Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

27
Nov24

Pelo Fim da Ditadura dos Bidés


celiacloureiro

O dia 8 de janeiro de 2024 foi o dia em que, no Diário da República, foi publicado o Decreto-Lei n.º 10/2024 que pôs um ponto final à ditadura dos bidés em Portugal. Ora vejamos:

 

(...) elimina-se a obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho; ii) permite-se que possa existir um duche em casas de banho, em vez de banheiras. (...)

 

Pois é, que lei é esta que andámos todos (tantos, bastantes) a violar até 8 de janeiro de 2024, e o que significa isto do “fim da obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho”? Será que todos aqueles que preferiram ter um armário de toalhas ou um cesto para a roupa suja, ou mesmo uma máquina de lavar-roupa na casa de banho, no sítio onde tradicionalmente estaria o bidé, esteve este tempo todo sujeito a multas? E, afinal, a que multa estaria o cidadão/residente em Portugal sujeito por viver numa casa que não observava os trâmites legais do urbanismo nacional? Todos aqueles que tinham duche, até dia 7 de janeiro de 2024, estavam a viver à margem da lei? E de que forma é que uma banheira se impõe sobre uma base de duche, quando a base de duche é o recomendado para pessoas com pouca mobilidade, e a que burocracias é que um doente ou idoso teria de se submeter para obter uma licença para se ver livre da banheira e adotar a base de duche? A minha forte suspeita é a de que, graças à cegueira de legislação do género, andámos e andamos todos meio na ilegalidade, sujeitos à fiscalização que, por sorte, nunca, ou raras vezes, acontece.

O que mais me assustou ao ler sobre esta lei foi o facto de poder imputar responsabilidade, multas e contraordenações a um proprietário recente. Ou seja, se compraram hoje uma habitação, e a mesma não observa os trâmites legais, porque o antigo proprietário a alterou a seu bel-prazer sem pedir licenças para alterar o interior da sua casa, é o vosso nome que poderá ser prejudicado – com custos, tantas vezes elevados – caso os fiscais do urbanismo decidam bater-vos à porta. Pergunto-me se esta lei não inviabiliza – ou, pelo menos, desmotiva, fortemente – a compra de habitação no interior do país, ou a compra de habitações mais velhas, numa altura em que ter casa é um luxo e em que o interior continua a precisar de gente.

No meu caso, comprei, em junho de 2024 uma casa sem licença de utilização. Na escritura, ficou definido que trataria de fazer valer o Alvará da CME para a legalização de um anexo construído com data posterior à definida por lei para a isenção, e a primeira coisa que fiz ao dar início às obras foi corrigir a situação dos esgotos, com visitas regulares de um técnico do serviço de águas e saneamento da dita cuja câmara.

Uma vez que a casa tinha um pé alto de mais de 5 metros, decidi construir um entrepiso (uma espécie de mezanino) e, para esse efeito, fui consultar a lei. A lei transmitiu-me a seguinte informação:

Por outro lado, são acolhidas novas situações de isenção, onde não existe qualquer procedimento administrativo de controlo prévio. É o que passa a suceder, por exemplo: i) quando exista aumento de número de pisos sem aumento da cércea ou fachada (...)

 

Ontem, contudo, recebi uma carta da CME. Na realidade, uma intimação. Tinha dez dias para me opor à decisão de embargo da obra, pelo período de um ano, e o motivo alegado é que tinha procedido a obras de ampliação da minha habitação sem fazer comunicação prévia à CME, conforme previsto por lei num artigo e letra que não encontro no diploma atual. Não podendo acreditar que a câmara estivesse a emitir pedidos de suspensão – com todas as consequências que daí advém – baseada num parecer erróneo da legislação, voltei a ler o Decreto-Lei n.º 10/2024, perguntando-me porque terá sido mais fácil seguir Guerra e Paz do que este palavreado legal. Mas eis o que deslindo, posto que a alínea abaixo surge ao abrigo da citação anterior

(...) As obras de reconstrução e de ampliação das quais não resulte um aumento da altura da fachada, mesmo que impliquem o aumento do número de pisos e o aumento da área útil;

Por um instante, fiquei em pânico. A minha interpretação parece-me correta, mas a lei é tão confusa, tão omissa, tão obscura e intrincada, até para quem cursa cadeiras de mestrado e leu Leo Tolstói, que pus a hipótese de ter entendido mal. Dirigi a minha resposta ao respetivo departamento da CME e fico à espera.

