estava eu, na fila ordeira da farmácia. Pouco depois lá ia o novo eu, aviar-se do que havia nas prateleiras do supermercado. Já não era um eu impaciente, a correr, a despachar a lista de compras e a escolher o que queria trazer. Era eu a ver o que há, para disso me aviar. Isto é a espécie de racionamento de que a avó falava. Ou a minha amiga Maria, cujos avós polacos e os pais narraram a vida na União Soviética, quando, com ou sem dinheiro, corrias o risco de chegar aos mercados e descobrir as prateleiras vazias. Ainda que as prateleiras se esvaziam por burrice das pessoas, e não por falta de víveres ou distribuição, é certo que todos temos de nos adaptar ao ir menos vezes às compras, e por isso acaba-se sempre por trazer mais. Hoje não comprei carne, porque o talho não tinha multibanco e eu não tinha dinheiro. No talho ao lado havia multibanco, mas também havia fila. Tive de escolher, e escolhi a segurança do lar. Disse, cá em casa, “não consegui carne”. "Hoje não consegui carne." Em quantos livros li eu essa frase sem saber o que significava e que se repetiria na História?

Cada pedaço de pão é sagrado. Reparo em cada colher de café que despejo no leite, de manhã. Tenho algum receio que tudo acabe, embora não me atire ao desespero do açambarcamento. Eu estou preparada, toda a vida estive preparada. Mas a fome é uma coisa estranha. Sobretudo esta fome, de que padeço: a fome de me entupir da minha glutonice, de ir aos crepes, ao nepalês, ao McDonald’s, ou de dar um passeio no Parque da Paz, ou fazer a tal visita a Monserrate e encher a barriga de queijadas. Esta fome de comer um gelado a meio da tarde só porque sim. A fome de ver os sobrinhos a qualquer hora e de abraçá-los e de jogar jogos com eles. A vontade de ir ao frango assado quando não me apetece cozinhar… A saudade de quando um beijo e um abraço não eram coisas potencialmente letais para os mais frágeis...

E estou por aqui. A trabalhar num anfiteatro de uma rua deserta, demasiado receosa para oferecer um café ao rapaz que anda a reparar-nos as varandas todo salpicado de água neste dia gelado. Consciente dos bens que tenho em casa – a quantidade de farinha, de pão, de leite, de ovos, de peixe, de legumes frescos e congelados. Tudo foi garantido, certo e cómodo, substituível, até há uma semana.

E agora conto as colheres de café que verto na água, de manhã… E ainda bem, porque a vida nunca mais será a mesma, e esta é uma guerra silenciosa, sem tripas nem obuses pela estrada.

15
Mar20

A Ilha


celiacloureiro

A Ilha

 

Há uma coisa que eu repetia muito por casa, um pensamento que me ocorreu muitas vezes. Acho que vi demasiados filmes de sobrevivência e daí esse lugar mental ao qual regressei tantas vezes:

- Se ficasse sozinha numa ilha, do que precisaria de facto?

O que me leva a dizer às minhas irmãs, de vez em quando:

- Se vocês estivessem numa ilha, ia dar-vos jeito saberem fazer…

Ok, hoje é o dia três do nosso isolamento (voluntário, porque o Estado ainda não começou a mandar os malucos para casa), e graças às minhas invenções já destruí os casquilhos da casa de banho e da despensa (o da despensa para tentar repor o da casa de banho). Enfim… Hoje fiz arroz de cozido à portuguesa para o almoço, já comeram isso? Cozi lombardo, chouriço e farinheira, bem como cenoura, e depois fiz o arroz nessa água. Agora está tudo no forno encimado por umas rodelitas de chouriço.

Às vezes as minhas irmãs interrompiam-me com:

- Já sei, já sei, se estivéssemos numa ilha…

Isto é a nossa ilha. Fomos obrigados a repensar o que é, de facto, essencial. Alguns comportamentos de ontem parecem-me agora fúteis e desadequados, mas a vida corria a outro ritmo. Há uma semana abraçava e beijava os meus sobrinhos. Há uma semana exata estava a comer crepes no Choco & Nut, e havia uma fila de pelo menos meia hora para sermos atendidos. Há uma semana estava a receber visitantes estrangeiros (da Austrália, de Valência, da Madeira), que foram ao nosso escritório devido ao cancelamento da BTL, e que trouxeram consigo a marca de todas as suas interações. Há poucos dias estava a comprar uma mala à tiracolo online.

