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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

14
Mar25

Os maus também morrem


celiacloureiro

Na sexta-feira passada, quando fui à minha aldeia buscar o meu irmão e os colegas de labuta de volta a Évora, para o autocarro rumo a casa, reparei numa coisa. Na casa em frente à minha, um pouco abaixo na rua, um dos vidros da porta principal estava partido. No seu lugar, ondulava um pedaço de plástico inútil. Não sou nenhuma santa, mas sempre que me apercebo de algo que creio poder remediar, tento fazê-lo.

Sabia que a pessoa que vivia nessa casa era um homem magro, na casa dos setenta (talvez um pouco mais novo, mas bastante debilitado), sempre acompanhado de uma bilha de oxigénio, tal como o meu avô. À semelhança do meu avô, igualmente magro e mais ou menos da mesma estatura, era grande apreciador de cigarros e usava uma boina de lã. Vi-o poucas vezes, a última delas sentado nesse degrau, diante da porta cujo vidro então me incomodou.

Disse ao meu irmão que podíamos ver se tínhamos algum vidro, do muito material de que ainda nos falta desfazer-nos, que pudéssemos disponibilizar-lhe. Talvez o meu irmão pudesse mesmo instalá-lo? Não sei, era uma janela específica de alumínio, e não custa indagar. A coisa ficou arrumada para esta semana.

Na segunda-feira, ao fim do dia, de volta à aldeia, o meu irmão comunica-me, com algum pesar, que o senhor tinha morrido e que o funeral havia sido no domingo. Uma estranha coincidência, mesmo porque, no início da obra, o meu irmão e o colega criaram alguma empatia e proximidade com o senhor. O senhor tinha uma casa e um terreno uma casa acima da nossa, em ruínas, e deixou-nos tirar tijolos e estacionar ali o carro em troca... de cigarros. Certo, não se deve dar cigarros a alguém que claramente tem os pulmões comprometidos, mas acredito que haja um código entre quem depende de nicotina, do género não se nega um cigarro a um irmão. A dada altura, apercebendo-se de que o senhor pedia cada vez mais cigarros, coisa que evidentemente não lhe fazia bem, decidiram começar a negar-lhos. Como consequência, o senhor afastou-se e o contacto resumiu-se a um aceno quando se cruzavam de frente na aldeia.

Nós já sabíamos que o senhor não se dava bem com a família, porque tínhamos abordado o tema do terreno em ruína, que ponderei comprar, sem poder fazê-lo porque o senhor explicou que pertence a uma série de herdeiros, todos de costas voltadas entre eles.

Hoje, ao retomarmos o assunto, o meu irmão diz que, durante quase um ano, sempre viu aquele homem sozinho, à janela ou sentado no degrau de casa, sempre na companhia da fiel bilha d oxigénio. Agora, passada menos de uma semana desde a sua morte, já apareçam familiares para visitar a casa vazia, já repuseram o vidro na janela. Em breve, segundo ele, haverá uma placa de imobiliária a anunciar a venda do imóvel. Senti pena do senhor, da sua solidão que poderia ter testemunhado da minha janela da cozinha. Não obstante, nas aldeias todos se conhecem. Consta que o senhor teve imensa gente a estender-lhe a mão. Ainda assim, optou por viver com a mãe, nunca se interessando por ter uma família ou uma carreira. Foi para o estrangeiro trabalhar, mas regressou logo depois, rejeitando a oportunidade concedida por um parente. Terá tido um historial de drogas e prisão. Para mim, era só o senhor da bilha de oxigénio, parecido com o meu avô. Afinal, parece que era violento e, possivelmente, explorava a mãe, que partiu poucos anos antes de ele próprio. Parece que "não se dava com ninguém".

Refleti no tema enquanto conduzia de volta a casa, por entre paisagens idílicas que se por fim se encheram de luz depois de uma semana de chuva constante. Quem irá recordá-lo? Quem irá guardá-lo na lembrança? Daqui a quanto tempo terá sido totalmente esquecido?

Pois é, os "maus" também morrem. Não só morrem, como também se evaporam.

12
Mar25

Desatentas


celiacloureiro

A vida no campo tem acalmado o meu espírito e a minha alma, tem-me permitido dedicar-me a paixões novas e às de sempre, mas, como previa, não é suficiente para mitigar esta bênção e esta maldição que é a PHDA. Muita gente, inclusive próxima de mim, com um olhar direto para a minha rotina (ou falta dela) e desafios, já se pronunciou sobre o facto de esta condição não ser “desculpa para tudo”. Claro que não, quero acreditar que eu existo para lá dessa perturbação. Porém, condiciona muito do que sou e, sobretudo, muito do que faço ou que deixo de fazer.

Ontem, passei um tratamento para madeira na mesa de cabeceira que ando a restaurar. Abri o frasco, altamente inflamável e cheio de truques, e pensei “não posso perder esta tampa”, ainda por cima vermelha e vistosa. Passei mais de uma hora a percorrer o jardim, para cima e para baixo, à procura da dita cuja tampa quando terminei o trabalho. Arrasto-me devagar, porque não vale a pena perder a cabeça, revoltar-me contra mim própria. É o meu normal: perder um tempo injustificado, cansar-me desnecessariamente, para realizar tarefas simples que não fui capaz de executar bem à primeira. Entrei em casa, procurei na caixa das ferramentas, no saco do lixo, nos bolsos do robe. Voltei a sair e a percorrer o jardim, mesmo as partes que pareciam um pântano por causa da chuva, que tem sido constante. Chap, chap, chao. Os cães andavam entretidos com os seus ossos da discórdia, por isso não estava com eles. Além disso, eu lembrava-me de ter pensado que não podia perder aquela tampa. De entre todas as tampas, aquela. Desisti de procurar o dito pedaço de plástico mais de uma hora depois, depois de apalpar e revirar o saco do lixo duas ou três vezes, depois de esvaziar e voltar a encher a caixa de ferramentas, depois de procurar e voltar a procurar nos bolsos do robe, no chão, sobre as superfícies, dentro das gavetas, etc. Parece algo que alguém escolhesse para si? Parece que alguém seria assim se pudesse evitá-lo?