Mas eu tenho ansiedade e preciso de me sentir segura. Então, a seguir ao pânico, veio a nova resolução: se a CME encontrar – ou fabricar – motivos para embargar a obra, porque imagino que as câmaras estejam muito insatisfeitas com a perda do dinheiro que entrava por via de taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, compro outra casa. Esta malfadada casa em Évora, na qual o meu irmão se tem esfolado, tem embatido em imensos obstáculos. Primeiro, a pouca, fraca e dispendiosa mão de obra no distrito, onde é da praxe que os empreiteiros aceitem várias obras e as vão intercalando umas com as outras, sem grande seguimento nem cumprimento de prazos – recolhi vários testemunhos neste sentido. Tudo demora imenso tempo, os custos são cada vez mais avultados e, agora, a câmara a pairar sobre a obra, diligente, e a emitir propostas de pedidos de suspensão.

É também isto que está errado com o nosso país. Um cidadão que queira estar em conformidade com todos os meandros da lei, esfola-se em guichés e esvazia os bolsos para regularizar as tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, mesmo quando a lei já não as exige, para evitar “problemas”, porque as pessoas têm medo das câmaras municipais, esses monstros de papelada, como têm da polícia de trânsito quando se sentam ao volante depois de jantar, mesmo que não tenham tocado em álcool. Comprei uma casa fechada desde 2016, o quintal era uma selva, os esgotos estavam às três pancadas, a eletricidade nem quero imaginar, o piso desnivelado, por toda a parte iam surgindo rachas e rachinhas, e estava enclavinhada entre duas outras moradias, habitadas. Na mesma rua, há uma prestes a derramar-se sobre a estrada, a fachada está, literalmente, suspensa por um fio. Ainda assim, nem os vizinhos nem a câmara ficaram satisfeitos com as obras de requalificação. Aborrece-lhes o barulho, chateia-lhes que não tenha preenchido requerimentos (os tais que a lei atual dispensa), e estão preocupados com a cor que escolhi para a porta e o friso, porque há cores de portas e frisos proibidos na região.

Tudo isto é tão pequenino, tão comezinho, que torna mais fácil compreender o porquê de os portugueses desistirem de Portugal. Este aparelho burocrático castrador não incentiva o cidadão comum, com vida ativa, problemas rotineiros, contas para pagar, a querer salvar nada. É mais fácil largar tudo, deixar cair. Um país que não nos estende a mão na saúde, que está a abandonar-nos na educação; uma freguesia como a minha, que tem um incentivo de 500,00 euros para cada criança que nasça na freguesia, porque a mesma vem a perder população há décadas, depois pede-os de volta nas tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas.

Um país onde a justiça continua a deixar assassinos saírem com penas suspensas, que explora professores, forças de segurança, médicos, enfermeiros, dispõe-se a perseguir o cidadão cumpridor, trabalhador, com uma ferramenta espantosamente funcional, observadora de prazos e diligente, que é a divisão de fiscalização de urbanismo. Neste Portugal dos escândalos, da corrupção, do compadrio, em que o próprio Ministério da Cultura usa os fundos dos contribuintes (e os europeus) para patrocinar as carreiras dos filhos e netos dos boys, o estado preocupa-se com bidés. E, para começar, como é possível que os portugueses tolerem um estado tão intrusivo que, em 2024, ainda legislava sobre a disposição das suas casas de banho?

Vivemos, mesmo depois da promulgação do novo diploma, a ditadura dos bidés.

23
Nov24

Quem é a Madame Butterfly?


celiacloureiro

Ora permitam-me responder, com todo o gosto, a uma pergunta algumas vezes repetida desde as stories que tenho publicado desde ontem.

Em primeiro lugar, Madame Butterfly é o que me traz a Lucca, o tema do meu trabalho de mestrado sobre o orientalismo na ópera de Puccini.