E do que é que preciso de facto, afinal? Da possibilidade de escrever. De livros para ler – tenho mais de 170 por ler em casa. De alguns alimentos básicos e criatividade a cozinhá-los. De uma rotina – não quero passar os dias de pijama e cabelo empastado. De limpeza e de um pouco de sol na varanda. Isto é a ilha…

Há pouco, um rapaz jovem com um bebé ao colo, acompanhado de outro amigo (ora empurrava um o carrinho vazio, ora o outro, parou e cumprimentou o conhecido com quem se cruzou. Houve direito a apertos de mão e palmadinhas nas costas, sempre com a criança empoleirada no braço. Isso levou-me a pensar se isto que estamos a viver não virá comprovar, para quem ainda tinha dúvidas, a teoria da seleção natural do Darwin. Os idiotas e inadaptados caem, enquanto os restantes sobrevivem. Acho que é isso, estamos a falar de sobreviver. Porque independentemente do grau de letalidade do vírus, qualquer caso que inspire um mínimo de cuidados está à mercê do equipamento médico disponível. E ontem, na Assembleia, dizia-se que temos 1400 camas com ventiladores. Somos 10 milhões, como tantas vezes repetimos. 10 milhões… Mas mesmo que sejamos 1401 infetados… que será desse 1, a quem a doença quiçá pouparia, mas a falta de equipamento não?

Sejam conscientes. Vão para a vossa ilha. É lá que estão seguros.

13
Mar20

Tempo

- e casa, coisas positivas.


celiacloureiro

Como dar a volta a isto? Agastando-me? Chorando? Receando a cada instante?

Se o que está a passar-se é o grande acontecimento que há-de marcar a minha geração? Julgo que sim. É saído de um filme de ficção científica, e às vezes parece mesmo que estou a sonhar. Que a qualquer momento alguém se começa a rir e diz que é tudo brincadeira. As pessoas demoram a reagir, mas não podem demorar demasiado: a cada instante que estão em negação estão a arriscar-se e aos outros. Vou manter-me afastada das pessoas de família e amigos que amo, porque os amo. Vou evitar ao máximo dar a cara na rua e relacionar-me com outras pessoas. Já basta o que vi hoje - gente nas esplanadas, velhotes a limparem o balcão da farmácia com as mãos, distraídos, a Lusoponte com funcionários nas portagens a receber cartões multibanco e dinheiro sem luvas uns atrás dos outros... etc.

Enfim... As coisas positivas?

Tempo. Tempo é o o que de mais valioso existe. Eu até costumava dizer que, se tivesse tempo, lia o Guerra e Paz. Pois bem, agora tenho.

Decidi que hoje, último dia de trabalho no escritório, seria também o dia de fazer todos os recados urgentes. O primeiro passo foi ir à farmácia, que estava bem calma. Comprei paracetamol, um termómetro, um frasco de solução em gel com álcool e vitaminas. Vamos reforçar estes sistemas imunitários!

Ao chegar à minha rua, fui uma última vez às compras para esta semana: clementinas para vitamina C, limões para cházinhos, verdes, enchidos que se aguentam bem durante algum tempo, cenouras, alho e cebola para poder cozinhar. Esta semana já tínhamos comprado outros bens numa ida ao supermercado da esquina - que sentido faria ir para uma grande superfície, right? - incluindo 2 pacotes de farinha, ovos, manteiga. Podemos fazer pão caso o que temos termine antes da nova ida às compras. Vai ser giro - vamos comer saudável, cozinhar, passar tempo juntas a trocar dicas de cozinha. 

Não comprei água engarrafada nem papel higiénico, porque felizmente tenho torneira em casa, e também porque os 12 rolos de folha dupla que temos chegam sempre para uma semana aqui em casa. Não somos muito cagonas aqui, mas em casas onde se é entendo que tenham redecorado a sala com esses rolos tão inestéticos. Também tive cestos com álcool-gel diante dos olhos na farmácia - e digo-vos, eram às dezenas! - mas consegui agarrar só um, porque prefiro que os meus vizinhos usem os outros para evitar contaminar o corrimão do prédio e as maçanetas das portas e etc. Sabem como é, vivemos em comunidade. Que me adianta estar toda esterilizadinha enquanto a vizinha do lado está na esplanada, cabeça com cabeça com a amiga, a ler as medidas de prevenção do coronavirus no telemóvel?