            De volta ao jardim. Apática, medicada para a PHDA com Elvanse, subi-o e desci-o. Já não sabia quantas vezes o havia feito. E pensei no tempo que passa e na falta de produtividade de que tanto sou acusada. Como ser produtivo quando precisamos de uma hora ou mais, diariamente, para corrigir disparates? É desmotivante, cansativo, insuportável. Há dias em que, para não errar, nem apetece sair da cama.

            Hoje fui almoçar ao Intermarché do Redondo, porque tinha mesmo de lavar roupa nas máquinas industriais do parque de estacionamento. Uma vez mais, vim protegida pelo Elvanse. É crucial que consiga avançar no meu trabalho, porque já estou uma vez mais atrasada com uma deadline. Dói-me que pensam que acontece porque não me importo, ou porque sou irresponsável, ou porque não tenho os outros e os seus compromissos em consideração. Eu esforço-me. Eu canso-me. Não estava deitada, nem a ler um livro, por muito que me apeteça, nem a ver televisão. Estava a andar para cima e para baixo no jardim, profundamente desiludida comigo mesma, frustrada, à beira das lágrimas. É possível que, se alguém for espreitando por cima da cerca ao longo da minha vida, seja sempre este o cenário que vai encontrar:

            Eu de braços caídos ao lado do corpo, a caminhar devagar, a olhar em redor, a espreitar debaixo de pedras, por entre a vegetação, dentro dos vasos, a tatear os bolsos, a suspirar, apática, de cenho franzido e lábios pressionados. Irritada. Cansada. À procura de qualquer coisa insignificante – mas crucial – que perdi. Acabei por desistir e tapei a rolha com um pedaço gigante de plástico, para pelo menos reparar e não o entornar quando voltar a pegar-lhe.

            Na noite do dia 3 de março, em Paris, decidi reencaminhar os bilhetes da Disneyland para o grupo da família. As crianças estavam excitadíssimas, é gratificante poder conceder-lhes uma experiência que estava a anos-luz de nós durante a nossa infância. Sabia que iam adorar e que, mais novos ou mais velhos, seria algo que iria proporcionar-lhes muitos sorrisos e alegria. Reparei que os bilhetes, que desde o primeiro dia assumi serem para o dia 4 de março, tinham, na verdade, a informação de que eram válidos apenas para o dia 3. O dia que se aproximava rapidamente da meia noite. Pensei que logo resolvia o problema no dia seguinte. No meio dos azares, até costumo ter sorte.

            Acontece que no dia seguinte, perante as cancelas do parque temático mais famoso do mundo, fomos barrados. O bilhete era realmente apenas válido para o dia 3, e não havia garantia de que viesse a haver qualquer reembolso. As crianças estavam alerta, assustadas com a hipótese de não poderem atravessar um torniquete para o mundo de maravilhas que andávamos há meses a prometer-lhes. Não hesitei. Peguei no telemóvel, no cartão de crédito, e comprei os bilhetes todos de novo. Sete bilhetes para a Disneyland Paris, comprados em cima do joelho perante a cancela. Lá entrámos e tentei abster-me de mais essa distração ruinosa. Como funciona o meu cérebro, tentei compreender mais tarde. A resposta não tardou a encontrar-me. A lógica foi – deve ter sido – que não iria comprar os bilhetes para a terça-feira de Carnaval (4), porque o parque estaria muito cheio, por isso optei por adquiri-los para o 3 de março. Contudo, o que guardei em mente foi que íamos à Disney no Carnaval.

            A conta foi elevada, mais um prejuízo em cima de um ano é que os tenho cometido aos magotes. Não é algo exclusivamente meu, é a maldição de quem sofre de déficit de atenção. E depois a culpa, a insegurança quanto às nossas próprias capacidades, o medo da rejeição, do desafeto, que nos faz assumir os prejuízos, pedir desculpa uma e outra vez, recear chamar os outros à razão quando, logicamente, nos sentimos injustiçados.

            Hoje, aproximei-me do balcão das refeições no Intermarché e esperei pela minha vez com a bandeja sobre o apoio. Fui escolhendo a refeição, analisando os preços, mudando de ideias uma e outra vez. Enquanto isso, pelo menos duas pessoas passaram à minha frente, dirigindo-se diretamente à caixa para pagar pedidos menores. Quando se sentaram com os seus cafés e sobremesas, a empregada deu as costas ao balcão e começou a arrumar a louça lavada a uma velocidade estonteante. Foi evidente que estava ocupada, mas perguntei-me se seria a prioridade correta: arrumar louça quando não havia mais ninguém atrás de mim e quando estava ali há, pelo menos, quinze minutos. Olhando sobre o ombro, a senhora lá reparou em mim. Continuou a mover-se com a eletricidade com que estivera anteriormente a lavar a louça, mas houve algo que se destacou de imediato: pediu-me desculpas uma, e outra, e outra vez. Pareceu que estava a ver-me ao espelho. Tanta subserviência. Não é que tenha medo do patrão, de ser repreendida ou despedida. Simplesmente, assumiu que foi outro dos seus erros constantes e desdobrou-se em pedidos de perdão. Explicou exaustivamente que estava concentrada a arrumar a louça, que tinha imenso que fazer, que tentava desdobrar-se em mil e que, simplesmente, não me tinha visto. Esforçou-se ao máximo por me atender com diligência, foi simpática e, ainda na caixa, antes de pagar, voltou a pedir desculpa outra vez. Por essa altura, já estava atenta a todos os sinais de PHDA. Então, saí de detrás do balcão e apresentei-me perante o terminal de multibanco, para pagar. Estava de jardineiras e com uma camisola oversize por baixo, enrodilhada em torno da cintura. Ela deu um salto e disse, de imediato: ainda por cima está grávida e fi-la esperar! Ao que eu, com a minha própria impulsividade, respondi Não estou grávida, mas fiquei a saber que estou gorda. E a mulher voltou a ficar mortificada, voltou a desdobrar-se em desculpas. A dada altura, disse algo do género: eu e esta boca, falo sempre sem pensar.

