Cadavre Exquis
celiacloureiro
Bem sei que os títulos das minhas publicações são cada vez mais pedantes, mas deve-se ao facto de frequentar uma universidade e de estar a transformar-me numa pessoa erudita - à medida que as informações penetram neste cérebrozinho encharcado em aluamento severo.
Cadáver esquisito - jogo surrealista, doido, sem trembelho nenhum, que soa mais fino em francês. Um recorte de ideias em que um participante escreve uma pergunta/resposta e outro junta outras sem ver a anterior e, de repente, sai algo tipo o exemplo que a wikipedia nos oferece:
“- De que cor é o vermelho?
- É verde.
- Quem é o teu pai?
- É o revisor do comboio para a lua.
-O que é a loucura?
- É um braço solitário a sorrir para os meninos.
- Quem é Deus?
- É um vendedor de gravatas.
- Como é a cara dele?
- É bicuda, com uma maçaneta na ponta.”— O Vermelho e o Verde (João Artur Silva, Mário-Henrique Leiria)
Enfim, dizia que foi um dia estilo cadavre exquis. Também podia dizer-se que foi um dia sem trembelho.
Começou com um telefonema direto da obra interminável no Alentejo, segundo a qual houve outra inspeção à minha modesta casinha ($$$). Seguiu-se a busca inglória por um engenheiro alentejano. Depois, um telefonema para uma amiga onde se discutiu a situação incomportável de uma mulher sem-abrigo em Almada, e o pesadelo pelo qual a desgraçada está a passar. Enquanto isso, o autocarro para Évora imobilizava-se na paragem, e eu conversava para cá e para lá. A dada altura, lá caí em mim e entendi que se tratava do meu transporte. Telemóvel para que te quero: scroll para cima, scroll para baixo, e nada de bilhete. Quase em lágrimas, o revisor acaba por me mandar entrar mesmo assim. Pensei que era Deus (aka Universo) a retribuir-me a gentileza de ter oferecido uma bisnaga de voltaren ($$) à supracitada sem-abrigo, que sofre dos joelhos e o frio começa a fazer-se sentir.
Fiz o percurso até Évora numa espécie de semi-coma. Cheia de sono e desmotivada. Uma vez no quarto alugado, obriguei-me a desligar todas as notificações e traduzi durante duas horas seguidas. A grande surpresa foi à tarde, a aula deliciosa de Literatura e Artes. A professora é um doce, os colegas são todos muito diversos e amorosos - incrivelmente cultos - e tivémos um convidado de honra que conviveu com Cruzeiro Seixas, um dos grandes do surrealismo português.
Falámos de Freud, de id, ego e superego, de como as pessoas andam perdidas neste tempo tão opressor para o id.
No final, com uma dicção perfeita para a tarefa, o nosso ilustre convidado, o Prof. Cândido Franco, leu-nos três poemas lindíssimos. Um de Mário Cesariny e o outro, que me conquistou, de António Maria Lisboa.
"Eu num camelo a atravessar o desertocom um ombro franjado de túmulos numa mão muito abertaEu num barco a remos a atravessar a janelada pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamasEu na praia e um vento de agulhascom um Cavalo-Triângulo enterrado na areiaEu na noite com um objecto estranho na algibeira-trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo"Lindíssimo.É muito gratificante estar rodeada de pessoas que são autênticas enciclopédias e que, mesmo sob tanto conhecimento, tanta erudição, pulsa tanta humanidade, tanta sensibilidade. É tão etéreo que chega a ser mundano.Acabei o dia de volta ao quarto depois de jantar com o meu irmão, de ver o Sporting dar 3-0 a um adversário que desconheço (a sério, nem sei se o jogo ficou mesmo assim), e de recordar essa palavra que a minha avó tanto usava: trembelho. Também nisto recuperamos um bocadinho das pessoas que nos deixaram.
Cada vez mais apaixonada por elas.
Pelas palavras.