Mas quem é, afinal, a Madame Butterfly? Para o explicar - porque a explicação não é propriamente simples -, devo entrar um pouco pelo tema do meu trabalho de Literatura e Artes. Assim, a personagem Madame Butterfly é fruto do fascínio dos homens europeus (e norte-americanos) pelo exotismo do oriente e, em especial, pelos mistérios da feminilidade oriental em geral, e da japonesa em particular. Li, algures, que, o Orientalismo na arte é a interpretação do oriente a partir dos olhos dos ocidentais, portanto um Oriente projetado que não existe, se não em oposição ao que é ser-se ocidental. É, assim, uma quebra relativamente às regras, às leis, à religiosidade, às paixões e à conduta social dos europeus. Assume-se que o ocidente seria o lado da razão, do trabalho e da honra e da respeitabilidade, ou seja, do estatuto social do homem civilizado, enquanto o oriente era um mundo mágico de prazeres desconhecidos, um escape, um capricho. O ocidente como força masculina do mundo, o oriente como a feminina. Yin e yang.

Jean Auguste Dominique Ingres, La Grande Odalisque

Tratou-se de uma influência muito grande na arte ocidental desde, sensivelmente, fins do século XVIII e início do século XIX, estendendo-se até ao entre guerras. Terá começado com o enamoramente dos holandeses e dos ingleses pela parafernália de objetos que o comércio marítimo começou a trazer dessas paragens: sedas, chá, pedras preciosas, porcelanas, mais tarde vasos, utensílios de cozinha, mobiliário, biombos, quimonos. Durante o séc. XIX, Ingrès, Manet, Delacroix, pintaram o mistério do oriente e de paragens exóticas de forma magistral, introduzindo A Odalisca, os banhos turcos, os homens de turbante, a natureza oriental à audiência europeia. O fim dessa divagação amorosa do ocidente em relação ao oriente deu-se quando o Japão se tornou num inimigo da "liberdade" e dos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, embora essa admiração deixasse de ser tão vocal, é provável que permaneça até hoje uma ideia de oriente enfabulado, desconhecido e indecrifável na qual os ocidentais projetam imagens tantas vezes erróneas.

538e05d678c8d.jpg

Por volta de 1850, quando o Japão, um reino desde sempre fechado ao ocidente, abriu por fim os seus portos aos ocidentais, os norte-americanos puderam enviar navios para portos como Nagasaki e, nas décadas seguintes, a sociedade japonesa esforçou-se por se adaptar aos marinheiros que percorriam aquelas colinas fascinados com as suas pecularidades. Surgiram casas de má fama (bordéis), apesar de ser estritamente proibido que as mulheres japonesas se relacionassem com os homens ocidentais. Contudo, com a evolução das relações comerciais, acabaram por surgir modos de aproximar homens e mulheres de formas um pouco mais respeitosas, embora não menos degradantes para as mulheres japonesas de famílias desfavorecidas - ou caídas em desgraça, como a de Cio-cio-san, a nossa Madame Butterfly. Começaram a surgir intermediários casamenteiros, que sabiam que os americanos costumavam demorar-se nos seus portos e que procuravam mulheres dóceis que serviam de "esposas" em casas estabelecidas e custeadas pelos próprios americanos, para que estes vivessem a fantasia de ter uma casa, uma família, no Japão. Como é evidente, nenhuma mulher de famílias respeitadas se submeteria a essa posição. Muitas das que o fizeram sabiam que, uma vez que o seu marinheiro partisse, viria outro noutra estação que poderia, igualmente, tomá-la como esposa e sustentá-la durante algum tempo. O Japonismo é um subproduto do Orientalismo, e esteve muito em voga nas últimas décadas do séc. XIX precisamente pela abertura do Japão ao mundo ocidental. O oriente misterioso que os europeus exploravam há séculos estava pronto a revelar-lhe mais segredos.

Madame Butterfly é um conto escrito em 1898 por John Luther King, cuja irmã acompanhara o marido, missionário, a Nagasaki. Ali, ouvira falar da trágica história de amor entre uma japonesa e o marinheiro americano que a abandonou tendo, inclusivamente, conhecido os dois protagonistas. Era uma história recorrente, que também Pierre Loti explorara no seu romance de 1887, Madame Chrysanthème.

O conto vendeu "como pães quentes", e é fácil compreender porquê.

