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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

24
Dez24

Balanço de 2024


celiacloureiro

Eu sei que o balanço de cada ano se faz no Ano Novo, mas eu prefiro fazê-lo agora, no Natal. É no Natal que faço o balanço das relações, das alegrias, das tristezas, sobretudo das ausências. 

Desde pequena, sempre adorei o Natal. Desde pequena, o Natal foi sempre uma altura complicada. Nunca sabia se a família ia estar reunida. Se ia haver harmonia, se ia haver tréguas. Se o meu pai ia estar bem ou chateado, porque em dias de maior carga emocional as dependências químicas também batem com mais força. Não sabia se a minha mãe ia aparecer e, aparecendo, se viria sóbria, alegre ou embriagada e cheia de acusações. Não sabia se ia ver os meus irmãos, estar com eles, e se eles estariam melhor ou pior do que eu.

Era costume que o Natal fosse época de generosidade, mas não de abundância nem de exageros, nem de mesa farta, nem de pessoas gratas por estarmos uns com os outros. Havia o tio amuado. A mãe amargurada, o pai desinteressado, a avó cansada e desanimada, o avô que só queria um copo de Porto e ver televisão sem que o aborrecessem. Os irmãos, quando vinham, os presentes, quando os havia. 

Ainda assim, sempre adorei as luzes de Natal. O cheiro do pinheiro natural que, aí até aos 12 anos, a minha vizinha trazia de um pinhal em Fernão Ferro todos os anos. A esperança - a cada ano mais ténue - de um milagre - de entendimento, de uma resolução para uma vida melhor. A avó a fazer um arroz doce de última hora, porque não havia dinheiro para mais e acabava por ceder às minhas insistências. O bolo rei, de que nunca gostei, que alguém oferecia ao avô. O Porto, sempre, oferecido. Às vezes, figos secos. O vapor das couves cozidas, do bacalhau na água borbulhante, a cozinha nessa nuvem com o cheiro caraterístico do Natal. Lembro-me do Natal com a minha bisavó, muito magra, tolhida pelo Alzheimer, mas sei que comia aquele bacalhau com couves como havia feito a vida toda, e com certeza que isso lhe traria alguma espécie de alento, de conforto familiar. A mesa da sala posta uma vez por ano. A melhor louça, as travessas do enxoval da avó. O meu pai a levar-nos a passear depois de jantar, para fazermos tempo até à meia-noite, e eu de mãos nos bolsos, a fazer figas para que nevasse, porque não custa sonhar e sempre sonhei mais ou menos alto.

Este ano, tenho sentido a falta de muita gente. Da avó, do avô, da minha mãe que, apesar das dificuldades durante toda a vida, acabava por se comover sempre no Natal, prisioneira das suas próprias boas lembranças, distantes, mas preciosas. Do meu irmão, que não tive coragem de chamar para junto de nós este ano, porque me faltam forças, coragem, disposição. É o último ano na casa onde vivi seis anos e nove meses. É o último ano em que vivi com as minhas irmãs. É o ano que começou em maio, quando percorri pela primeira vez a estrada ladeada de flores que conduz à minha nova casa, à aldeia que escolhi para viver, onde os vizinhos deixam sacos cheios de laranjas no Natal, e outros com romãs no outono.

É o ano em que decidi regressar à Universidade, descobrir se conseguia sobreviver - adaptar-me, sair-me bem - no ambiente académico. Foi um ano muito especial. Mais um ano em que a Sertralina ajudou a manter-me à tona, mas foi também o ano em que descobri que tenho déficit de atenção e em que pude recorrer ocasionalmente a medicação para trabalhar, para me manter alerta, responsável.

É o ano em que tive de pesar o que quero e o que já não quero, o que é importante e o que é acessório. Foi um ano pesado, difícil, mas também cheio de conquistas. Publiquei um romance que considero o meu melhor até hoje (bem sei que o favorito dos leitores é o Demência, mas este é o melhor, para mim). Escrevi e publiquei um livro sobre personagens históricas. Fui a inúmeros eventos, conheci imensos colegas autores, leitores. Abracei, beijei, aconselhei e fui aconselhada. Recebi o prémio de literatura Mais Alentejo, fui ao FLO, a Bragança, ao FALA, à rádio, ao A Nossa Tarde, à Feira do Livro de Évora, à de Lisboa, participei no Páginas com Graça. Foi um ano em torno de livros. Foi um ano cansativo, mas muito gratificante.

Que 2025 seja um ano para recalibrar. Para abrir mão de mais coisas que não têm importância e para abraçar com mais força, mais perto, as que têm. Que seja um ano de introspeção, criatividade e serenidade. De saúde, de estabilidade. Que o próximo Natal tenha a família reunida, em paz, e tocos de lenha a estalar no recuperador de calor. Que se ouça o repicar dos sinos da igreja alentejana da minha nova aldeia. Que a chaminé fumegue e a felicidade pura e simples nos enlace.

 

 

03
Dez24

Trinta e cinco


celiacloureiro

A menos de vinte e quatro horas de fazer trinta e cinco anos, olho o tempo através do filtro esverdeado daquele que julgo ser o primeiro retrato com a minha mãe. O meu aniversário será sempre dia de pensar nela, porque foi o dia em que nasceu como mãe, e o meu pai como pai, e os meus avós como avós. O meu pai tinha vinte anos, a minha vinda era incrivelmente precoce - e naturalmente indesejada -, mas atrevo-me a dizer que os sorrisos começaram a surgir pouco depois. A minha avó, na altura com cinquenta anos, ficou encantada por poder apaparicar uma netinha depois de dois filhos homens. Penso que lhe devo o meu humor, a resposta rápida. Duas sagitárias que, apesar das quezílias ocasionais, se admiravam mutuamente (estou em crer).

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O texto de hoje não é para falar de tempo. Ou melhor, é para falar sobre o tempo das oportunidades e o tempo do descanso. Sinto-me a derrapar. Cansada, comecei a fugir a algumas obrigações. Preparo-me para faltar à segunda semana de aulas de enfiada, mas tenciono, ainda assim, concluir os trabalhos do semestre. Não me importo de ser reprovada. Faço-o por mim, pelo exercício mental, e não pelo diploma. Vivemos num mundo - num tempo - em que tudo tem de servir um propósito. Ouço muitos podcasts de humor que acabam, inevitavelmente, por fazer pouco dos livros de autoajuda, dos coachs disto e daquilo, dos suplementos mágicos e das dietas milagrosas. As pessoas estão tão desesperadas por sentirem que têm alguma relevância, algum significado, ou mesmo impacto, na vida dos outros, que parece que vivem completamente alienadas de si próprias e da realidade. Estou cansada de frases feitas.

Começo a ver alguma luz ao fundo do túnel da minha casa. Se o universo estiver de acordo, em breve serei apenas duas luzinhas numa rua com meia dúzia de casas, com dois cães, uma lareira acesa, uma caneca de chá e um rasto de fumo a elevar-se da chaminé para um céu noturno estrelado, infinito, abobadado.

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