            Sentei-me depois de lhe garantir, uma vez mais, que estava tudo bem. Acontece. Eu também sou distraída. Enquanto comia, fui ouvindo as suas conversas com os clientes e os colegas. Toda a gente parece conhecer-se, e ela era realmente extrovertida (ou parecia), falava muito e estava em toda a parte ao mesmo tempo. Entre as corridas e os pedidos de desculpa que continuei a testemunhar, levantei-me para ir buscar um pacote de açúcar para o café e aconselhei-a a considerar a possibilidade de ser hiperativa. Ela disse que talvez seja, a rir-se, a levar tudo com leveza e brincadeira. Mas continuou a pesar o assunto e, enquanto eu comia, voltei a ouvi-la dirigir-se para um colega e dizer: sei lá, às vezes não sei o que estou a fazer, deve ser de ser hiperativa, ou psicopata, ou lá o que é. Outra pessoa poderia ficar ofendida com as suas palavras, mas eu ri-me. Esta inconveniência também é minha.

            Depois de lhe pedir uma caixa para levar o que sobrou da comida, com o espaço mais vazio, pude perguntar-lhe algumas coisas, e tudo o que ela disse me levou a acreditar que tenha realmente PHDA. Diz que dorme mal. Bebe seis e sete cafés por dia, sem que “façam nada” e, ainda antes de me ir embora, ouvi-a dizer a uma cliente sua conhecida que estava sem telemóvel, porque o tinha perdido. Escrevi-lhe PHDA por extenso no verso da minha fatura e entreguei-lho, pedi-lhe que veja disso. Voltou a pedir-me desculpa, disse que está cansada porque anda sempre a fazer mil coisas ao mesmo tempo, e para a chamar quando for assim, caso ela não repare em mim. Disse que, às vezes, se pergunta se tem Alzheimer. Era algo que eu costumava perguntar-me muitas vezes, antes do diagnóstico.

            Enquanto tirava a roupa já seca da máquina industrial, refleti sobre o quanto a sociedade é injusta para connosco, mulheres, e também para com as pessoas que sofrem deste tipo de condição. Somos acusados de preguiça quando nos esforçamos muito mais do que os outros – não por vontade, mas porque é necessário para atingirmos objetivos vagamente semelhantes. Passamos os dias a colar os cacos do nosso comportamento desatento, desastrado. Passamos a vida a pedir desculpas. E a sentir-nos inadequados, de algum modo diferentes, incapazes de realizar tarefas que os outros fazem com uma perna às costas. A resistência sobrenatural a coisas simples, rotineiras, o congelamento perante assuntos que não nos estimulam, não nos oferecem nada de novo.

            É uma sorte sermos aceites. É uma sorte termos quem nos ame apesar de toda a incompreensão. O que vos peço? Que sejam meigos no julgamento dos outros. E que não deixem de se lembrar de que as mulheres – as vossas filhas, mães, irmãs – podem estar a passar por isto sem qualquer ajuda, sem compreensão de si mesmas e do próprio comportamento –, porque o diagnóstico de PHDA demora décadas a chegar ao sexo feminino.

18
Fev25

Chapéu de palha


celiacloureiro

Imagem WhatsApp 2025-02-18 às 19.02.33_c40222e8.jHá sempre uma espécie de inquietude em mim, mas há muito que não sentia estar onde pertenço. Fez ontem um mês e 10 dias que vivo no Alentejo, e precisamente um mês que vivo numa pequena aldeia a poucos quilómetros do Redondo. Hoje, enquanto despachava uma série de recados de manhã, passeava por aquelas ruas e perguntava-me porque tive tanto medo de me afastar de Lisboa, porque tracei um raio tão próximo da minha velha vida para vir enraizar-me. Fui mal vestida - é um perigo, a pessoa cede ao conforto e descura a estética, pus roupa a lavar numa máquina industrial de rua e fui comprar 20 metros de cerca. Por toda a parte onde peço informações, as pessoas desviam-se do seu caminho para me dar indicações. Os jovens ajudam os idosos, eu icei um escadote para uma carrinha de caixa aberta e o funcionário da drogaria carregou as paletes. Onde quer que vá, tenho onde estacionar. Tudo funciona a um ritmo lento, a uma cadência humana e conversadora, em que as pessoas realmente se relacionam umas com as outras. Fui aos CTT e fiquei a saber que o senhor não era de lá, como eu não sou de cá. Fui às piscinas municipais e fiquei um bocadinho desiludida com o horário da natação livre, mas haja resiliência, retomo em breve. Comprei a rede e um chapéu de palha com uma fita às florinhas.

Passei a tarde a montar a cerca para evitar que os cães perturbem os borregos do vizinho. Estava vento, chuviscava, o cão tentava arrancar-me as luvas dos bolsos, o outro ladrava ao vento depois de saltar o muro atrás do qual tentei retê-lo. Naquelas condições, no meio dos arbustos do quintal para aceder à cerca existente, por vezes até com folhas na boca, com John Mayer a tocar no bolso do casaco e as mãos despidas, torci o arame uma e outra e outra vez. Usei o alicate, estendi a rede. Não estou habituada a trabalho físico, doía-me tudo, mas persisti até a chuva me impedir de continuar. Foi então que me ocorreu o pensamento: prefiro montar cercas no Alentejo a voltar a trabalhar num escritório em Lisboa. E é verdade. A sensação de peito cheio que tenho experimentado não tem par. A solicitude das pessoas, a verdadeira camaradagem, cooperação... Gosto de estar metida no meu canto, mas é mais fácil quando sentimos que estamos rodeados de bons corações. Nem um espirro. Nem uma lágrima. Na estrada de acesso à minha aldeia, as amendoeiras já estão em flor. Por toda a parte garças, grous, pegas, ovelhas, vacas, cavalos. A exuberância da natureza inspira-me e enche-me de calma, de uma felicidade tranquila e basilar. 