Hohenstein_Madama_Butterfly.jpgEm 1904, depois de ver a peça de David Belasco em Londres, Puccini lança a ópera Madame Butterfly, com as devidas adaptações para o público italiano. Embora tenha sido um fracasso na estreia no La Scala, devido à barreira cultural e a ser excessivamente longo, o compositor não desistiu da sua obra e repensou-a em três atos, transformando-a num sucesso mundial que é hoje em dia.

madamebutterfly_98360.jpg

O enredo é relativamente simples: um americano desembarca em Nagasaki e é recebido pelo cônsul americano na cidade e pelo casamenteiro que contratara por correspondência para conseguir uma mulher e uma casa durante a sua estadia na cidade. O cônsul avisa-o de que Cio-cio-san, ou Butterfly (chochou, o nome da protagonista em japonês, significava borboleta), era uma jovem sensível caída em desgraça devido ao suicídio do pai, gesto que é uma vergonha na cultura japonesa, e que ela acredita piamente no casamento com um americano. Está, inclusivamente, disposta a amá-lo, a abdicar da sua religião e dos costumes japoneses por ele. O cônsul explica-lhe que, para os japoneses, o casamento deve durar "999 anos". É desde logo evidente que Pinkerton encara o casamento como sendo "de fachada", "temporário", até, um dia, poder casar-se com "uma verdadeira esposa americana". Ora espreitem a ária em que o diálogo tem lugar, Dovunque al mondo, na qual Pinkerton diz que um homem não pode estar satisfeito se não colher o tesouro que são as jovens bonitas de cada praia, e que ficará casado com Butterfly por 999 anos, desde que não seja transferido para outro porto.

Butterfly é-lhe apresentada e tem cerca de 15 anos. É incrivelmente bonita e vem acompanhada de uma criada, Suzuki, a quem fará os seus desabafos ao longo da história. Uma vez a sós, percebe-se que os recém-casados ficam desde logo apaixonados um pelo outro, embora seja evidente que Pinkerton lhe faz promessas que não tenciona cumprir. Há ainda a menção que Butterfly faz ao que ouviu dizer do ocidente: que, ali, quando um homem encontra uma borboleta, acaba por espetá-la com um alfinete para a adicionar à sua coleção. Na segunda ária mais bela de todo o espetáculo, Vieni la sera, Pinkerton afasta os receios de Cio-cio-san e os dois enlaçam-se e transformam-se em marido e mulher, legitimando, pelo menos para ela, o casamento. É óbvio que ela pretende ser-lhe fiel e honrá-lo, adotando a sua religião e, graças a isso, sendo regenada pela própria família. Nesse ponto, na mesma área, Cio-cio-san confessa: sozinha e renegada, renegada e feliz. Porque julga que o tem a ele.

madame-butterfly-2-martin-argyroglo-angers-nantes-

Passam aproximadamente 3 anos e Pinkerton não voltou a Nagasaki nem sabe que Butterfly teve um filho seu. Um menino de traços japoneses e olhos azuis - tocando, neste ponto, na questão das crianças mestiças que sofreram graves discriminações no Japão. Apesar de todos a avisarem, incluindo o casamenteiro que lhe arranjou um potencial novo marido, Butterfly não acredita que Pinkerton não vá voltar. Na realidade, a sua fé nele é inabalável e exaspera todos ao seu redor. Naquele que é para mim o ponto alto da ópera, Cio-cio-san procura mitigar as dúvidas de Suzuki, garantindo-lhe que um belo dia veremos chegar o barco de Pinkerton, e que ele regressará para os seus braços e voltará a chamá-la de sua mulher. Chorem com Un bel dì vedremo.

Imagem WhatsApp 2024-11-23 às 00.03.23_8f05212a.j

Pinkerton regressa, mas acompanhado da legítima mulher, e só então se apercebe do mal que causou à jovem Butterfly. O final é trágico, como o de quase todas as óperas, mas é lindíssimo. Já vi duas vezes e voltarei a ver mais dez.

