Outra vez a Bolsa DGLAB
celiacloureiro
Na segunda-feira, saiu uma vez mais a lista de bolseiros atribuída pela DGLAB para 2023. Alguém que se sinta inseguro quanto à qualidade do seu trabalho e que não tenha sido contemplado pode considerar que se trata apenas disso: falta de qualidade. No meu caso, e detestando teorias da conspiração, não posso deixar de passar os olhos pelos vencedores (pelo menos dois deles pela segunda vez) e de me perguntar uma vez mais sobre a justiça e os critérios que levam à avaliação das candidaturas. Isto é: os projetos são avaliados por aquilo que são (um escritor bom com um projeto mau, um escritor desconhecido com um projeto bom), ou pelo nome de quem apresenta a candidatura?
Este ano, assim que recebi a lista e que vi que poderíamos consultar a ata do júri relativa aos projetos vencedores, tomei um duche, meti-me no carro e rumei à Cidade Universitária. Entrei pela primeira vez na Torre do Tombo (uma espécie de arca de Noé) e subi até ao gabinete da DGLAB. Fui recebida com cortesia num escritório ao fundo de um corredor cheio de retratos a preto e branco de autores portugueses consagrados (alguns imortalizados). Pedi para ver a ata do júri, bem como a classificação dos meus projetos (apresentei dois).
Para termos direito a bolsa, temos de obter a classificação máxima (10) em todos os critérios. Todos os bolseiros tiveram 10, e apenas eles. Por um lado, parece-me uma classificação muito simplista. Basta correr os "favoritos" a 10, sem sequer lhes dar margem para um ponto menos forte na candidatura.
Um dos meus projetos teve 8. Anteriormente, tive um projeto com 8,6. É agridoce. Olhei para a nota, revirei as páginas nas mãos e pensei: é preciso que nenhum favorito se candidate com um projeto sobre rissóis para que este 8 se torne um dia num 10.
Atenção: não estou a dizer que todos os contemplados sejam favoritos mas, das 7 bolsas atribuídas para Ficção Narrativa, parece-me evidente que pelo menos 6 estão no circuito dos prémios literários (a sério, investiguem os juris, as organizações, e estabeleçam as conexões), dos pais escritores, dos nomes sonantes, dos passeios ao colo do Público e das editoras que ditam o que é "cultura" em Portugal.
Ana Teresa Pereira - pela segunda vez, Grande Prémio Romance e Novela APE/DGLAB 2011 (isto é, organizado pelo mesmo gabinete, possivelmente com os mesmos funcionários/juri a regê-lo). Tem mais de 40 obras publicadas, segundo o nosso amigo Google, por isso a parte em que a Bolsa se propõe a permitir que o bolseiro se dedique exclusivamente à escrita (parafraseando) também não importa quando o escritor já o faz independentmente dos fundos da cultura.
Frederico de Melo d'Ornellas Pedreira - o senhor d'Ornellas é um Doutorado na própria Universidade de Letras de Lisboa, no coração da qual temos este bonito escritório da DGLAB.
Daniela Margarida Duarte Leitão - quem é Daniela Leitão? A única que recebeu a bolsa por mérito?
Ana Mafalda Leitão Ivo Cruz Valente - Grande Prémio APE do Romance e Novela 2003, muitas raízes deste prémio terão ligação com a nossa querida DGLAB
Maria Antónia Neves Nazaré Oliveira - académica com especial interesse no nosso Camilo Castelo Branco
Matilde Maria D’Orey de Sousa Campilho - bisneta materna do 5º Duque de Palmela, querem convencer-nos que é um génio da poesia mas agora vai escrever contos e a bolsa, que favorece outras obras de referência na mesma área a que nos candidatamos, fechou os olhos. É um 10. O que quer que saia da pena da bisneta do 5º Duque de Palmela será ótimo e será anunciado na Sábado com ovação
Ana Margarida Taborda Duarte Martins de Carvalho - filha do nosso querido Mário de Carvalho, recebe bolsa pela segunda vez, a última sendo em 2017, também foi agraciada pelo Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2013 (em colaboração com o mesmo gabinete que atribui as bolsas)
Posto isto, o que me pergunto uma vez mais é se o Ministério da Cultura está ao serviço dos autores, do surgimento de mais vozes, ou ao serviço de apelidos e de personalidades construídas pela própria DGLAB, muitas delas sem qualquer reflexo nos hábitos de leitura dos portugueses. Trata-se de dinheiro público a pingar constantemente sobre as mesmas pessoas - por muito genias que possam ser (duvido), será que as classificações são atribuídas com o rigor que se espera a um comité responsável por gerir estas oportunidades?
Pergunto-me se um serralheiro mecânico da Azinhaga, apenas com a escola técnica, teria direito a bolsa neste mundo de académicos. Se é preciso um doutoramento para pensar, para sentir e, portanto, para escrever.
Este país exaspera-me.