Que eu encontre aqui a minha casa, porque não me imagino mais feliz noutra.

30
Jan25

O Fosso


celiacloureiro

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Quando minimizam o trabalho de uma escritora como eu, ou como alguns dos muitos escritores que conheço, homens e mulheres, que não tiveram a sorte de um juri composto por três ou quatro pessoas ter adorado o seu trabalho a determinado momento e achado que o mesmo era digno de uns milhares de euros, de uma editora com visibilidade, de eventos de promoção e de um lugar de destaque entre os pares, uma posição vitalícia no estrelato elitista do nosso meio cultural, fico triste. Pior do que triste, fico mesmo muito chateada. Não digo "desiludida", porque não espero nada do meio cultural do meu país. Não espero que passem as ver as obras em vez dos nomes que as escrevem, nem que deixem de nomear e premiar conhecidos e amigos sempre que se encontram como juris de um prémio/bolsa/apoio/residência literária. Há premiados por mérito, não há dúvida disso, mas é sempre uma pequena fração do nosso dinheiro e do interesse público a ser verdadeiramente contemplada.

Nunca achei que haver mais autores prejudicasse o meu rumo, para mim, quantos mais melhores. O sucesso ou insucesso de outro autor não interfere com a minha caminhada nesta estrada. Manifesto-me, sim, contra o facto de haver dinheiros públicos que deveriam ser direcionais aos portugueses (a quem lê, a quem escreve), e que são manipulados pelo mesmo círculo desde 1974. Não duvidem de que tudo neste país é político, é uma rede de contactos que abre portas através de contactos e que, volta e meia, concede um docinho à "oposição", para disfarçar o facto de existir, sim, um monopólio da cultura em Portugal.

 

Alguns são vítimas de editoras mal intencionadas, outros nunca chegam a ver a porta das editoras aberta, alguns têm de escrever quando os filhos já foram dormir e demoram anos a concluir um romance.

Quando alguém de uma posição de privilégio abre a boca para criticar a literatura feita pelos novos autores portugueses, aqueles que continuam a produzir literatura porque os leitores os acarinham, os abraçam, estão a desrespeitar-me não só a mim, não só o trabalho por detrás dos 7 livros que escrevi, revi, publiquei e divulguei nos últimos 14 anos, sem qualquer tipo de ajuda, mas também os milhares de leitores que os leram, se emocionaram, perderam tempo a recomendá-los, a fazer reviews, a refletir sobre o seu conteúdo e a seguir a pessoa que os escreveu e que o faz de forma honesta e abnegada, não como profissão, não em busca de dinheiro, prestígio, fama. Mas porque lhe é essencial escrever, e porque, desse lado, continuam a ler-me.

Sempre escrevi e sempre escreverei, em primeiro lugar, para mim. Sem agendas políticas nem temas politicamente corretos, sem dizer o que querem ouvir nem procurar criar polémicas. Escrevo sobre o que me incomoda. Depois, publico (é diferente) porque há quem goste de me ler e porque acredito que devo disponibilizá-lo a essas pessoas. Ler faz bem, e se o que escrevo fizer bem a alguém, ótimo. É por esses leitores que procuro abrir mais espaço para a minha literatura e dos meus pares. Para que vos chegue, vos dê prazer, vos desconcerte. Não escrevo nem nunca escrevi para obter apoios, para ganhar dinheiro, para sair em revistas, para lamber botas ou para me auto-validar. Não escrevo para os pares e muito menos para juris ou lobbys. Escrevo porque é o que sou. Publico porque me leem. O saldo é negativo: perco mais do que ganho. No fim das contas, não saberia fazê-lo de outra forma.

Para concluir, quando abrimos a boca para falar mal dos livros, desses autores e autoras que andam por aí, em bando, generalizando, sem conhecer, sem ler, estamos ainda a desrespeitar e a minimizar o trabalho das editoras que apostaram nessas obras, nos editores que se debruçaram nelas durante horas e que decidiram apostar nelas.

Segundo essas pessoas, o mercado está a crescer, os livros são cada vez mais lidos, comentados, adquiridos, emprestados, porque estamos todos errados. Somos todos burros, incultos, uns iliterados. O nosso país é um país de ignorantes, para essas pessoas. De escritores mercenários e de leitores sem dois dedos de testa.

Não gosto do mundo dessas pessoas. Há muito livro por aí que não gosto, que não leio, mas há muito que adotei a máxima "é melhor ler um livro fraco do que não ler nada". A leitura é um caminho árduo, comecemos sem o peso do sbonismo. Leiam, leiam. Qualquer livro mau é melhor do que livro nenhum.

E, felizmente, Portugal tem muitos livros bons. E não são só os que a elite aprova.

10
Jan25

A minha vida dava um filme turco


celiacloureiro

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Ultrapassada a era dos filmes indianos como os mais dramático-inverosímeis, introduzo uma nova etapa na minha vida: a dos filmes turcos. Desde dia 7 que vivo em Évora, eu e os dois cães, numa casinha alentejana de 20m2. Ainda falta alguns meses (quero acreditar, na melhor hipótese, que sejam três) para que possa mudar-me para a minha própria casa. Entretanto, sou nómada.