Tudo isto dá pano para mangas em termos de reflexão. É uma história incrivelmente misógina, é verdade, em que a mulher está completamente submetida a um homem que considera superior não apenas por ser do sexo forte, mas por ser de nacionalidade americana, abdicando da própria família, religião e cultura por ele. O retrato da mulher submissa que tudo suporta foi muito criticado ao longo dos anos. Contudo, de algum modo, Puccini recebe o elogio de não ter denegrido a imagem de Butterfly, de não a ter transformado numa prostituta desesperada e apaixonada, mas sim numa jovem crédula e de coração partido, numa mãe abgenada, cujos sonhos são esmagados pelo oficial da marinha insensível. Essa consideração pela mulher estrangeira na base da cadeia alimentar tem valido reconhecimento a Puccini e, sem dúvida, conquistou a minha estima e admiração pelo modo como o autor elevou Butterfly que é, sem dúvida, a personagem mais nobre desta ópera. Talvez seja por isso que as audiências mundiais tenham sempre torcido por Cio-cio-san e condenado Pinkerton. A história foi readaptada dezenas de vezes, inclusive a romance pornográfico e a um filme de 1993, com Jeremy Irons, intitulado M. Butterfly.

Esclarecidos sobre quem é Madame Butterfly, prometem que compram bilhete quando estiver em cena nas redondezas?

22
Nov24

O Murmúrio dos Estorninhos


celiacloureiro

IMG_4598.jpeg

Quando tive de escolher o tema para o trabalho de Literatura e Artes, escolhi O Orientalismo em Madame Butterfly, de olho na versão de Giacomo Puccini. Sempre senti um fascínio inexplicável pelo compositor lucchese, mas, e apesar de ter visitado por quatro vezes a Toscana, nunca tinha visitado Lucca.

Assim, decidi que era chegada a hora e marquei uma viagem sozinha a Lucca, com o objetivo principal de me deixar inspirar. A última vez que estive sozinha em Itália foi em dezembro de 2016, por duas semanas. Corri Itália de norte a sul. Em Siena, fiquei num velho palazzo com vista sobre os telhados terracota. Falei com a minha avó por Facetime, e já sabia que ela estava em estado terminal. Abri a janela e mostrei-lhe as cores da minha cidade favorita italiana. Lembro-me dessa chamada porque comportou tanto beleza quanto angústia. Lamentei que ela não tivesse tempo para conhecer um bocadinho do mundo comigo.

Nas últimas semanas, senti-me tantas vezes cansada, exausta, esgotada, que ponderei cancelar, adiar ou mesmo simplesmente faltar à viagem. Contudo, houve um fecho de telejornal que pesou muito na minha decisão. Correu o mundo um vídeo de um bailado coreografado de estorninhos, sobre uma piazza na Sardenha. A música de fundo era Nessun Dorma, do meu adorado Puccini. Lembrei-me de como Itália é um país rico em bênçãos, em beleza e cores, e como a beleza faz bem à alma. Sempre disse que Itália é terapia para a alma, porque já ma amaciou vezes e vezes sem conta, no passado.

Então, às 5h30 da manhã de hoje, levantei-me da cama, tomei um duche, vesti-me com as roupas novas que comprei ontem à pressa no Almada Fórum (ainda não sei onde tenho a roupa de inverno, provavelmente no cimo da despensa), e entrei no Uber do Flávio, do Rio de Janeiro, em direção ao aeroporto. Pelo caminho, claro, falámos de trânsito e de beleza.

O voo para Bolonha correu bem, fui sentada ao lado de um casal super simpático (e charmoso) de italianos. Os homens italianos têm isto, sobretudo a partir da meia-idade. A voz suave, o italiano por si só, os óculos de inteletual e a graciosidade de todos os movimentos. Elegância nata. Os mais novos, que me perdoem, são todos meio chunguitas (neste momento, andam de quispos e calças justas a jogar à bola com latas na rua, são 23:30 em Itália). O senhor, de talvez 60, 65 anos, viajava de fato azul-marinho, com sobretudo por cima. Ia a ler, a mulher também. Também abriu um caderno durante o voo e escreveu. Expliquei-lhes que voava para Bolonha, mas que o meu destino era Lucca. Disseram-me que regressavam a casa, em Ancona, depois de uma quarta visita a Lisboa, que adoram. Sobre Lucca, mencionei Puccini e o senhor explicou-me que a mulher era uma expert em ópera, porque trabalhou na organização desse tipo de eventos. Senti que os sinais estavam todos a meu favor.

