O Rádio do Teu Quarto, Pai
celiacloureiro
Por algum motivo, peguei no caderno preto com capa de couro que o meu pai usou para apontar os seus compromissos, pensamentos, receios, gastos, nos últimos meses de vida. O caderno está cheio de detalhes angustiantes do cancro em fase terminal, mas também da ilusão e da esperança de que não houvesse uma sentença de morte a pender sobre a sua cabeça.
A única música que sempre lhe associei foi a The Drugs Don't Work, dos The Verve. Hoje lembrei-me de outra, muito mais bonita e adequada. A Thank You For Loving Me, dos Bon Jovi. Pus-me a ouvi-la e percebi que é isto mesmo. A enxurrada de lembranças. Como me lembro dele com 28 anos e como o achava o homem mais bonito do mundo, e também o mais habilidoso. Acho que acordei a pensar no meu pai porque tive uma insónia na noite passada. Adormeci por volta das 06:30 a dar voltas à cabeça com detalhes da minha casa nova, coisas que sei que ele teria resolvido com um lápis e um caderno quadriculado. O meu pai era simplesmente brilhante. Ele, o seu lápis e o caderno quadriculado. Ele trabalhava ferro, tantas vezes o vi por detrás da máscara de soldador; trabalhava madeira, sabia fazer eletricidade, canalização, era um pintor primoroso, sempre asseado e organizado e meticuloso em tudo o que fazia. Era preciso, coisa que nunca consigo ser. Se estivesse vivo, o meu pai teria 54 anos. Seria muito, muito novo. Se tivesse conseguido livrar-se do vício da droga, e se tivesse recuperado a minha confiança, tenho a certeza de que seria o cérebro que iria comandar esta renovação. Ele e o meu irmão poderiam estar a ser pai e filho, orgulhosos um do outro, numa aldeia alentejana, a partilhar moscatel e um cigarro e a aprender um com o outro. O moderno e o intemporal. Morrer aos 48 anos deixa um saldo negativo incalculável. A vida do meu pai podia ter sido tão longa, tão cheia de conquistas, tão gratificante. Não costumo pensar no vazio que ele deixou, mas a verdade é que, de alguma forma, ele rompeu a barreira do meu antidepressivo e as lágrimas estão a descer livremente.
Tenho tantas saudades tuas, pai. Da tua voz. Dos teus dedos grossos e calosos a pairar sobre a peça de xadrez antes de avançar e de me fazeres outro xeque-mate. Da palma das tuas mãos, onde em tempos coube carinho e cabiam os dados, com as faces desgastadas. Dessas mãos saía tudo, saiu a cruz de ferro da igreja da nossa freguesia, saíram portões, saíram casinhas de madeira para bonecos e pássaros, saíam pisos direitinhos de laje e saiu aquela árvore geneológica da família que pintaste na parede do anexo do quintal com o brio que te era caraterístico. Fazias tanto com tão pouco, do nada. As escadinhas em caracol de cordel e madeira, a casinha de papel que me fizeste quando eu era pequena, e como fiquei encantada com uma coisa tão frágil mas tão engenhosa, que nunca saberia fazer igual.
Ainda me lembro do cheiro do teu quarto quando ias tomar a bica depois de jantar e eu ligava o rádio. Ouvia o top 10 da rádio Cidade e a Thank You for Loving Me dos Bon Jovi tocava sempre num dos primeiros lugares. O quarto cheirava a tabaco, a outros fumos, mas também cheirava a casa. Depois tu chegavas, baixavas o som, tiravas o blusão de ganga e montavas a mesa para jogarmos. Obrigada por todas as horas em que aceitaste a minha companhia - a companhia de uma miúda que só queria aprender contigo, absorver um pouco do muito que me parecia que sabias. Agora entendo que tudo o que em mim é arte veio de ti. E sei que me amaste. Eu também te amei e amo ainda hoje. Tenho tanta pena de não podermos ter sido pai e filha por mais tempo. Sinto muito por não ter sabido ajudar-te melhor, ou sequer compreender-te melhor.
A tua morte foi a coisa mais hedionda a que alguma vez assisti e, se Deus existir, nunca mais ninguém voltará a morrer assim. No teu caderno há listas de exames, de consultas, de especialistas - maxilo-facial, ortopedia, oncologia, pneumologia. Registaste as visitas que recebeste no internamento, mas só conseguiste fazê-lo por dois dias. Depois, a dor tornou-se insuportável e a dose de opióides subiu. A tua consciência retirou-se. Fui visitar-se quando isso aconteceu. Só hoje, no teu caderno, descobri mais um pormenor inacreditável: aos 48 anos, pesavas 46,5kg quando foste admitido no hospital. Lamento tanto que, às vezes, pareça que a tua vida não valeu nada.
Desculpa se o meu número não está entre os contactos de emergência que apontaste. Quero acreditar que é porque o conhecias de cor.
Assim como a escrita te trouxe conforto nas últimas semanas em que estiveste consciente - portanto, vivo - uso-a agora para dizer que te amo e que tenho muitas saudades tuas. E também thank you, for loving me, I know you did.