1993
celiacloureiro
Em 1993 tinha três anos. Vivia na casa dos avós; um primeiro andar de vivenda com um quintal que me parecia infinito. Agora dou-me conta do privilégio que foi ter crescido com espaço. O quintal proporcionava, além de ar livre, banhos de mangueira, naufrágios de Barbies no tanque da roupa, missões secretas do Action Man, casas de tijolos e cassetes para as bonecas. Também cheguei a fazer fogueiras e a destruir panelas quando me dava para fazer sopa de urtigas e hortelã. Andava sempre descalça e com a avó a ameaçar-me com um chinelo que nunca chegava a cair-me no lombo.
É engraçado como as minhas memórias de infância são as que me surgem mais vívidas, muito mais do que as se seguiram na adolescência, ou as da última década como "jovem adulta". Qualquer momento que me recorde da infância está povoado de cheiros, de sensações, dos ecos das vozes e dos avisos da avó. Lembro-me exatamente a que é que sabia o azeite no fundo do prato, depois de ser torturada com pescada cozida, e de como adorava molhar pão nele.
Mas este desabafo é sobretudo a propósito do Festival da Canção de 1993. Dou-me conta de que, nessa altura, não fazia ideia do que era o Festival da Canção. Além disso, não entendia nada da letra d'A Cidade (Até ser dia), mas gostava de como palavras como "noite", "sonho" e "magia" soavam na voz da cantora. Ainda assim, do último degrau da escada, esgoelava-me toda para o anfiteatro das traseiras dos prédios ao meu redor. Quando a avó ia fazer o jantar, e me chamava de mais um dia a escavaloar (como ela dizia), eu punha-me à porta de casa e reinava sobre o quintal na sombra, o gato molengão no telhado de zinco e as vizinhas que iam à janela gozar um momento de paz antes de acenderem os próprios fogões. E Jesus, se berrava!
Da cozinha, a avó dizia-me que eu era uma "cachondinha da Barreira", que estava a envergonhá-la, que qualquer dia as vizinhas iam bater à porta a mandar calar-me. A mim, tanto se me dava. Continuava a minha playlist diária. Ao longo dos anos, rodaram muitos hits por aquela escada. Com o tempo, a avó aprendeu a encolher os ombros e a dizer que eu não tinha mais que fazer. As vizinhas abordavam-na na rua e riam-se da miúda que começaram a chamar de "a cantora". Caraças, eu era mesmo pequena! Como é que não haviam de achar graça? Agora dói-me os ouvidos só de imaginar o espetáculo de uma miúda a embrulhar aquelas palavras todas na língua. De vez em quando, a avó ainda me mandava ir comer palha a Abrantes, ou suspirava que eu parecia a bruxa de Arruda, ali desgrenhada e descalça a cantar o mais alto que os meus pulmões e cordas vocais permitiam. Mas já estava conformada, coitada. Já sabia que quando o sol começasse a pôr-se havia espetáculo.
Primeiro A Cidade (até ser dia), depois a Chamar a Música, em '98 cantava Santamaria (Eu sei, tu és), e não posso jurar que não tenha feito algumas homenagens à Ágata a partir do meu palco. Também tenho vagas lembranças, que procuro reprimir, de fazer algumas coreografias naquela escada. Assim de repente salta-me o Iran Costa e as Las Ketchup à ideia. Ok, já tinha 12 anos quando esta última saiu, o que é idade para se ter juízo. Mas vejam que já havia uma longa carreira no showbizz a obrigar-me a afastar as cortinas da porta das traseiras e a dar àqueles vizinhos alguma coisa com que se entreterem ao fim do dia.
Jasus, que vergonha. E, ainda assim, quem me dera voltar àquela escada, a essa idade e a essa liberdade, a esse "que se foda", para poder gritar:
Queria dizer-te que estou a sofrer...
Eu já não posso mais...
Nós não somos iguais... IGUAIS
E o tempo foge de mim
Wooooooooooooowhoaaaaaaaaaa.