As aventuras começaram quase desde o início, desde precisar de ajuda para conseguir abandonar a minha casa (o tempo voa e eu sou só uma), dormir no chão, lidar com um cachorro de dois meses e meio arraçado de capetinha, outro cão medroso, e a roda-viva de gente a entrar e sair da casa que, ao fim de sete anos, abandonei na terça-feira passada.

Saí de Almada ao crepúsculo, com o que restava da casa às costas e um cheque de cinco dígitos que não consegui depositar porque, como a minha vida dava um filme turco, a porta eletrónica/automática do meu banco estava "fora de serviço". Conduzi cansada, exausta, a ouvir música boa, com um cão a dormir e ressonar e o outro a remexer-se, inquieto.

Em Évora, passei bem na primeira noite, frio na terceira e estava a ver, há pouco, que ia passar calor na quarta. Isto porque, ontem, o quadro começou a disparar em intervalos cada vez mais próximos. Deitei-me sem luz, sem bateria nos aparelhos, sem frigorífico a arrefecer nem aquecedor a funcionar. Gelada. Hoje, tinha um único compromisso, além do trabalho, que era urgente: levar o meu irmão à rodoviária de Évora para o autocarro das 17h30.

O quadro elétrico, que ontem ainda se ia ligando a intervalos esporádicos, não ligava de todo. Eu, sem ter lavado o cabelo ontem, olhei-me ao espelho: patilhas oleosas, pele ressequida (do frio), cabelo digno de um acidente ferroviário. Sem dizer que não trouxe calças, à exceção das rotas e manchadas de tinta que trazia no corpo. Contei 7 camisolas, 0 calças nas malas. Não podia tomar banho, porque o termoacumulador não aquecia desde a noite anterior. Descobri que os cães só tinham um resguardo. Não podia ligar o fogão (elétrico) para fazer café nem comer o pão duro porque a torradeira também estava fora de questão. Liguei ao proprietário do AirBnB, que me fez esperar apenas meia hora e que tentou despistar o problema. Incapaz de o fazer, pediu ao eletricista da sua confiança que viesse à casa, e o mesmo prometeu vir depois de almoço. Tive de me resignar aos factos: não ia poder trabalhar nem tomar banho. Vesti o casaco por cima do pijama (não conseguiria vestir roupa lavada sem tomar banho) e propus-me a sair para ir, apenas, buscar os resguardos e uma manta para os cães, além de uma mopa para secar as constantes intervenções da esfregona. Como me perco (seja fisicamente, seja em pensamentos), era uma da tarde quando terminei o recado. Pensei em dar um pulo ao Évora Plaza para almoçar, posto que não saberia quando poderia comer e ainda nem tinha tomado o pequeno-almoço. Para meu azar, há logo uma Fnac à entrada, e eu queria um caderno para poder desenhar enquanto não tivesse bateria/internet. Entrei a sorrir, de mãos nos bolsos, a pensar "que sorte que não conheço ninguém em Évora, posso andar à vontade mesmo neste estado deplorável". As pessoas aqui são super vagarosas, não é mito, e estava uma senhora postada mesmo diante dos cadernos que eu queria espreitar, em busca de um com folhas que servissem também para aguarela. Quando pedi licença à pessoa para que se desviasse, dou de caras com a minha professora de Literatura, cujo trabalho sobre a Madame Butterfly submeti há cerca de três semanas. O meu choque e horror... Comecei por explicar a minha vida toda, sem sequer lhe permitir dar-me as boas tardes: estou em mudanças, a casa não está pronta, estou temporariamente num AirBnb, não há eletricidade no AirBnb, quer dizer, há, mas não desde ontem, não pude tomar banho, não sei das calças de ganga, ainda nem comi... Foi uma chamada à Terra: não andar armada em sem-abrigo (com todo o respeito aos que o são por força das circunstâncias) em Évora.

Há dois dias também vivi uma aventura assustadora. Decidi ir mudar o carro de uma rua paga para um estacionamento gratuito e, uma vez que os cães estavam a pirar numa casa tão pequena, decidi levá-los. O Peanut é medroso, o Balú ainda não tem o reforço da vacina e sair é altamente desaconselhado, além de que o peitoral foi comprado à pressa no chinês e o feltro abria constantemente. Contudo, achei que faria melhor ao desgraçado do cão gastar um pouco da sua energia num passeio de 100 metros até ao carro a continuar trancado e a enlouquecer, a ir buscar a bolinha a 2 metros de distância num loop infinito.

Acontece que, ao regressar, parámos num semáforo movimentado. O cachorro, que passeou alegremente e não demonstrou medo em nenhum instante, decidiu assustar-se quando um camião se aproximou. Eu estava de olho no Peanut, que tremia como um chihuauha perante as demonstrações de afeto das minhas sobrinhas, e o Balú deu um safanão no peitoral e... Desatou a correr pela estrada na direção oposta. Quando dei por mim, estava a correr e a gritar atrás dele, com o Peanut e a trela com o malfadado peitoral a reboque. Consegui apanhá-lo - por milagre - e a partir daí seguiu ao colo. Só quando estávamos seguros e ele a dormir no meu colo é que percebi a irresponsabilidade que tinha cometido. E, também, que já amo este Capetinha. 