Voltando às coisas felizes, como vou usar o meu tempo? Apesar de estar a trabalhar, ganharei imenso tempo por não ter de me deslocar.

Ora bem:

- Vou ler os Russos;

- Vou cozinhar com amor;

- Vou manter a casa limpa;

- Vou seleccionar roupa para deitar fora;

- Vou arrumar a prateleira dos tupperwares e a das formas;

- Vou fazer yoga antes de começar a trabalhar;

- Vou escrever romances;

- Vou tentar - tentar - aprender russo em casa através de uma APP que usei para aprender italiano (vamos ver se a reencontro, porque não me lembro do nome);

- Vou plantar o jardim que queria tanto desenvolver na varanda - assim que os trabalhadores desmontem os andaimes;

- Vou dar aulas de História à minha irmã mais nova e vou fazer com que ela se mantenha ativa e estude através das plataformas da Leya, da Porto Editora, dos próprios livros escolares e da nossa extensa biblioteca domiciliária!

- Vou apanhar sol enquanto leio na varanda - porque tenho varanda! - e porque a vitamina D é essencial para não nos transformarmos em vampiros raquíticos.

E é isto. Sendo o tempo tão precioso... porque não aproveitá-lo para algo de positivo? Sabemos lá quando voltaremos a ter tempo seja para o que for!

12
Mar20

Os idiotas vão acabar por matar-nos a todos

- ou porque tenho medo do coronavírus.


celiacloureiro

Apesar de estar sempre a rir-me e a fazer piadas, em certos assuntos sou uma pessoa séria. Suspeito que até perdi alguns amigos por conta dessa seriedade, que me faz ser a ovelha negra que acaba com a festa do descaso. Posto isto, tenho-me mantido até bastante tranquila até ontem quanto ao assunto do momento. Segui as recomendações (fui a tipa paranoica que recusou apertos de mão e beijos a toda a gente durante os últimos dias, inclusive a um senhor da “indústria farmacêutica” que me cumprimentou por estar a agir bem e se desculpou por me ter estendido a mão, como é hábito), e não entrei em alarmismos desnecessários. Posso dizer que não comprei uma latinha de feijão extra a pensar no que estaria a vir, porque mantive um mínimo de fé no país. Ainda assim, o caso de Itália é uma oportunidade de olharmos para o futuro e de sabermos exatamente o que está por vir. Coloco-o assim porque o otimismo do Costa e a descontração generalizada do nosso país levou a que não mexêssemos uma palha para evitar a onda que vinha no nosso caminho, mesmo com tantas semanas de vantagem para construir diques.

 

Qual é o meu problema com o coronavírus, afinal?

É que eu não tenho confiança no meu governo e, desde ontem, menos ainda no meu povo. Não confio no bom-senso e no discernimento dos portugueses. A nossa veia encantadora – a brincadeira e a descontração – prejudicam-nos gravemente nestas circunstâncias. O português que, perante recomendações de quarentena, foi para a multidão do Continente comprar garrafões de água e papel higiénico não tem torneiras nem sabão em casa, e também não tem dois dedos de testa. O português que assume o fecho da universidade como uma ocasião a comemorar, e que vai para a praia a sentir que lhe saiu a sorte grande, é um ser acéfalo que nem devia estar no ensino superior. O português que vê neste histerismo coletivo a oportunidade de fazer negócio e de lançar uma Corona Party, é outro idiota inconsequente. A eles o que pergunto é: não têm ninguém do grupo de risco nas vossas relações? Nenhum diabético, nenhum asmático, ninguém com cancro? Ninguém velhinho e frágil? Eu tenho um avô de 91 anos, uma mãe com cancro. Eu própria sou asmática. Mas, para lá disso tudo, tenho uma falta de fé descomunal, como já dito, no governo, e outra igual pelo Sistema Nacional de Saúde.

Não é propriamente nos profissionais que não tenho fé – embora também, e já lá vamos -, mas sobretudo nas diretivas que recebem. Na tranquilidade com que o Primeiro Ministro e a Ministra da Saúde atiraram para o ar, durante semanas, que isto era lavar as mãos e evitar contatos com a boca e isto e aquilo. O que se fez nos hospitais para preparar isto? Ontem dizia-se que só os hospitais de primeira linha tinham capacidade e indicações de como lidar com estes casos. Mas o Portugal profundamente envelhecido e isolado do interior não vai deslocar-se a Lisboa, ao Porto e a Coimbra, que o valha, para ser atendido. Os responsáveis pela Linha Saúde 24 sabia que as chamadas iam chover, mesmo porque recomendaram que ligássemos antes de aparecer nas urgências, e ainda assim só reagiu reforçando a equipa quando se tornou evidente que não estavam a responder a toda a gente.