Imagem WhatsApp 2024-11-23 às 00.03.23_76136f35.j

Uma vez em Bolonha, demorei 20 minutos a percorrer o trajeto entre o terminal onde desci do avião e a sala de espera do Marconi Express, o comboio cujo bilhete eletrónico tinha comprado antecipadamente. A bella Itália não tardou a lembrar-me do seu pendor para a imprevisibilidade (para mim, que não estava a par do assunto, foi inesperado), e por toda a parte, em Bologna Centrale, havia avisos sobre a greve nacional dos maquinistas. Resumindo: corria o risco de, domingo, não ter comboio de regresso a Bolonha. Em breve, andava a correr de um lado para o outro dos percursos subterrâneos atrás do binario do meu comboio, para depois chegar lá e a funcionária me dizer, com uma expressão impávida e serena, que era 1 Est, e que eu estava no 1 Ovest. Lá voltei a rir e a descer as escadas com o trolley a reboque, a recordar-me dessa mesma recordação de dezembro de 2016, em que era quase tudo impossível de encontrar à primeira.

Sentei-me numa esplanada na estração, rodeada de colunas em ferro fundido, a comer uma pizza de mozzarella, tomate seco, manjericão e, para meu azar, anchovas. A luz de outono era tão perfeita que bastou-me estar ali, a comer e a pestanejar por um quarto de hora, para me sentir renovada.

A chegada a Lucca foi igualmente tranquila, atravessámos os campos da Toscana num regional, com muita luz dourada a inundar as janelas, e, quando dei por mim, tinha lido um terço do Inquieta, da Susana Amaro Velho, desde que saí de casa esta manhã. Uma vez na estação, sintonizei o spotify para as minhas árias favoritas de Puccini e, assim que comecei a subir a rampa para a rua, começo a ver estorninhos a bailar no céu límpido do fim de tarde. De vez em quando, a vida grita-me: é aqui, é mesmo aqui que tinhas de estar.

Imagem WhatsApp 2024-11-23 às 00.02.43_80ac7b75.j

Percorri os poucos metros da estação de comboio até ao meu B&B e não resisti a tirar algumas fotografias pelo caminho. Há jardins com roseiras, portas naquele tom terracota da Toscana, o centro histórico é muralhado, estão a preparar uma feira de Natal, há um presépio já montado, embora por iluminar, e as lojas têm um ar vintage, com as fachadas em madeira e vitrines tipo art nouveau que a mantém ao abrigo do capitalismo desenfreado das cidades muito turísticas. A partir de amanhã estará tudo iluminado e a feira estará em pleno funcionamento. Nem uma vaca Ale-Hop à vista, nem uma Zara. Bicicletas, esplanadas, italianos a passearem os cães fashionistas, é tudo. O B&B é no topo de um antigo palazzo, com uma cama antiga, paredes antigas e uma escrivaninha que podia ser, precisamente, do tempo de Puccini. Para subir ao segundo andar há um elevador exterior, como em Siena. É para isso que servem os pátios originais destes edifícios. O prioprietário foi muito simpático e o tecto da sala onde serve os pequenos-almoços e onde está sentado ao computador, rodeado do globo terrestre e de livros, está cheio de rachaduras e de frescos. É tão bonito ver que não cedeu ao branco estéril da atualidade e que deixe que a beleza permaneça por entre as marcas do tempo... Convidou-me para tomar o pequeno-almoço amanhã (ainda não verifiquei se está incluído, ele disse que era irrelevante), falou-me do seu divórcio e de como veio de Roma viver para Lucca há vinte anos, de que tem uma filha de 17 anos e que a avó costumava lavar roupa no Tibre, em Roma. Teria ficado ali mais umas quantas horas a conversar, e falar italiano é um prazer a que nem sempre posso entregar-me.