Quando o eletricista saiu hoje do AirBnb, por volta das 16h00, depois de identificar um fio terra em contacto com outro (?) dentro de uma tomada, a sobreaquecer e a fazer disparar o quadro, pude finalmente tomar banho e ir buscar o meu irmão. Acontece que, antes disso, o proprietário ainda quis resolver a questão do ar condicionado, que liga e trabalha ruidosamente, mas não aquece. Era o filtro e, depois de o lavar e secar (com os cães a fugirem para a rua e eu a persegui-los uma vez mais, mas é um beco sem qualquer movimentação de veículos), despediu-se. Era tarde, mas recusei-me a voltar a sair toda sebosa. Como pessoa que sofre de défice de atenção, às vezes penso que estou a despachar-me super rápido, mas na verdade não. Esperei um pouco pela água quente do termoacumulador e, quando estava prestes a sair de casa, vi que eram 16h50 e eu tinha ficado de apanhar o meu irmão às 16h45. A casa estava a arder por causa do ar condicionado, mas não consegui encontrar o comando e fui-me embora, a trotar até ao carro, ciente de que teria de fazer o percurso a 130km/hora se quisesse ter alguma hipótese de o meter naquele autocarro até às 17h30, estando ele a 25 km de distância (50, com a ida).

Arranquei de Évora atordoada, com a cabeça a fazer cálculos e a sobreaquecer, percorrendo o caminho que já percorri dezenas de vezes até casa. Desta vez, como a minha vida dava um filme turco, enganei-me no caminho. Fui dar ao mesmo sítio, mas desconfio que perdi uns 3 minutos na brincadeira (apontem). De seguida, ao aproximar-me da Route 66 (batizámos assim a estrada que liga Évora à minha aldeia isolada), detetei um carro lento à minha frente. Como não me atrevo a ultrapassar ninguém na route, soube que teria de o fazer no preciso instante em que ele acionou o pisca para a direita e virou para lá. Contornei-o pela esquerda a toda a velocidade, apesar de isso implicar atravessar a banheira de água turva que se acumulava à esquerda do trilho. Segui imperturbada (a uma velocidade bem acima da recomendada, estou certa), até ver os dois salvadores da minha casa à distância. Parei o carro em duas rodas, eles saltaram para dentro e, ao voltar à Route 66 com os rapazes sentados, de cinto apertado e malas na bagageira, cruzei-me com o carro lento que tinha ultrapassado e que ficou assim a saber que a nova vizinha é doida.

O meu irmão sentou-se no carro as 17h18 e disse que não havia forma de conseguir apanhar o autocarro das 17h30. Eu disse-lhe que já tinha apanhado o autocarro para Almada muitas vezes e que, pelo menos o das 19h00, sai de Évora sempre com atraso de pelo menos 15 minutos. Decidi olear o acelerador para aumentar as suas probabilidades de chegar a casa a horas decentes. A dada altura, ele disse: o melhor presente é estar presente, ou uma variante disso, e percebi que era hora de lhe dar um cheirinho de travão.

Apanhámos um TVDE à nossa frente que, simplesmente, farejou o nosso desespero e fez questão de se arrastar a 30km/hora por mais de uns 3km, empurrando o relógio para as 17h33, guinando para a esquerda e para a direita a cada vez que eu, sequer, cogitava ultrapassá-lo. Mas estávamos a chegar e, se não fosse por ele, em vez de termos chegado às 17h38 teríamos chegado às 17h35, possivelmente a tempo de apanhar o autocarro. Isto, mais os 3 minutos perdidos à deriva pelas rotundas de Évora no início da odisseia, e de certeza que teriam conseguido apanhar o autocarro.

O próximo era às 19h00, de modo que, para me desculpar, paguei os novos bilhetes e convidei-os para uma bifana do Levy. Uma vez lá, os olhos dos rapazes voltaram a brilhar quando leram "choco frito" no menu. Acontece que havia um problema com a eletricidade e, por isso, nada de choco frito por um bocado, não tinham "como o fritar". É o costume. De seguida, um deles pediu Coca-cola, mas só havia Pepsi. Depois, pedi que incluíssem dois cafés na conta e a senhora tirou-os logo, deixando um dos meus convidados (e vítimas) desconsolado por ter de o beber frio, depois de comer. 

Lá entraram no autocarro das 19h00, que só chegou às 19h20, e eu voltei para "casa" a pé, à chuva, a ouvir a Someone That Cannot Love, do David Fonseca, debaixo de uma morrinha refrescante e com o astigmanismo a debater-se com os borrões das luzes de Natal por desmontar e os faróis dos carros. Se o TVDE me tivesse apanhado, depois de termos conseguido ultrapassá-lo e os rapazes o chamarem de santo aos berros, tenho a certeza de que teria alegado que tinha um problema no alinhamento da direção e o veículo tinha resvalado para a berma, passando-me involuntariamente a ferro. Mas pronto, isso não aconteceu, porque a minha vida dava um filme turco, não uma novela mexicana.

Fui a sorrir até à minha casinha dentro das muralhas, apesar da montanha de trabalho para terminar este fim-de-semana, do espaço útil de 20m2, dos cães aborrecidos, do cobertor que me dá alergia na cama. Parece que estou em casa. Há muito que não me sentia em casa. Ao abrir a porta, fui recebida pelo calor sufocante de um ar condicionado em pleno funcionamento. Agora, o fim-de-semana é meu sem interrupções, e a minha única preocupação é descobrir quem hackeou o meu Spotify e anda a adicionar-lhe playlists de forró.

24
Dez24

Balanço de 2024


celiacloureiro

Eu sei que o balanço de cada ano se faz no Ano Novo, mas eu prefiro fazê-lo agora, no Natal. É no Natal que faço o balanço das relações, das alegrias, das tristezas, sobretudo das ausências. 

Desde pequena, sempre adorei o Natal. Desde pequena, o Natal foi sempre uma altura complicada. Nunca sabia se a família ia estar reunida. Se ia haver harmonia, se ia haver tréguas. Se o meu pai ia estar bem ou chateado, porque em dias de maior carga emocional as dependências químicas também batem com mais força. Não sabia se a minha mãe ia aparecer e, aparecendo, se viria sóbria, alegre ou embriagada e cheia de acusações. Não sabia se ia ver os meus irmãos, estar com eles, e se eles estariam melhor ou pior do que eu.

