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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

11
Jun25

Quases, situationships, love bombing


celiacloureiro

Às vezes, fico surpreendida com a minha própria imaturidade relacional. A verdade é que cheguei aos 35 anos sem ter passado por uma relação. Deixem-me pô-lo cá fora: nunca tive um namorado. Tive relações com base estritamente física, que serviam o propósito de explorar a minha sexualidade e de viver esse lado da vida, uma vez que o amor não é algo que se encontre com a mesma facilidade. Passei metade da minha vida à espera do príncipe encantado, e a outra metade profundamente desiludida com as versões reais dele.

Fui sempre criteriosa na escolha dos meus parceiros. Houve (quase) sempre preservativo, conversas sobre saúde sexual, duas pílulas do dia seguinte, nenhuma gravidez e respeito enquanto pedra basilar da coisa. Não houve conversas sobre amor nesse tipo de relação. Contudo, houve três relações que envolveram sentimentos, e foram as que me deixaram de rastos. Nem sequer falo da minha paixão louca que durou doze anos e que rendeu duas piruetas muito insatisfatórias espaçadas no tempo. Porque faltava amor, faltava diálogo e, parece-me agora, faltava respeito.

O primeiro, há mais de dez anos, foi um quase namorado italiano. Hoje em dia, parece-me que se chama “situationship” ao que tivemos. Eu nunca me detive a analisar relacionamentos, é incrível o que a internet nos devolve a esse respeito. Manuais, dicas de conduta, como fazer com que um tipo corra atrás de nós em dez passos e como esquecer o ex em duas semanas. Ainda assim, parece-me que houve “love bombing” da parte dele (outra expressão que desconhecia por completo até há umas semanas), seguido de uma romantização irrealista da nossa história: encontros em Lisboa, Madrid e Paris. Ele encheu-me de elogios, mentiu-me deliberadamente (mais tarde percebi que estava a dizer o que achava que eu queria ouvir a fim de me conquistar, e que passou pelo triste conto de como tinha terminado com a ex porque queria muito adotar uma criança um dia e ela não). Foi uma conversa num pátio de uma igreja milenar no Sul de Itália que me deixou profundamente comovida. Depois disso, ele deve ter começado a espreitar o preço dos voos para Portugal. Eu estava no papo.

Agora, olho para a fotografia da minha versão de 23 anos, magra, independente, cheia de cultura geral e a quem ele elogiava um inglês que era realmente muito superior ao da maioria dos outros participantes naquela ação de turismo. Ele era pouco mais velho e era estrangeiro, e eu já tinha ouvido dizer muitas vezes que era fácil de entender porque eu não seria de interesse para o típico homem português na casa dos 20 anos. Os meus gostos, já nessa altura, incluíam ópera, literatura, arte. Preferia falar sobre Física Quântica do que sobre festivais de verão. Os deles resumiam-se a futebol, jogos de computador, informática, saídas à noite e, ocasionalmente, um concerto ou outro mais ou menos mainstream. Viviam todos com os pais, estavam todos a tentar ganhar o suficiente para frequentar rooftops, viajar e trocar o primeiro carro por um melhor. Além disso, estava longe de ser a miúda desejável nos padrões do jovem português: não era morena, não tinha cabelo liso, não tinha uma altura sequer dentro da média, tinha a cara coberta de sardas, voz de desenho animado e – agora sei-o – tinha PHDA, o que fazia de mim brutalmente honesta, inconveniente, impulsiva e, acredito, até mesmo deselegante. Em cima disso tudo, ainda sofri duas depressões pesadas na década dos 20, que acredito que sejam muito pouco atrativas para quem só deseja viver a vida sem sobressaltos. Era preciso que vissem para dentro da minha alma para perceberem que não era só uma parvinha com alguma inteligência, e nessa idade, com tantos obstáculos, era impossível encontrar alguém que me visse assim.

