Pobreza e menstruação
celiacloureiro
A 28 de Maio, o Jornal de Notícias e outras plataformas divulgaram uma proposta do Bloco de Esquerda para a distribuição de tampões e pensos higiénicos em escolas e postos médicos. Com a ressalva de que "No ano passado, o projeto foi chumbado e depois de a medida ser aprovada em países como a Escócia, Nova Zelândia, Canadá ou Inglaterra, o Bloco decidiu voltar a insistir."
Uma vez mais, sinto que o nosso governo socialista favorece a igualdade (e os votos que daí podem advir) face à equidade. Nem todas as crianças precisam que lhes ofereçam os livros escolares. Não era necessário baixar propinas para o Ensino Superior - o que é necessário é um sistema que garanta os estudos a quem não puder pagá-los, e isso já existia através das Bolsas de Estudo. Talvez seja necessário que algumas meninas e mulheres possam levantar material higiénico para fazer face a uma necessidade fisiológica mensal.
A Escócia, ao tornar-se o primeiro país do mundo a distribuir estes materiais gratuitamente, baseou essa necessidade no facto de que «Uma em cada 12 jovens britânicas usa jornal como penso higiénico».
Ao ler sobre isto, recordei-me da minha própria experiência. Corria o ano do senhor de 2002, e, ao contrário das minhas colegas que estavam doidas por terem o período, eu não queria nada ter "o Benfica a jogar" em casa. Tinha feito 12 anos há 2 meses, estava no 7º ano e pouco antes a escola tinha distribuído dossiers sobre saúde sexual, com enfoque na menstruação. Tinham oferecido amostras de pensos higiénicos e de tampões. Como sempre fui uma aluna medíocre a Ciências, devo ter passado pelas brasas durante algumas das explicações. Quando uma dor de barriga aflitiva veio interromper-me um teste de Francês, pedi licença para ir à casa de banho. Nessa altura andava sempre com um penso diário, porque estávamos todas a começar a ser atingidas pelo mal comum. Não tardava muito a ser eu... Acontece que quando me limpei vi sangue, suspirei de resignação. Mandei o penso para o lixo e pensei "Boa, por este mês já estou livre".
Meti uns cêntimos no telefone pré-pago da escola, chamei a avó. Dei-lhe a notícia de que "já era uma mulherzinha", como sempre a tinha ouvido dizer, e fiquei muito espantada quando ela me perguntou se estava suja. "Como assim, suja? Por este mês já foi". A avó ficou em pânico - para ela, deixar que os outros vejam o nosso sangue menstrual sempre foi a vergonha máxima a que uma mulher pode sujeitar-se. Tinha muitas histórias do género para contar, do tempo em que a mulher se arranjava com uma toalha dobrada e vestia saias, pelo que era mais propensa a acidentes. O verdadeiro choque veio aí, quando ela me disse que o período tinha acabado de chegar, e que havia de ficar durante alguns dias. Lá fui eu para as aulas, com meio rolo de papel higiénico nas cuecas, ciente de que em casa apenas tinha pensos diários - baratos e duradouros.
A parte da pobreza se interligar com a menstruação, mesmo na Área Metropolitana de uma capital europeia, deve-se ao facto de a minha luta ter começado nessa noite: a avó esperava-me com toalhas. Disse-me que usasse panos, porque os pensos eram caros. Ela recebia apenas a pensão de quem nunca descontou, o avô tinha uma reforma minúscula (porque antecipada). O pai e a mãe também estavam desempregados, e enfrentavam outros demónios que sugavam os parcos recursos familiares.
Tive de envolver as primas na situação para conseguir que me cedessem 2 euros para comprar 16 pensos higiénicos. Ajudaram-me a convencer a avó de que no século acabado de entrar não era higiénico nem aceitável que uma menina que frequentava a escola, que fazia Educação Física, que se sentava manhãs e tardes seguidas numa sala de aula, tivesse de usar panos durante quase uma semana por mês. Ficou então entendido que os tempos tinham mudado, e ganhei o direito a comprar um pacote de pensos por mês. As conversas, ainda assim, repetiram-se todos os meses até aos meus 17 anos, com apelos para usar menos pensos, para não os mandar logo fora "quando caía uma gota de sangue", e etc., etc.
Aos 17 anos comecei a trabalhar e a ganhar o meu dinheiro. Aos 18 entrei na faculdade, despedi-me e vali-me da Bolsa de Estudo (a tal, para quem precisa) para os meus alfinetes. Nunca mais voltei a usar pensos higiénicos pagos por outrem, nem a enfrentar o horror de ter de usar uma toalha de rosto dobrada nas cuecas (nunca cheguei a usar porque sempre me recusei).
Hoje em dia vivo com duas irmãs. É evidente que a necessidade de pensos higiénicos, tampões e panafernália de combate mensal ao período trazerem despesas acrescidas aos agregados familiares. Cá em casa somos três mulheres em idade menstrual, duas das quais além do material habitual precisam também de analgésicos para suportar as dores. Somando tudo, ao fim do ano temos uma bela conta. Ao fim de 40 anos de menstruação, podia pelo menos ter feito um cruzeiro nas Caraíbas.
Por sorte, e apesar de desempregada, ainda posso pagar essas coisas. Mas pergunto-me como é que o governo pode chumbar uma medida destas, quando o interior do país sofre de carência a tantos níveis, quando há tantas meninas sem acesso a planeamento familiar, a aconselhamento, a cuidados de saúde e de higiene básicos, e depois distribui bens indiscriminadamente - os livros escolares, a baixa de propinas - para quem precisa e para quem não precisa. Os recursos, na minha opinião, devem ser direccionados. Existem para garantir que quem precisa nunca lhes sentirá falta.