Os ciganos, o coisinho e as finanças do Estado
celiacloureiro
No Domingo elegeu-se Marcelo Rebelo de Sousa para presidente da República Portuguesa, e não foi surpresa a sua reeleição. A surpresa foi o circo montado em torno do candidato da extrema-direita, e, para mim, maior surpresa foi ver que os portugueses não o puseram no seu lugar nas urnas mas, pelo contrário, cerca de meio milhão de pessoas votou nele e nas suas ideias para presidente.
O 25 de Abril teve lugar há 47 anos. Antes disso havia censura, partido único, prisões políticas, sovas a opositores do sistema, exílios e desterros. Gostaria de acreditar que ninguém com mais de 47 anos tenha votado num grão disto que fosse, mas infelizmente também aqui me enganei. Porque ficou Ventura em segundo lugar no Alentejo, por exemplo? O que significam, na realidade, os números desta eleição?
Começar por dizer que a abstenção esteve na ordem dos 60.51% - significa que dos quase 11 milhões de portugueses inscritos em cadernos eleitorais, 6.5 milhões não se deram ao trabalho de ir às urnas. Isto coloca as coisas numa outra perspetiva: é que o tão falado Ventura, o tal que diz que os portugueses se uniram para votar num partido contra o sistema, desaparece neste gráfico de minha autoria, que expressa o comportamento dos portugueses perante a eleição. O que se agiganta é o mar de portugueses que se absteve.
O que tirei deste gráfico foi que meio milhão de portugueses (sim, ainda assim muita gente) achou por bem sair de casa e ir apoiar este candidato às urnas. São 0,5 em 11 milhões de Portugueses, e quero acreditar que somos melhor do que a crença iludida desses 0,5. A esses 0,5 peço que esqueçam o suposto rosto anti-sistema, e que se foquem nos seus argumentos para "salvar o país". Mas salvar o país de quê? De quem? Ora vejamos.
Fonte dos dados no gráfico: Resultados do ano 2021, Eleições Presidenciais , RTP Notícias
Hoje estou virada para os números, por isso fui informar-me sobre os números da população cigana em Portugal, que em 2017, segundo o alto-comissário para as Migrações, era de c. 37 mil individuos, "e 91,3% não têm o 3º ciclo." 37 mil indivíduos merecem, de facto, ser culpados por tantos dos problemas que o Chega identifica em Portugal? Não estarão a inventar inimigos do Estado e da população, à semelhança de outros demagogos do passado?
O projeto Pare, Escute, Olhe refletiu sobre a questão da atribuição do RSI a elementos desta etnia em 2015, e concluiu que "estudos, baseados em dados cedidos pelo Instituto de Segurança Social, apontam que entre 3% e 6,5% das 93.731 famílias beneficiárias do RSI são de origem cigana. Ainda assim, não se pode negar que algumas pessoas procuram viver dos apoios sociais mas este fenómeno pode ser observado em qualquer grupo, independentemente da sua origem étnica ou social." Traduzido por miúdos, das 93731 famílias que recebiam o RSI em 2015, apenas 93,5% (no mínimo) dos beneficiários eram de etnia não cigana. Os ciganos são, portanto, uma pequeníssima fatia dos subsídio-dependentes do Estado, conforme o Chega leva a crer. Quanto a recusarem-se a trabalhar, o mesmo projeto refere o seguinte:
50,7% da população cigana já se sentiu discriminada no local de trabalho;
35,3% disseram terem sido rejeitados numa entrevista por causa de sua etnia;
26,9% sentiam-se mais controlados e/ou monitorizados;
11,9% têm experimentado situações que os impedem de desempenhar funções com visibilidade pública por causa de sua raça ou origem étnica.
Neste ponto, gostaria de contestar André Ventura nas soluções que propõe para acabar com a subsídio-dependência e para pôr os ciganos a trabalhar, mas não o ouvi falar em integração, em combate à discriminação, em por ex. benefícios fiscais a empregadores que contratem funcionários de etnia cigana, ou seja lá o que pudesse contribuir para inverter os problemas laborais desta etnia e, consequentemente, afastar esses 6.5% (no máximo) do RSI.
Pensando em soluções - se realmente a minoria cigana for um problema - creio que as coisas passem por dois pontos: aplicar a lei de igual modo para todos os cidadãos portugueses, independentemente da sua etnia, e reforçando a intervenção de assistentes sociais junto das famílias de minorias étnicas que possam entrar em colisão com aquilo que é o cumprimento da lei da nossa República (a isto chamaria investir num futuro mais inclusivo). Menciono também o abandono escolar por parte da etnia cigana (91.3% da população cigana não tinha o 3º ciclo, em 2017 - segundo o mesmo artigo do Expresso acima citado), e outras práticas como a excisão genital feminina, que devem ser combatidos sem pruridos culturais por violarem direitos universais.
O combate à corrupção deve ser ativamente praticado por todas as instâncias do nosso Estado, e qualquer português com acesso à internet pode consultar, por exemplo, a lista de devedores à Segurança Social online. Encontramos os devedores divididos em duas classes: pessoas singulares e coletivas. Fui às coletivas e encontrei 12 páginas de devedores listados para dívidas entre 1 e 5 milhões de euros (12 milhões se cada um dever pelo menos 1 milhão), mais 12 páginas de meio a 1 milhão, e 42 páginas de 250 mil a meio milhão de euros. Por entidade devedora. Divirtam-se aqui.
No site da autoridade tributária encontramos o mesmo esquema. Temos 22 entidades listadas num PDF, sinalizadas como devendo mais de 5 milhões de euros ao estado cada, e 6 páginas A4 com listas de devedores de 1 a 5 milhões. Há muito mais escalões de devedores.
Também há que nos preocupar com a TAP, o BES, os Berardos e os Luís Filipes Vieira desta vida (cujo grupo económico, em 4 anos, causou 225 milhões de euros de prejuízo ao BES e que é um dos principais devedores ao banco que os portugueses estão fartos de resgatar). Mais detalhes aqui.
A somar a isto, roubam os proprietários de certos estabelecimentos - e roubam até ao manter empregados sem contrato de trabalho, sem passar faturas, sem serem honestos nas declarações que fazem. Em Portugal, foge-se aos impostos e às contribuições, às dívidas e às obrigações desde o topo até cá abaixo. Aqui em Almada, por ex., há proprietários de redes de pastelarias que pagam o salário mínimo a funcionários sem contrato por 6 dias de trabalho semanais. Proprietários que se passeiam de carrão e que entregam o dinheiro em envelopes em mãos à multidão de empregados cujas famílias dependem destes escroques para se alimentarem e não serem subsídio-dependentes. Vai a ver-se e são estes senhores que, entre uma baforada de charuto e mais um envelope para pagar os seus muitos funcionários ao fim do mês (o retrocesso civilizacional!), dizem que quem destrói o país são os ciganos e os estrangeiros que, em 2017, representavam apenas 3,8% da população residente em Portugal, e que por exigências do SEF têm de se manter ativos no mercado laboral para poderem permanecer no país.
Vergonha é importante, mas é a começar por cima, e não a escolher bodes expiatórias na arraia-miúda.
Informem-se. Parem, escutem, olhem. Com olhos de ver.