Com a idade, fui amadurecendo, adquirindo alguma sofisticação social (que às vezes ainda cai por terra), aprendi a usar algum filtro (que nem sempre está em dia) e a ser menos explosiva. A hiperatividade estará sempre lá, mas fui-me preocupando cada vez mais em não chamar a atenção para mim, em não ser a mais barulhenta e desbocada dos jantares de grupo. Misteriosa, nunca serei. Creio mesmo que a minha sinceridade joga contra mim.

Resumindo, houve o italiano e o nosso simulacro de namoro que durou três ou quatro meses. Falávamos todos os dias no Skype e eu chegava a sentir-me aborrecida por isso, mas depois ele acenava à minha avó e era bonito. Desde o início que me senti incomodada pela sua vaidade, pelos seus gostos caros e pela sua veia fortemente workaholic. Agora entendo que, na fase do love bombing, tudo isso é relativo. Os comportamentos eram ajustados para me impressionarem. Quando não reconheci o modelo de BMW que ele anunciou que tinha acabado de comprar, desistiu de falar de veículos motorizados comigo. Teve, pelo menos, a elegância de não mencionar o preço da coisa. É claro que, aos 23 anos, me senti lisonjeada – e até acarinhada – por ter um italiano de 27 anos, elegante, inteligente, bem-sucedido, a meter-se num avião e a vir alojar-se num hotel da Avenida da Liberdade para passar uns dias comigo. Comemos fora, visitámos highlights, andámos de mãos dadas com naturalidade e beijámo-nos em pleno Terreiro de Paço. Foi um filme do Woody Allen em que tudo parecia correr bem, desde que não pensássemos no futuro. Nunca ponderei ir para Itália – nunca sequer tive ilusões de que a relação chegaria a isso. A verdade é que, na segunda e penúltima viagem, comecei a sentir que ele me fazia infeliz. Estava sempre em chamadas de trabalho, distraído com montras, pedia-me que não estivesse triste enquanto me contava de como a amiga X, Y e Z tinham tentado enrolar-se com ele no evento W, sem sucesso. No Dia dos Namorados, disse-me, casualmente, que ia ao cinema com a amiga Y, mas que não havia por que me preocupar porque ela estava interessada nele, mas ele não estava interessada nele. Foi o fim.

Acabou com uma conversa em que chorei muito na almofada de uma amiga e, de manhã, li a mensagem dele. Terminava a desejar-me muitas felicidades e um “Goodnight princess”. Achei ternurento. Agora, percebo que foi para se livrar da responsabilidade de ser detestado por mim. Ele gostava de agradar a toda a gente e adorava a ideia de ter andado com uma estrangeira que apareceu na RTP numa entrevista, ao ponto de tirar uma fotografia da emissão e de a partilhar no Facebook. Ele vivia de imagem e de status. Era boa pessoa mas era, acima de tudo, um ser humano fútil e vaidoso. Procurei profundidade onde não a havia. Despedimo-nos comigo a chorar na janela de um hotel na Gran Vía, enquanto ele ia embora de táxi para o aeroporto e começava a nevar em Madrid em fevereiro de 2015. Sobrevivi sem o buongiono e o buonanotte dele. Não doeu mais porque eu sabia que não havia futuro. Vivemos o momento e foi (mais ou menos) bom enquanto durou. Chorei pelo fim, não pela impossibilidade de continuação.