Mas sabem do que tenho mais medo, acima de tudo? É de que a nós, saudáveis – sim, vocês que foram para a praia, que estão convencidos de que a quarentena é o melhor que vos podia ter acontecido, que foram à Corona Party e que ontem foram comprar papel higiénico para o supermercado – nos aconteça o mesmo que à jovem saudável de 17 anos, de Santa Maria da Feira, que se calhar não foi atendida na Linha Saúde 24, e que por isso foi três vezes às urgências antes de lhe fazerem um teste ao coronavírus, e de a diagnosticarem com pneumonia grave. Pneumonia grave é coisa que mata. Não será o coronavírus que a matou, se morrer, mas sim a inconsequência do governo que não obrigou os seus amigos, regressados de Itália, a quarentena obrigatória – porque é inconstitucional. Será culpa da Linha Saúde 24, que não a atendeu. Será culpa das equipas de saúde que a receberam por duas vezes sem colocar a possibilidade de que fosse o vírus do momento – ou do Ministério da Saúde que quem sabe ainda não lhes tivesse dado meios para testarem o vírus, ou diretivas a seguir em casos de suspeita. Será culpa de quem deixou que chegasse à pneumonia grave antes de começarem a tratá-la, mesmo neste clima de avisos e alarmismo. Se calhar acharam, como acham os portugueses que vão para a praia, que o calor destrói o vírus e que aquilo é uma gripezinha comum.

Em suma – será culpa de todos nós, mas acima de tudo de um governo que pratica o descaso e o positivismo até ao limiar da catástrofe, e da incompetência que carateriza toda a nossa burocracia e que, em última instância, ceifa vidas.

É disto que tenho medo, da cadeia de imbecilidade deste país… Disto e de irmos todos para o desemprego. Não do coronavírus. Coitado do coronavírus.

06
Mar20

Está tudo tão quieto...


celiacloureiro

É estranho. Nas últimas duas semanas, implodi. Permaneço funcional, rio, distribuo amor (ocasionalmente mau humor), cozinhei, trabalhei, lavei roupa, li (embora devagar). 

Mas é que está tudo tão quieto ao meu redor...

Começo a habituar-me a esta sensação de estar constantemente sozinha. Uma solidão que pouquíssimas vezes consegui mitigar na vida, porque sempre me senti, de algum modo, incompreendida. É difícil ter-se compreensão e perdê-la, ou abdicar-se dela.

Hoje perguntaram-me, ao almoço, como me vejo daqui a alguns anos. São conversas boas, porque a pessoa diante de mim quer mesmo saber a minha resposta. Está tudo muito quieto ao meu redor, é o que lhe explico. E por muito que esteja tudo tão quieto, é melhor assim. Pergunta-me se me vejo com alguém, se me vejo com uma família. Não vejo. Nem quero. Cheguei aí - não quero. As pessoas, por malícia ou franqueza, desiludiram-me tanto... Estamos todos tão centrados em nós mesmos. Às vezes nem nos conhecemos. Repetimos os mesmos erros uma, e outra, e outra vez. Como é que sabemos se estamos a agir por lucidez ou por carência? Por vontade ou porque a solidão, às vezes, se torna ensurdecedora?

As crianças que me rodeiam são deliciosas, mas eu não consigo imaginar-me a viver em prol de outro ser humano. Se a criança que em tempos tanto quis estivesse aqui, a esta hora estaria a secá-la, a mudar-lhe a fralda, a medir-lhe a febre ou a arrancar os cabelos a tentar adormecê-la. E assim estou aqui, e está tudo tão quieto ao meu redor... À exceção da Clair de Lune, que esteve lá em todos os momentos quietos da minha vida.

Às vezes pestanejo e sinto que passou uma década. Mas passaram dois dias. Há muros, barreiras, obrigações. Quero tanto a casinha rodeada de tílias... Cedo ou tarde, vou acabar na casinha rodeada de tílias, onde tudo será silêncio e reflexão. Talvez aí descubra os segredos da existência, o porquê de eu respirar, aqui e agora. E quiçá escreva algo que ajude os corações humanos a partir desse recanto de erva-príncipe e lúcia-lima.

