Mas e as saudades?
13º dia de quarentena, bate a angústia
celiacloureiro
E as saudades?
Antecipei alguma ansiedade face ao meu posto de trabalho, ao pagamento das contas, à doença em si, sendo asmática. Mas não antevi que o pior disto tudo seriam as saudades. O Homem sobrevive em bando, desde sempre. Um caça e o outro curte as peles, certo? De repente vem isto – que me tenho esforçado ao máximo por ver pelo lado positivo, porque há alguns positivos, se bem esmiuçado – e aparta-nos uns dos outros. Tudo bem que há internet, e há telefones, e há uma panóplia de gingarelhos que nos mantém mais ou menos conectados. Mas não há o calor do abraço, do toque, do riso aqui ao lado. Só ontem entendi que o pior deste isolamento são as saudades.
Não equiparo as saudades à tragédia humana que está a desenrolar-se em Itália e em Espanha, nem ao esforço hercúleo do pessoal médico, à bravura das enfermeiras e de todos os que combatem na linha da frente. O que quero dizer é que, a ter sorte, as saudades são o que me vai doer mais neste contexto, e já doem bastante.
Nos últimos meses, fui passando mais e mais tempo com os meus sobrinhos. São quatro miúdos que me fazem feliz de mil e uma formas, que me surpreendem e me passam lições a cada dia. Ou passavam. A nossa menina de 3 anos costumava vir para a minha casa depois da creche, às vezes íamos buscá-la. Uma vez jantou aqui, foi um evento solene. Vimos a Cinderela pela terceira vez, servi-lhe frango assado com batatinhas assadas e cenoura. Disse-lhe que, se não comesse a cenoura – ou ao menos provasse – não a convidava mais para jantar. Eu costumo manter a minha palavra – acho que os miúdos precisam de conhecer alguns adultos que não falam da boca para fora -, e pretendia cumpri-la durante algum tempo. Depois, eventualmente, ia convidá-la de novo para jantar, ia perguntar-lhe se ia comer tudo o que lhe servisse, e ia ver se ela cumpria a sua promessa. A Letícia é Touro, nascida a 13 de maio. Parece ser do conhecimento geral da astrologia que isso se traduz em cabeça dura. A minha menina é teimosa até mais não, pelo que não há garantias de que cumprisse. Mas… não queria nada que ela pensasse que não pôde voltar aqui, ou a jantar connosco, porque há semanas se recusou a tocar na cenoura assada. Será que ela entende o que se passa?
Parte-me o coração que os lírios estejam em flor aqui a dois passos, e eu não posso vê-los. Passávamos os fins-de-semana rodeados de natureza – e agora penso que não a suficiente, porque havia mais -, a bebé chamou a primavera da sua mantinha na Casa da Cerca, e por toda a parte a natureza acorreu. A bebé tem 7 meses e daqui a dois dias faz 8. Estive lá no dia 28 de cada mês desde que nasceu. Quando estarmos juntas era um privilégio, mas eu não sabia, ela ainda se engasgava com o pão e as bolachas. Ainda oscilava muito quando a sentávamos. Ainda estava a aprender a usar cada dedo da mão individualmente, para poder valer-se dela por completo. Balbuciava ma-ma e pa-pa, sem lhe atribuir real significado. E agora estende as mãos para que lhe peguem, aprendeu a fazer brr brr como o motor de um carro, chora se deixada sozinha numa divisão, come bolachas e pão sem se engasgar, e também pratos de comida sólida – peixe, legumes, batata. Adora a sopa e o puré de fruta. Cada dia é uma descoberta, e eu não estou lá. Não posso estar lá. Não posso cheirá-la nem abraçá-la, nem ajudá-la a suster-se de pé, nem, em breve, assisti-la nos primeiros passos, ou aplaudi-la nas primeiras palavras. Queria pôr-lhe uns totós, agora que começaram a surgir-lhe caracóis junto das orelhas, dar-lhe mil beijinhos na nuca, onde o pescoço faz um refego, morder-lhe ao de leve os pulsos e deixar que me arranque os óculos da cara ou os brincos das orelhas com aquelas mãozinhas perscrutadoras.
E não posso. E isto pode durar meses… E ela pode chegar a julho, celebrar um ano, e isto continuar. E o que devia ser felicidade é isolamento. E o que podia ser riso é introspeção. O Rodrigo Guedes de Carvalho diz que éramos felizes e não sabíamos. Também diz “resistirei”.
Não tenho dúvidas de que resistirei, mas a que preço? A vida em stand-by, quando o tempo e os momentos são a coisa mais importante nela.
Estou em casa há 13 dias. 13 dias, e o chamamento da liberdade não me incomodou. Não quis estar em lado nenhum durante algum tempo, exceto ao lado dela. São as saudades que me espremem. As que sinto e as que hei de sentir.
Tudo porque, num mercado chinês, duas gaiolas com espécies que jamais se encontram na natureza foram deixadas perto uma da outra. E porque um humano que os explora as manuseou. Tudo porque, do outro lado do globo, no oriente distante e incompreensível, uma borboleta bateu as asas. E agora aqui estamos, no umbigo do ciclone, todos tão ligados uns aos outros na nossa solidão imposta...