O segundo foi o homem que me salvou da depressão de 2019. Um homem gentil que me fez voltar a confiar e que me ouviu e apoiou. Quando começámos a sair, o interesse dele era claramente superior ao meu: terminou o primeiro encontro a propor-me outro para daí a dois dias. Tive de o refrear. Falávamos de livros e do passado, porque já nos conhecíamos de há muitos anos sem nunca termos, realmente, conversado. Aceitei o seu convite para sair pela primeira vez a pensar estritamente em amizade, e seguiram-se três ou quatro encontros, inclusivamente comigo a tentar perceber se me sentia minimamente atraída por ele, antes de acontecer um beijo. Adiei ao máximo esse passo. Aconteceu no dia em que decidi que aconteceria, porque tudo convergia para aí. Porque o respeitava e sentia-me segura na companhia dele. Tirando a história com o italiano, foi a primeira vez na minha vida em que dormi com um homem e ele continuou a falar comigo normalmente no dia seguinte. Porque não era só sexo, não era das 23h00 às 04h00, hora em que me metia num táxi/Uber ou ao volante e voltava para casa pela Segunda Circular a ouvir The XX. Fiquei boquiaberta, diante de uma padaria na avenida principal de Almada, quando ele me mandou uma selfie a dizer que tinha ido cortar o cabelo e aparar a barba. Borboletas e um sorriso de orelha a orelha, porque tínhamo-nos separado há hora e meia. Finalmente, tinha confiado na pessoa certa.

Tinha 29 anos. Um medo terrível de deixar passar o tempo de ter filhos sem sequer saber se os queria. A minha melhor amiga, que também o conhecia, considerava-o um príncipe encantado e deixei-me convencer por isso e pelos seus modos atenciosos e inteligência admirável. Teve consideração pela minha aversão a luz branca, a luz intensa e arranjou um candeeiro para podermos conversar no sofá. Vimos filmes juntos – embora ele não gostasse particularmente desse programa. Cozinhava para mim e estávamos sempre de acordo quanto aos restaurantes a ir. Fomos a pelo menos dois concertos. Passámos um fim-de-semana romântico numa cidade medieval e, no domingo à noite, em vez de querer ir para sua casa, farto do convívio intensivo, quis ir jantar a minha casa, com a minha família. Senti-me rebentar de felicidade nesses dias. Depois, volvidos dois ou três meses, e sem que a comunicação ou os encontros cessassem, chegou a hora de lhe perguntar para onde estávamos a ir. Foi então que ele disse que não estava apaixonado por mim. Gostava muito de mim e não queria perder a minha amizade. Adorava passar tempo comigo. Mas não era amor. Não podia fingir que fosse. Podia dizer que "me amava", mas não "quando estávamos na cama".

Chorei, principalmente porque parecia tudo tão conveniente, parecia encaixar tudo tão bem. Afinal, jantámos por duas vezes com familiares dele. Saímos com a minha família, a minha mãe contou-lhe histórias e arrancou-lhe gargalhadas. Apresentei-lhe os meus amigos, os meus irmãos, sobrinhos, animais. Ele frequentava a minha casa e líamos os mesmos livros, até mesmo em conjunto. A cada vez que nos afastávamos, voltávamos a aproximar-nos. A cada vez que nos aproximávamos, acabávamos deitados lado a lado. Demorei a perceber que a iniciativa, a força motriz, era eu. O papel dele era o de dizer que “era má ideia” antes, e que “não devíamos ter voltado a cair em tentação” depois. Isto durou anos. Até que, um dia, percebi que o amor que cheguei a sentir tinha morrido. Percebi que era provável que ele tivesse percebido logo de início que não éramos a pessoa certa para o outro. Não teríamos como fazer o outro feliz. Quando muito, teríamos sido pais competentes, mas afastados. Ele não queria isso. Eu não queria isso. Aborrecia-me a sua falta de iniciativa. A sua inércia. A sua disponibilidade a todas as horas para os amigos. A felicidade com que rearranjava os seus planos para repetir um programa semanal, como um ritual religioso. Incomodava-me que bebesse tanto, que não usasse a sua muita inteligência para viver uma vida mais satisfatória, com mais férias, mais descanso, mais viagens, mais autocuidado. Achava-o pouco ambicioso, e eu sou inquieta por natureza, iria querer sempre mais.