Tenho saudades da avó. Tenho saudades do pai. Tenho saudades do meu irmão - posso ter ao menos um dos dois de volta? Tenho saudades dele. Porque me parece tudo um tremendo desperdício?

Tenho saudades da minha infância, quando pegava num caderno, numa caneta, e me sentava num banco com a janela aberta. Para lá da janela recortava-se o céu de verão, as silhuetas dos pinheiros gigantes do seminário. Todos os meus sonhos se projetaram naquela tela, e talvez eu soubesse tudo já aí. Já estava tudo tão quieto aí, quando era de madrugada e eu aproveitava a luz do candeeiro de rua para escrever, porque tinha medo que a avó me apanhasse e quebrasse o silêncio ilícito das minhas reflexões. Ainda lhe oiço a voz comovida de sono e de indignação, como se eu a ferisse, a ofendesse: Célia, estás a gastar luz a uma hora destas?

E eu a projetar tantas coisas bonitas nessa janela, a ouvir a Clair de Lune. A pensar que o tempo havia de trazer-me outra coisa que não quietude. A sentir-me sozinha, sempre sozinha. Por muito que na época os amigos fossem muitos, os irmãos ainda mais. Eu regressava a casa, ao meu quarto ou à marquise, e para lá dos vidros foscos a lua estava cheia, e eu tinha tempo para a admirar. Acendia um cigarro, às vezes sentava-me no telhado de zinco e contemplava o silêncio e a quietude ao meu redor. Parece que já antevia o vazio que havia de estar lá sempre. Parece que já sabia que a avó havia de se ir embora. Que o pai iria logo atrás. Que o avô, embora pareça imortal, também há-de ir. Para sempre. Desde essa quietude que me agarrei à magia e aos momentos de maravilha que a vida me tem oferecido, e que têm sido tantos... Parece que sabia que um dia teria um vislumbre de amor, e que depois viveria sem ele. De tal modo que sei - simplesmente sei - que não voltarei a escrever sobre amor. As coisas que morrem não regressam, nunca. Tornam-se pó ou, se quisermos ser poéticos, poeira de estrelas. É a mesma coisa. O riso, as lágrimas, os ruídos dos beijos, os abraços, o calor, a textura da pele, as palavras, sobretudo as palavras, desintegram-se. Escapam-se para o universo, expandem-se para um buraco negro e tudo cai em silêncio, escuridão e quietude.

O cheiro do avental da avó, a sua silhueta à janela a cortar as unhas com a tesoura da costura, desapareceram. A voz da avó, que por enquanto subsiste na minha memória, talvez um dia seja esmagada pelo peso dos anos. Talvez um dia eu pestaneje e tenham mesmo passado 20 anos, e eu já não me lembre do seu riso, do sacudir dos seus ombros, das mãos pousadas nos joelhos e dos pés largos nos chinelos velhos. 

Mas porquê este silêncio opressivo, demolidor? Porque está tudo tão quieto, e eu na bruma química dessa quietude? Eu perante a noite, enorme. Eu perante os dias, todos iguais.Eu sempre cansada, mesmo quando rio, mesmo quando durmo, mesmo quando leio, mesmo quando escrevo, mesmo quando engulo as vitaminas, mesmo quando está sol. Eu a ausentar-me enquanto conduzo, a esvoaçar por aí e a regressar à consciência no meio dessa quietude gritante. Eu a querer escrever, mas não há emoção para despejar no papel. Fiquei vazia de tudo. Até do sentimento de injustiça, de desânimo, de perda. Nada. Não sinto nada. Caramba, está mesmo tudo muito quieto cá dentro.

Pergunto-me se uma pessoa pode esgotar-se. Creio que, esgotando-se, saberá que está esgotado. Que acabou. Que deu tudo, que é só isto. Toda a gente deve ter um fundo, e acho que estou no meu fundo (não fim de linha, mas fundo, embaixo de tudo, tudo o que havia estava por cima e deixou o frasco). Acho que a pessoa, quando chega ao seu próprio fundo, sente que acabou para os outros e, em certa medida, para si também. Não quero, eu não quero.

E, porque não quero, porque me despeço sempre, porque a voz da avó não vai voltar a sobressaltar-me de madrugada, enquanto escrevo...