Imagem WhatsApp 2024-11-23 às 00.03.23_8ed4eeea.j

Antes de jantar (bruschetta di pomodoro e tordelli, a massa tradicional de Lucca) meti os auriculares e fui ate à Casa-Museu Giacomo Puccini. De salientar que estou neste momento deitada a 200 metros da casa onde nasceu aquele que é, para mim, o melhor compositor de todos os tempos. Senti arrepios quando cheguei à piazza onde está a estátua de bronze do Maestro. inaugurada em 1994 e da autoria de Vito Tongiani, para celebrar o 70.º aniversário da morte do compositor. A luz da praça incidia sobre a figura de bronze de uma forma meio fantasmagórica. Ouvia o lado trágico - emotivo, transcendente - da sua "Vieni la Sera", e senti que estava numa vida antiga, perante um homem que amava e admirava, apesar dos seus inúmeros defeitos. Compreendi o desespero de todas as mulheres que devem tê-lo amado e chorado por ele. A Piazza della Cittadela estava semiobscura, à exceção das vitrines dos cafés e restaurantes com nomes de óperas de Puccini. Vi La Bohème, Tosca, Turandot e Madame Butterfly. Senti-me profundamente emocionada e, logo atrás da estátua, a fachada da casa-museu com o aviso de que estaria encerrada até amanhã. Por sorte, graças à greve dos maquinistas, mudei a minha partida de Lucca para segunda-feira, de modo que ainda poderei visitá-la (e com direito a visita guiada especial!) no domingo, dia 24.

No regresso ao B&B, sempre a sentir que flutuava, passei por uma pintura lindíssima de Madame Butterfly na grade de uma loja fechada. Madame Butterfly a flutuar, deixando cair o punhal e elevando-se, envolta em borboletas.

Ideias para romances: 1

Aguarelas de jeito: 1, do Maestro, com água mineral porque não tinha outro recipiente que não a garrafa de água Luso lisboeta e inflacionada do aeroporto para molhar o pincel.

Árias ouvidas: Infinitas.

19
Nov24

Encruzilhadas


celiacloureiro

Ainda na senda de me compreender - labor que levarei comigo até ao último dia - continuo a deslindar o papel da PHDA naquilo que sou. Ontem fui levantar uma encomenda à Praça da Liberdade, em Almada. Um sítio a partir do qual podia ir a qualquer lugar. Podia descer para a Bertrand e ver livros (proibida de os comprar, porque estou prestes a mudar-me e não vale a pena acumular mais tralha para levar), podia ir à sapataria procurar umas botas adequadas ao meu favoritismo por conforto, podia ir inspirar o cheirinho típico do Ponto das Artes, escolher mais alguns pastéis de óleo. Perante tanta opção, congelei. Fiquei de pé no cruzamento entre a praça e a avenida, debaixo de uma luz onírica, ciente de estar a alguns prédios da casa onde nasci, do rés-do-chão para onde a minha mãe me levou e no qual vivi até aos cinco anos. Uma vez, sentada na cadeira de dentista nesse mesmo lugar, senti uma picada familiar. Embora me parecesse tudo tão pequeno, reconheci a configuração do espaço. Estava a fazer uma limpeza dentária naquilo que foi, em tempos, o quarto onde dormia com a minha mãe. O quarto onde vomitei os lençóis durante a noite depois de ficar a comer caracóis até às tantas. Para a esquerda, os contornos da cozinha onde costumava esconder-me debaixo de uma mesa de pedra (mármore?) enquanto a minha mãe andava de roda das panelas. Pedi permissão para ir até lá, atravessei a cozinha (entretanto copa) e alcancei a varanda, agora marquise fechada. Olhei lá para baixo. Eis a cave do vizinho, para onde cuspi a minha última chucha. Era capaz de jurar que aquele molho de urtigas é o mesmo em que a vi desaparecer.

Na encruzilhada, cruzamento, como preferirem, de cara franzida por causa do banho dourado da luz solar, pensei nisso tudo. Meti as mãos nos bolsos e subi a avenida, optando por voltar para casa. Dei-me conta de que não tinha tomado o Elvanse, a pessoa que se detém em encruzilhadas sou eu, eu e a minha condição. A minha distração. O meu atordoamento perante decisões simples do dia-a-dia, a minha certeza inabalável perante decisões maiores. Percorri a calçada da rua para onde fui viver quando nasci. A pastelaria em frente é a mesma. Estou a deixar Almada. Estou a deixar muito de mim para trás. Quem sabe se para nunca mais voltar.

Esse cruzamento já atravessei: vou partir.

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Favoritos

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D