Ciente de que também esse amor não era nada, confessei-lhe, numa das conversas que tivemos durante a madrugada, despidos de artifícios, que não estava disposta a tentar mais nenhuma vez. Que, falhando com ele – e disse-o com resolução e e sinceridade – era o fim do dating para mim. Era evidente que eu não sabia ler sinais. Que eu não sabia interpor alguma distância de segurança entre o afeto que ele me dava – e que era bom, mas não era incondicional – e os meus sentimentos. Volta e meia descobria que ele tinha outra. Chorava, discutíamos. Voltávamos a encontrar-nos. Eu relativizava. Uma vez, uma cartomante disse-me que bastaria eu engravidar para ficarmos juntos. Achei a ideia asquerosa. Gostava demasiado de mim mesma para me meter nessa posição. Queria – como ainda quero – um homem que veja o meu valor, e não um que fique comigo porque temos fraldas para mudar de madrugada. É indigno. Somos amigos, bons amigos, e ele sabe que lamento muitas das nuances da nossa história, mas acredito que tenha feito o melhor que sabia, num equilíbrio difícil entre egoísmo e responsabilidade emocional.

Decidi mudar-me para o Alentejo e abraçar uma vida de eremita, de coração livre, leve e solto. Comprei um quimono de seda e uma camisola de noite de algodão branco. Imaginei-me nesses preparos a pintar no quintal, debaixo da laranjeira, com os cães a dormirem junto aos pés da mesa. Há meses e meses – talvez há quase dois anos – que não experimentava nenhum tipo de anseio sentimental. Contudo, a solidão carnal fez-me regressar ao Tinder. Buscava outro parceiro como os anteriores – para dois, três anos de respeito mútuo em que tornássemos as noites um do outro menos solitárias. Sem cobranças. Sem desrespeito. Com confiança e companheirismo na tal janela horária supramencionada. Um cigarro a más horas. Uma confissão.  E bastava. Não queria, acima de tudo, voltar a partilhar o triste conto da minha vida e a minha rotina mirabolante com ninguém novo. 

Acontece que os homens com quem dou match são literatos. Sabem escrever português e, volvidas algumas linhas de conversa, parece que descartam a ideia de sermos só homem e mulher, sem profissão, sem passado, sem expetativas. Eu não queria dates, não queria voltar a abrir-me para ninguém. Nem a minha história, nem os motivos que me trouxeram aqui, nem falar da psoríase, das depressões, de como cresci com os avós e dos pais disfuncionais e do número de irmãos e nem dos meus planos de tirar um Mestrado ou das aulas de pintura. Não queria que fosse pessoal. Sentimental. Queria que fosse só companhia descomplicada. Tinha feito as pazes com a ideia de viver numa casa cheia de quartos, mas vazia. Numa casa espaçosa, mas sem filhos. Nunca iria dançar as músicas da minha vida abraçada a um homem que me fosse mundo. Nunca iria ser chamada de mãe nem ter uma pessoa só para mim, nem ser a pessoa de outra pessoa. E estava tudo bem.

Tive azar. A segunda pessoa com quem saí – com quem tive vontade de sair – tinha um perfil de Tinder que me fez confiar. Nem sequer tinha fotografias do rosto. Permiti-me imaginar o que quisesse. Imaginei um homem de alguma rudeza, de rosto fechado e rugas profundas entre as sobrancelhas. Depois, basta irem à publicação anterior para compreenderem o desfecho da história. De repente, eu tinha, uma vez mais, absorvido a rotina de outra pessoa, parte da sua história, das suas paixões, incómodos, sonhos e gostos. Uma montanha de informação destinada a nada, como monos fantasmagóricos cobertos de lençóis brancos quando tudo terminasse. Que vai aprendendo guitarra, que adora jogar futebol, que detesta certo tipo de homens, que a sua gatinha teve PIF e que trabalhou madeira com as mãos e que teve 17 a Geometria Descritiva e sempre 5 a EVT e que conhece o Alentejo como a palma da mão e que come essencialmente comida saudável mas depois dá escapadelas a drive-trus noturnos e enche copos de bolo de chocolate, chantilly, maltesers e uma série de outras bombas calóricas. De repente, conheço os seus horários de sono, a sua reação ao álcool, os seus receios, os seus ídolos, a sua dieta, as pessoas da sua vida através da sua voz. E é duro ter de deitar tudo isso fora. Porque, sobretudo quando se tem PHDA, guarda-se o que nos é importante. O resto esquece-se. É uma bênção e uma maldição. 

