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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

13
Jan23

Piso 3 (Outra Vez)


celiacloureiro

Hoje foi dia de exame ao coração. Pus um batom vermelho para me sentir confiante no meio das dificuldades e, antes de apanhar a dona Vanda, pus The Beatles a tocar. Da última vez ouvimos The Supremes/Diana Ross. A minha mãe adora música, e a música põe-nos para cima.

Subimos até ao terceiro andar, as senhas não funcionam. Na secretaria, pedem-nos que esperemos a nossa vez para realizar o exame junto à porta x, e ainda estamos a percorrer o corredor de mão dada quando vemos a técnica à espera. É daquelas pessoas que, por trás da máscara, falam com um sorriso. Diz-nos que somos os últimos “clientes” do dia, e a sua animação faz-nos sorrir. Perguntei se podia acompanhar a minha mãe, deixaram porque ela declarou imediatamente que ia precisar de ajuda para despir as camisolas. De repente, está cheia de calor. A caminhada da porta até ao fundo do corredor deixou-a exausta, respira com dificuldade. O peito que lhe foi removido é muito mais estético do que temi. Nunca a tinha visto despido desde a remoção do peito, mas ali está ele: como o peito de uma adolescente, com uma espécie de mamilo pequeno e subdesenvolvido, mas harmonioso. Se calhar, estas pessoas precisam que alguém lhes diga que a sua mama ausente é bonita, que apesar da assimetria o corpo continua a ser uma paisagem de beleza, principalmente quando há saúde.

A minha mãe não consegue respirar deitada, nem de lado como lhe pedem que se posicione. Dão-lhe tempo para recuperar o fôlego, abrem a ficha dela. Eu sacudo o seu leque, a seu pedido. Rio-me, rimo-nos as duas. Jamais prevemos que, um dia, eu haveria de a abanar com um leque. Sempre foi ela que arregaçou as mangas e me ajudou, sempre recusou ajuda. Pouco depois, espalham o gel no seu peito, com a maca soerguida e a minha mãe deitada de lado, com a respiração um pouquinho mais calma (e sem máscara, Deus abençoe as técnicas, porque o valor máximo de um hospital devia ser não provocar mais sofrimento aos pacientes). Parece uma ecografia, e penso que seja uma variante disso, mas o órgão que se move nos dois ecrãs é o coração da minha mãe. Visto de vários ângulos. Ventrículos, válvulas e formações fibrosas aqui e ali. A mãe está bem, conseguiu acalmar-se, não tem frio. E eu absorvo por um instante a circunstância de estar a olhar para o coração de uma pessoa – a minha mãe – naquele ecrã. Vejo-o a trabalhar, abre, fecha, a válvula parece a lagartinha do livro de Eric Carle. As técnicas são minuciosas, trocam comentários. Oiço palavras como “fraco”, “esforço”, “formação fibrosa”, “colapso”, “função comprometida”. Depois interpelam a minha mãe, dizem-lhe, num tom meio alegre, se ela se perdeu entre 2018 e 2022. Não voltou lá porquê? Porque faltou às consultas? A minha mãe suspira, aperta os lábios, alça as sobrancelhas. A técnica diz-me que é possível que ela já tivesse problemas cardíacos há algum tempo, não sabemos porque esta paciente é muito esquiva. Disse-me, no entanto, que há líquido nos pulmões. Auscultaram-na (não sei se são técnicas, se eram médicas, só sei que tinham o dom de cuidadoras). A oncologista da minha mãe não a auscultou. Não quis despistar uma pneumonia, não quis perceber como estava aquele par de pulmões a funcionar em tempo real. Não ponderou interná-la.

Enfim, a minha mãe é forte. Saímos dali de mãos dadas uma vez mais. Sentámo-nos na sala para ela recuperar. Depois chamámos o elevador e entrámos. Pareceu-me tão pequena, ali de pé, com o casaco enorme e as calças largas. A última coisa que vejo diante de mim, antes de a porta se fechar, é a placa do piso 3 que indica, à esquerda, a unidade de Cirurgia Maxilo-Facial. Onde o meu pai passou dois dos três últimos meses da sua vida. A proximidade das duas alas parece-me ofensiva, mas nada melhor do que voltar a sorrir.