Sinto que tenho sido despojada da miúda que fui, que ria, que dizia graças, que se rojava no chão e que arranhava o cotovelo nos muros, que brincava às famílias, que tinha nomes para os Nenucos, que escrevia histórias em cadernos de folhas pautadas e que acordava ao nascer do sol para ver a natureza a despertar na serra Algarvia, com as pernas a baloiçar para lá da eira. Em harmonia com essa quietude, que na época me fazia sentir plena.

Está tudo quieto. E quieto há-de permanecer.

03
Mar20

He's just not that into you

- ele não gostava de ti.


celiacloureiro

Ontem, uma senhora que respeito imenso e com a qual tenho tido o prazer de conviver nos últimos tempos, perguntou-me se tenho namorado. Fiz a minha piada habitual: "ninguém me quer", e rimo-nos. Com gentileza, ela disse que com certeza não seria esse o motivo. Mas até acaba por ser - simplesmente deveria ter complementado com "ninguém que eu queira me quer".

Quando entrámos no elevador, e ainda sob o seu braço, resumi-lhe a génesis da minha última história amorosa. Tem graça porque conheço inúmeras histórias assim, não sei porque achei que estaria imune a esse enredo. Mesmo o 500 Days of Summer explora essa questão de não sermos a pessoa certa para o outro. Ela podia ter desfiado aqueles clichês: ele não te merecia; ou vais encontrar um melhor; ou o que é teu está guardado. 

Ao invés, a honestidade dela ao responder-me a esta questão desarmou-me:

- Ele não gostava de ti.

Just like that. He's just not that into you.

E eu admiti-lhe que não é fácil admitirmos que a pessoa de quem gostámos não conseguiu sentir o mesmo por nós. Dá ideia de que há algo errado connosco. Mas o que há de errado em simplesmente não sermos a pessoa certa para o outro? Não há absolutamente nada que possamos fazer. O ideal é desistir - não acredito que sentimentos mudem assim. Isso acontece no Orgulho e Preconceito, naquele famoso discurso em que o Darcy pergunta à Elizabeth se ela ainda se sente como "em abril passado", quando o rejeitou, ou se os sentimentos dela entretanto mudaram.

Sou capaz de ter passado uma década da minha vida à espera que os sentimentos dos outros mudassem em relação a mim. Que a convivência, os eventuais pontos positivos que tenha, provocassem essa afeição. Que o estar por perto, ser leal, sincera, disponível (e às vezes apaixonada) acabasse por trazer esses sentimentos à tona do outro lado também. Em que se traduziu isso tudo?

Perdi tempo. Perdi tanto tempo... Se ao menos me tivesse permitido ouvirassimilar, o que sempre soube:

- Ele não gostava de ti.

Aí está. Tão simples. Ter-me-ia poupado anos de amarguras e de lágrimas. Só isso. Se me tivesse permitido aceitar essa verdade, se tivesse eliminado os discursos dos romances eduardianos da cabeça, fora com o Orgulho e Preconceito, não tinha passado por metade dos aborrecimentos.

Os trinta trouxeram-me uma coisa: aceita-se. Não se luta por causas impossíveis. Faz-se o que se pode, nisto e em tudo.

Talvez o amor não seja para mim, e eu esteja apenas destinada a percorrer alguns quilómetros da minha estrada com pessoas específicas, que me ensinam muito, a quem gosto de pensar que também ensino bastante, e depois seguimos cada um para o seu lado, sem raiva nem zangas. Simplesmente... seguimos.

É tão simples... Ele não gostava de ti.

There, there, libertador. Nada de errado comigo por isso.

O amor é uma ciência indecifrável. Com os trinta veio ainda outra coisa nova: dói muito menos. Ultrapassa-se mais depressa. Valores mais altos se alevantam. A vida continua.

Por isso, quanto mais cedo interiorizarem esta verdade, mais cedo a vossa vida prossegue por colinas e vales esverdeados e soalheiros.

He's just not that into you.

 

 

01
Mar20

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil


celiacloureiro

No post anterior, sobre "Casais que se odeiam", um utilizador partilhou este poema connosco.

Gosto muito de Fernando Pessoa em todas as suas versões, por isso deixo-vos com este Álvaro de Campos, que desconhecia. É interessante porque nos recorda que todos somos falíveis. E quiçá admitir o erro seja o primeiro passo para sermos melhores, e para vivermos em verdade. Afastemo-nos da hipocrisia, acima de tudo daquela que impomos a nós mesmos e que vendemos aos nossos vizinhos antes de fecharmos a porta de casa.

 

Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

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