Passei o domingo na cama, a chorar. Pensava que a Sertralina nem sequer me permitiria chorar. Os meus amigos estavam demasiado longe para me darem colo, além de que tinha ignorado os seus avisos e avançado de boa-fé, pelo que havia sempre o risco de ouvir o tão receado “eu avisei”, “os sinais estavam lá todos”. Foram exímios nos conselhos que me deram.

Não quis pensar no que me/nos tinha acontecido à luz desses rótulos de “situationship”. Quis acreditar que o que aconteceu teve lugar fora do meu guião como teve lugar fora do dele. Contudo, quanto mais os anos avançam, mais me parece que é cada vez mais difícil que as pessoas fujam àquilo que é a sua zona de conforto. Coleccuonar desilusões. Coleccionar amizades que nunca se cumprem em amor. Não quero acreditar que fui propositadamente enganada – ou sequer manipulada –, mas de repente o Instagram está cheio de mensagens motivacionais sobre a minha situação (como se o aparelho tivesse ouvido os soluços no domingo e tivesse percebido o que aconteceu), e há um rótulo para isto e ponho-me a questionar. Será que o que aconteceu encaixa neste padrão claro em que a pessoa que pescámos numa rede social nos deu demais logo à partida, nomeadamente partilhando a sua rotina, dando bom dia e boa noite, enviando fotos do seu dia, fotos íntimas, partilhando reflexões e pensamentos profundos e áudios (o que cria mais proximidade do que apenas texto) – love bombing? – e retribuímos, porque é da nossa natureza retribuir, para depois ficarmos com a sensação de que, para ele, teria sido igual com qualquer outra pessoa que estivesse disposta a partilhar um pouco (ou muito) de si? Ou foi ao contrário? Tudo isso é natural para o outro e nós é que ficámos ofuscados por esse tipo de atenção? Perguntamo-nos se lemos mal os sinais, se somos realmente carentes, tolinhas, mesmo aos 35 anos... Mas, e sem nada a perder, até que ponto é que as pessoas se responsabilizam realmente pelos dissabores que causam aos outros?

Não quero pedidos de desculpa, porque isso apenas faria sentido se fosse intencional. Voltaria a viver todos os momentos que vivi com ele. Como sempre digo, só me arrependo do que não vivi. O problema é que as pessoas dispõem-se a ser maravilhosas por três ou quatro semanas, e creio que o fazem com boas intenções, mas, de repente, voltam a ser aquilo que teriam sido sempre se não fosse essa fase de “lua-de-mel”: ocupadas, cansadas, desligadas, solitárias, presas, embrenhadas e  conformadas/satisfeitas com as suas próprias rotinas.

É sempre bom recordar que não se pode dar afeto, tempo, abraços, beijos, carícias, ouvidos e conselhos sem prever que, do outro lado, a pessoa poderá apaixonar-se, deixar-se cativar por essa enxurrada de bem-querença. Depois, tal como da última vez, breaking news: não estou apaixonado. Como se o amor pudesse nascer em um mês, com travões, com receios, com restrições, com temas semi-censurados, com recuos, com partilhas que vão parar ao contentor do desperdício emocional e relacional, com avisos logo à partida. O amor, e isso sei, constrói-se a partir de uma pequena chama, com cuidado, permanência, constância e tempo. Devia ter estado mais atenta quando, no segundo encontro, me disse que não gostava de situações confusas nem de casual nem de situashionships. A probabilidade de que já aí soubesse que não íamos a lado nenhum é grande, daí a necessidade de evocar esses rótulos. Porém, esborrata tudo o que aconteceu a seguir. Se sabia, tardou a partilhá-lo. Ou fui eu que não quis ouvir? É muito possível que tenha querido sonhar um bocadinho com o futuro. Parecia encaixar tudo tão bem, seria orgânico.