Vou buscar o carro. A mãe não quer esperar no interior, diz que quer ver-se livre da máscara. Lá fora, arfante, precisa de se sentar. Não há bancos. Eu vou buscar o carro em corrida, ligeiramente animada pelo que ela me disse quando saiu do elevador. “Se estou cheia de calor e sem fôlego agora, imaginem quando chegar o verão”.

Se ela acredita que o verão há-de chegar, porque hei de duvidar?

05
Jan23

Piso 8


celiacloureiro

Estou de volta ao piso 8 do Hospital Garcia de Orta. De volta aos velhinhos que não sabem inserir o cartão de cidadão na ranhura para validar a consulta. De volta à sala de espera de oncologia, rodeada de condenados e de um punhado de futuros milagres. Desta vez, a pessoa ao meu lado é a minha mãe. Uma vez mais, o médico dirige-se a mim, porque a pessoa ao meu lado, sobre a qual paira a foice, não tem palavras.


Enquanto o médico da minha avó era mais reservado, esta oncologista é direta, sucinta, incisiva. Não há nada a fazer. Não há cura. Pode fazer quimioterapia ou não, diga-me você, você é que sabe, eu acho que devia, mas você é que sabe. Não sabe quanto tempo a quimioterapia poderá comprar-nos, se descobrirmos agradece que a informemos. É uma roleta-russa. Continuamos a remar, apesar de sabermos que estamos sozinhos no meio do oceano, sem salvação possível, ou pousamos os remos e deixamos que o sol e a sede nos devorem? Morrer a lutar ou morrer tranquilo, sem viagens ao hospital, sem salas de espera, sem catéteres nem o assalto do cheiro a antisséticos?

Lá estou eu, a descer às catacumbas do hospital para marcar outro exame de medicina nuclear, mais de quatro anos depois. A suportar 35 utentes à minha frente para marcar as análises, as senhas que não funcionam, a funcionária que se ausentou um instante, a fila desordeira e o utente que assoma só para “perguntar uma coisa”.

Lá estou eu, ao lado de outra pessoa condenada, sem palavras, sem plena noção de que o que lhe anunciam é o fim, com a Ponte 25 de Abril para lá da janela, uma paisagem solarenga que não se coaduna com o silêncio da médica que digita a um ritmo insuportavelmente lento a transcrição total do relatório de um raio-x ao tórax. Fomos chamadas para uma consulta de oncologia e, nos primeiros dez minutos, a médica passa o olhar do relatório para o teclado, ocasionalmente para o monitor de um HP antigo, e continua a transcrever a nossa sentença. Parece-me pouco humanizado, o processo. Por fim, pousa os cotovelos na mesa, apoia o queixo nos dedos e diz: Pronto, o cancro espalhou-se. Está nos dois pulmões, nos ossos e no fígado. Não tem cura, está num estado muito avançado. Quer tentar fazer quimio ou peço consulta de cuidados paliativos?

E as respostas absurdas. Tal como o meu pai, há quatro anos, a minha mãe também tenta combater as dores de um cancro terminal com Ben-u-ron. Mas diz que nem sempre o toma, porque receia que lhe faça mal. Ou dormir, nem sempre (quase nunca) dorme, mas também não toma nada por receio que lhe faça mal. Também não come, come pouco ou nada, se a médica pudesse ajudá-la a recuperar a fome… A médica procura-me os olhos, é tudo o que vemos uma da outra. Repete: Tudo vai dar ao mesmo. Ao cancro. Encolhe os ombros, como quem diz “para o pouco tempo de vida que tem, tome os comprimidos que quiser para dormir.”

Pede algo que lhe abra o apetite, porque a médica diz que 45kg para uma mulher de 1,60m não é peso de gente. Saímos do hospital depois de correr três pisos para marcar exames e de sermos extorquidos no parque de estacionamento. A ronda das farmácias não corre bem. O comprimido para o apetite está esgotado nos fornecedores. Um suspiro profundo, como se daí pudesse vir a salvação, e agora tudo estivesse perdido.

Antes de bater a porta do carro para entrar na farmácia, a voz arfante da minha mãe pede-me: Traz-me Halibut, custa-me a estar sentada.

E eu regresso minutos depois, a perguntar-me como foi que viémos aqui parar: a este estranho momento no tempo em que o Halibut passa das minhas mãos para as dela, 33 anos depois.

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