Era costume que o Natal fosse época de generosidade, mas não de abundância nem de exageros, nem de mesa farta, nem de pessoas gratas por estarmos uns com os outros. Havia o tio amuado. A mãe amargurada, o pai desinteressado, a avó cansada e desanimada, o avô que só queria um copo de Porto e ver televisão sem que o aborrecessem. Os irmãos, quando vinham, os presentes, quando os havia. 

Ainda assim, sempre adorei as luzes de Natal. O cheiro do pinheiro natural que, aí até aos 12 anos, a minha vizinha trazia de um pinhal em Fernão Ferro todos os anos. A esperança - a cada ano mais ténue - de um milagre - de entendimento, de uma resolução para uma vida melhor. A avó a fazer um arroz doce de última hora, porque não havia dinheiro para mais e acabava por ceder às minhas insistências. O bolo rei, de que nunca gostei, que alguém oferecia ao avô. O Porto, sempre, oferecido. Às vezes, figos secos. O vapor das couves cozidas, do bacalhau na água borbulhante, a cozinha nessa nuvem com o cheiro caraterístico do Natal. Lembro-me do Natal com a minha bisavó, muito magra, tolhida pelo Alzheimer, mas sei que comia aquele bacalhau com couves como havia feito a vida toda, e com certeza que isso lhe traria alguma espécie de alento, de conforto familiar. A mesa da sala posta uma vez por ano. A melhor louça, as travessas do enxoval da avó. O meu pai a levar-nos a passear depois de jantar, para fazermos tempo até à meia-noite, e eu de mãos nos bolsos, a fazer figas para que nevasse, porque não custa sonhar e sempre sonhei mais ou menos alto.

Este ano, tenho sentido a falta de muita gente. Da avó, do avô, da minha mãe que, apesar das dificuldades durante toda a vida, acabava por se comover sempre no Natal, prisioneira das suas próprias boas lembranças, distantes, mas preciosas. Do meu irmão, que não tive coragem de chamar para junto de nós este ano, porque me faltam forças, coragem, disposição. É o último ano na casa onde vivi seis anos e nove meses. É o último ano em que vivi com as minhas irmãs. É o ano que começou em maio, quando percorri pela primeira vez a estrada ladeada de flores que conduz à minha nova casa, à aldeia que escolhi para viver, onde os vizinhos deixam sacos cheios de laranjas no Natal, e outros com romãs no outono.

É o ano em que decidi regressar à Universidade, descobrir se conseguia sobreviver - adaptar-me, sair-me bem - no ambiente académico. Foi um ano muito especial. Mais um ano em que a Sertralina ajudou a manter-me à tona, mas foi também o ano em que descobri que tenho déficit de atenção e em que pude recorrer ocasionalmente a medicação para trabalhar, para me manter alerta, responsável.

É o ano em que tive de pesar o que quero e o que já não quero, o que é importante e o que é acessório. Foi um ano pesado, difícil, mas também cheio de conquistas. Publiquei um romance que considero o meu melhor até hoje (bem sei que o favorito dos leitores é o Demência, mas este é o melhor, para mim). Escrevi e publiquei um livro sobre personagens históricas. Fui a inúmeros eventos, conheci imensos colegas autores, leitores. Abracei, beijei, aconselhei e fui aconselhada. Recebi o prémio de literatura Mais Alentejo, fui ao FLO, a Bragança, ao FALA, à rádio, ao A Nossa Tarde, à Feira do Livro de Évora, à de Lisboa, participei no Páginas com Graça. Foi um ano em torno de livros. Foi um ano cansativo, mas muito gratificante.

Que 2025 seja um ano para recalibrar. Para abrir mão de mais coisas que não têm importância e para abraçar com mais força, mais perto, as que têm. Que seja um ano de introspeção, criatividade e serenidade. De saúde, de estabilidade. Que o próximo Natal tenha a família reunida, em paz, e tocos de lenha a estalar no recuperador de calor. Que se ouça o repicar dos sinos da igreja alentejana da minha nova aldeia. Que a chaminé fumegue e a felicidade pura e simples nos enlace.

 

 

03
Dez24

Trinta e cinco


celiacloureiro

A menos de vinte e quatro horas de fazer trinta e cinco anos, olho o tempo através do filtro esverdeado daquele que julgo ser o primeiro retrato com a minha mãe. O meu aniversário será sempre dia de pensar nela, porque foi o dia em que nasceu como mãe, e o meu pai como pai, e os meus avós como avós. O meu pai tinha vinte anos, a minha vinda era incrivelmente precoce - e naturalmente indesejada -, mas atrevo-me a dizer que os sorrisos começaram a surgir pouco depois. A minha avó, na altura com cinquenta anos, ficou encantada por poder apaparicar uma netinha depois de dois filhos homens. Penso que lhe devo o meu humor, a resposta rápida. Duas sagitárias que, apesar das quezílias ocasionais, se admiravam mutuamente (estou em crer).

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O texto de hoje não é para falar de tempo. Ou melhor, é para falar sobre o tempo das oportunidades e o tempo do descanso. Sinto-me a derrapar. Cansada, comecei a fugir a algumas obrigações. Preparo-me para faltar à segunda semana de aulas de enfiada, mas tenciono, ainda assim, concluir os trabalhos do semestre. Não me importo de ser reprovada. Faço-o por mim, pelo exercício mental, e não pelo diploma. Vivemos num mundo - num tempo - em que tudo tem de servir um propósito. Ouço muitos podcasts de humor que acabam, inevitavelmente, por fazer pouco dos livros de autoajuda, dos coachs disto e daquilo, dos suplementos mágicos e das dietas milagrosas. As pessoas estão tão desesperadas por sentirem que têm alguma relevância, algum significado, ou mesmo impacto, na vida dos outros, que parece que vivem completamente alienadas de si próprias e da realidade. Estou cansada de frases feitas.