Depois de anos a ler e a acreditar em lengalengas sobre lutar por amor, percebi que o melhor que fazemos é, muitas vezes e em boa hora, deitar a toalha ao chão. Quanto mais cedo, melhor. Ouvir aquela amiga que nos diz que “ao fim de três semanas, algumas certezas terá”. O outro que diz que “se ele não puser entraves, o tempo o dirá”. “Atenta nas ações, não nas palavras”, é outro excelente conselho. O melhor, entendo agora, é não confiar demasiado no coração. Sobretudo quando sonhador, romântico e traiçoeiro.

Dois dias depois dos soluços, e apesar de ainda tudo mo recordar, fui dar uma volta com os cães pelo campo. Aliás, começou antes disso, enquanto vinha sentada no banco do passageiro a ouvir a Out of Reach, da Gabrielle, ao pôr do sol. Permitam-me ter o meu momento Bridget Jones ou Carrie Bradshaw: estou sentada na cama a redigir um texto de uma clareza avassaladora: pela primeira vez na vida, depois de um evento que me despedaçou, precisei de menos de 72 horas para resolver a questão no meu interior. Para me escolher a mim. Não há palavras para a sensação de libertação. Não se refere a gostar ou não gostar da pessoa – isso o tempo irá encarregar-se de amenizar. Não diz respeito a riscar as recordações: essas, guardo-as com carinho porque quero acreditar que foram genuínas enquanto as vivemos. Trata-se de relativizar tudo isso: o que importa sou eu. O meu bem-estar. O valor que sei que tenho. O que sei que o outro fica a perder ao não escolher-me. O que sei que continua em mim, guardado, para dar a quem o quiser, a quem o merecer, a quem estiver à altura de o reclamar. No fundo, não perdi nada. Ganhei clareza. Levantei-me mais forte. Mais sábia. Nem sequer me disponho a perder tempo e energia a perguntar porque não deu, o que falhou, o que poderia ter feito diferente, porque fez isto se depois disso aquilo? Nada importa. Está tudo arrumado. A distância tratará de congelar a atração e de minimizar a impressão de ele me ser casa, ou de casa ser entre os seus braços. 

Da próxima, quando me apetecer aventurar-me de novo no limbo dos relacionamentos, farei melhor. Tendo sempre em mente que vivemos na era do individualismo e que a nossa melhor companhia somos nós próprios. Habituamo-nos a estar sozinhos e todo o resto é desestabilizador e desnecessário. Contudo, por uma fração de segundo, pensei que pudesse ser mais feliz com outra pessoa ao lado, e orgulho-me de ter tido coragem de o ponderar, depois de tudo e quando estou ótima sozinha.

Estarei atenta à correlação palavras/ações. Ao timing certo para os pontos finais. Ao que partilhar e ao que guardar. Não misteriosa, mas reservada. Guardar o meu coração com mais cuidado, porque me é caro. Segurar as sensações e tentar refletir antes de me entregar. Não é com as pessoas que não nos dizem nada que devemos ter cuidado, mas com estas que nos arrancam reações fora daquilo que é o nosso normal sem qualquer esforço. Porque nos sentimos seguros. Não porque empunhem o poder de nos magoar, mas porque lhes damos esse poder inadvertidamente, e isso não é justo para nenhum dos dois.

Assim, depois de experimentar o quase amor por três vezes, estou orgulhosa de mim mesma por não ter ressentimentos. Por não me sentir amargurada.  Por viver tudo outra vez, se voltasse atrás, e por não ter permitido que uma desilusão tão significativa num momento tão delicado, em que experimento tantas vezes solidão (mas pacífica, confortável) me destabilizasse.

Parece que, finalmente, aprendi a proteger-me.

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