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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

25
Set24

Ut pictura poesis


celiacloureiro

 

Nunca como agora - quase a chegar aos 35 anos - estive tão ciente das minhas limitações. Paradoxalmente, isso deixa-me mais orgulhosa das minhas conquistas. Afinal, sempre fui uma cabeça de vento ambulante, dividida entre o tédio e o entusiasmo, acordada de noite e sonolenta de dia, que recorda pormenores absurdos mas não consegue lembrar-se de detalhes importantes nem que tenha a vida em risco. A casa é o equilíbrio entre a pessoa desarrumada e a que odeia desordem. As refeições são preparadas no joelho ou encomendadas por desespero. A pintura é uma indulgência, bem como os animais, a coleção de livros. Há dias em que estranho ter escrito e publicado tanta coisa, há outros em que não compreendo como não escrevo mais, tendo uma cabeça tão prolífera em ideias.

O sítio para onde vou morar é escuro, muito escuro. A única estrada que conduz àquela fachada caiada e àquele torreão medieval está atapetada de animais atropelados. Enquanto conduzo nela, repito: atropela, atropela, atropela. Tenho tanto medo que o coração me leve a guinar o carro para a berma, para o muro, para a cerca. É uma reta interminável, assustadora e acidentada. É-me inevitável fazê-la a 100km/h. Não sei lidar com o aborrecimento. O aborrecimento paralisa-me. No entanto, sinto essa povoação a salvo da maldade dos sítios luminosos, com muita gente e muita competição por recursos.

A Universidade de Évora é um lugar lindíssimo e inspirador, tingido por demasiado barulho na biblioteca e alguma falta de papel higiénico nas casas de banho. Sinto que era capaz de estudar ali todos os dias, as mais variadas matérias, se não tivesse mais trabalho a desenvolver. Os professores são humanos, metódicos e parecem-me cansados. Nos corredores, os alunos gritam e chutam as máquinas de venda automática. Nas aulas, estamos todos em silêncio, e essa solenidade faz-me bem. Nada é já solene, nada é já sagrado. Que ao menos uma instituição de ensino seja sagrada.

Há alturas em que me apetece ver como tudo isto será amanhã. Outras em que só queria que esta canseira acabasse.

02
Set24

Falésias


celiacloureiro

Entre ontem e hoje pintei bastante. Umas oito (?) aguarelas, três temas no total. Uma mulher à beira mar, perante o rebentamento das ondas - com a variação de ter uma menina pela mão -, uma paisagem com casa de campo e campos de lavanda e campos de lavanda com uma casa de campo (parece a mesma coisa, mas não é).

 

Enquanto pintava, pus a Not Alone, do Ólafur Arnalds em repeat. Partilhei-a no IG e vieram dizer-me para assistir à série Broadchurch, britânica, à qual a composição pertence. Vi a primeira temporada da série, achei muito boa, mas gostei, acima de tudo, da banda sonora. É engraçado como as bandas sonoras me apanham com tanta facilidade. O que mais adoro no Interstellar é precisamente a banda sonora, em especial a No Time for Caution e, claro, a Cornfield Chase.

 

Há dias, dei uma espécie de entrevista de vida, focada em mim e na minha história, na minha infância, nos meus defuntos e nas minhas doenças mentais - não sei bem se deva colocá-lo assim. Acho que uma doença mental é uma bipolaridade, uma esquizofrenia. Eu só tive duas depressões e tenho déficit de atenção. Parecem-me coisas light, distúrbios menores, mais fáceis de gerir, do que uma «doença mental».

 

Conduzi até ao supermercado ao fim do dia, com os raios dourados e esverdeados do fim do verão a atravessarem o carro empoeirado, a comer pistáchios e a acumular as cascas no nicho debaixo do rádio. Ouvia a Not Alone e sentia a minha vida em modo automático. O tempo a rolar - rodas dentadas a esmagarem-no, a pregarem-no ao chão -, o verão a expirar e eu estranhamente entorpecida. Sempre atrasada, sempre atrás do prejuízo, sempre na corda banda. Apática no supermercado, atrás de uma mulher ao telemóvel com três filhos com menos de 8 anos. Um deles, o mais pequeno, com um brinco na orelha direita, abriu o frigorífico de bebidas junto à caixa e tentou abrir uma lata de Red Bull. Teria uns 4 anos, talvez até menos. Tinha os atacadores soltos, tal como o irmão do meio. Pensei que fossem estrangeiros, mas de repente percebi que os morenitos birrentos e de corte à jogador da bola eram portugueses. Olhos redondos, enormes. Bonitos, incrivelmente bonitos, mas também insuportavelmente inquietos. Não encontrei coragem para impedir o pequeno de abrir a lata. Já tinha as palavras nos lábios «Menino, olha que isso é bebida para os crescidos», mas não tive forças para dizer nada. A mãe estava completamente alheada no telemóvel, limitava-se a proferir uns ocasionais «Não mexam nisso» e «Isso não é para mexer», e nada mais. Nem viu o filho a voltar a abrir o frigorífico para uma segunda tentativa, depois de ter falhado a primeira.

Senti-me tão exaurida. Não consegui dizer-lhes nada. A cadência da música na minha cabeça. Uma vontade imensa de escrever um - vinte - livros, e nada de tempo nem forças para escrever nenhum. Cheguei a casa e carreguei sacos para casa. Parece que estou sempre a carregar sacos. Sentei-me ao computador, gastei dinheiro em compras de material de construção para a casa nova, comi pão com manteiga, acabei de ver a série e, por volta das 23h00, comecei a traduzir. A história prendeu-me porque me recordou muito a série, a música caiu-lhe que nem uma luva.

O tempo passou. Está sempre a ranger debaixo das rodas dentadas. Amanhã, será tudo igual - uma variação - compras e série e tradução, ou tradução e música e compras, ou música e pintura e compras.

De que serve o tempo, afinal?

Quando pestanejar, quando tempo terá passado da próxima vez?

Estarei a viver em Évora e será tudo igual? Apenas mais distante, mais cansativo, mais solitário, mais isolado?

Traduzi 23 páginas hoje. Fiquei satisfeita comigo, mas...

Tive de vasculhar no meio das fotografias de família por retratos adequados à «entrevista de vida», para a montagem final. Depois vejo-me de fora: 34 anos, só. É o que penso: . Mas não é o que sinto. Cheguei à entrevista descabelada, com o cabelo do dia anterior e um vestido de praia largo e comprado no chinês, sem sutiã, convencida de que seria apenas voz. Nem um pingo de maquilhagem. Encolhi as pernas debaixo do meu corpo na cadeira giratória. Tentei não me aproximar demasiado do microfone.

«Como foi a tua infância?».

Que caras terei feito? Como serei eu, aos 34 anos, a falar da minha vida?

Fiz as pazes contudo. Estou em paz.

No entanto, às vezes parece que não estou.

Ou, pelo menos, que não estou bem aqui.

Para onde vou quando não estou em lado nenhum?

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