Começo a ver alguma luz ao fundo do túnel da minha casa. Se o universo estiver de acordo, em breve serei apenas duas luzinhas numa rua com meia dúzia de casas, com dois cães, uma lareira acesa, uma caneca de chá e um rasto de fumo a elevar-se da chaminé para um céu noturno estrelado, infinito, abobadado.

27
Nov24

Pelo Fim da Ditadura dos Bidés


celiacloureiro

O dia 8 de janeiro de 2024 foi o dia em que, no Diário da República, foi publicado o Decreto-Lei n.º 10/2024 que pôs um ponto final à ditadura dos bidés em Portugal. Ora vejamos:

 

(...) elimina-se a obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho; ii) permite-se que possa existir um duche em casas de banho, em vez de banheiras. (...)

 

Pois é, que lei é esta que andámos todos (tantos, bastantes) a violar até 8 de janeiro de 2024, e o que significa isto do “fim da obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho”? Será que todos aqueles que preferiram ter um armário de toalhas ou um cesto para a roupa suja, ou mesmo uma máquina de lavar-roupa na casa de banho, no sítio onde tradicionalmente estaria o bidé, esteve este tempo todo sujeito a multas? E, afinal, a que multa estaria o cidadão/residente em Portugal sujeito por viver numa casa que não observava os trâmites legais do urbanismo nacional? Todos aqueles que tinham duche, até dia 7 de janeiro de 2024, estavam a viver à margem da lei? E de que forma é que uma banheira se impõe sobre uma base de duche, quando a base de duche é o recomendado para pessoas com pouca mobilidade, e a que burocracias é que um doente ou idoso teria de se submeter para obter uma licença para se ver livre da banheira e adotar a base de duche? A minha forte suspeita é a de que, graças à cegueira de legislação do género, andámos e andamos todos meio na ilegalidade, sujeitos à fiscalização que, por sorte, nunca, ou raras vezes, acontece.

O que mais me assustou ao ler sobre esta lei foi o facto de poder imputar responsabilidade, multas e contraordenações a um proprietário recente. Ou seja, se compraram hoje uma habitação, e a mesma não observa os trâmites legais, porque o antigo proprietário a alterou a seu bel-prazer sem pedir licenças para alterar o interior da sua casa, é o vosso nome que poderá ser prejudicado – com custos, tantas vezes elevados – caso os fiscais do urbanismo decidam bater-vos à porta. Pergunto-me se esta lei não inviabiliza – ou, pelo menos, desmotiva, fortemente – a compra de habitação no interior do país, ou a compra de habitações mais velhas, numa altura em que ter casa é um luxo e em que o interior continua a precisar de gente.

No meu caso, comprei, em junho de 2024 uma casa sem licença de utilização. Na escritura, ficou definido que trataria de fazer valer o Alvará da CME para a legalização de um anexo construído com data posterior à definida por lei para a isenção, e a primeira coisa que fiz ao dar início às obras foi corrigir a situação dos esgotos, com visitas regulares de um técnico do serviço de águas e saneamento da dita cuja câmara.

Uma vez que a casa tinha um pé alto de mais de 5 metros, decidi construir um entrepiso (uma espécie de mezanino) e, para esse efeito, fui consultar a lei. A lei transmitiu-me a seguinte informação:

Por outro lado, são acolhidas novas situações de isenção, onde não existe qualquer procedimento administrativo de controlo prévio. É o que passa a suceder, por exemplo: i) quando exista aumento de número de pisos sem aumento da cércea ou fachada (...)

 

Ontem, contudo, recebi uma carta da CME. Na realidade, uma intimação. Tinha dez dias para me opor à decisão de embargo da obra, pelo período de um ano, e o motivo alegado é que tinha procedido a obras de ampliação da minha habitação sem fazer comunicação prévia à CME, conforme previsto por lei num artigo e letra que não encontro no diploma atual. Não podendo acreditar que a câmara estivesse a emitir pedidos de suspensão – com todas as consequências que daí advém – baseada num parecer erróneo da legislação, voltei a ler o Decreto-Lei n.º 10/2024, perguntando-me porque terá sido mais fácil seguir Guerra e Paz do que este palavreado legal. Mas eis o que deslindo, posto que a alínea abaixo surge ao abrigo da citação anterior

(...) As obras de reconstrução e de ampliação das quais não resulte um aumento da altura da fachada, mesmo que impliquem o aumento do número de pisos e o aumento da área útil;

Por um instante, fiquei em pânico. A minha interpretação parece-me correta, mas a lei é tão confusa, tão omissa, tão obscura e intrincada, até para quem cursa cadeiras de mestrado e leu Leo Tolstói, que pus a hipótese de ter entendido mal. Dirigi a minha resposta ao respetivo departamento da CME e fico à espera.

Mas eu tenho ansiedade e preciso de me sentir segura. Então, a seguir ao pânico, veio a nova resolução: se a CME encontrar – ou fabricar – motivos para embargar a obra, porque imagino que as câmaras estejam muito insatisfeitas com a perda do dinheiro que entrava por via de taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, compro outra casa. Esta malfadada casa em Évora, na qual o meu irmão se tem esfolado, tem embatido em imensos obstáculos. Primeiro, a pouca, fraca e dispendiosa mão de obra no distrito, onde é da praxe que os empreiteiros aceitem várias obras e as vão intercalando umas com as outras, sem grande seguimento nem cumprimento de prazos – recolhi vários testemunhos neste sentido. Tudo demora imenso tempo, os custos são cada vez mais avultados e, agora, a câmara a pairar sobre a obra, diligente, e a emitir propostas de pedidos de suspensão.

É também isto que está errado com o nosso país. Um cidadão que queira estar em conformidade com todos os meandros da lei, esfola-se em guichés e esvazia os bolsos para regularizar as tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, mesmo quando a lei já não as exige, para evitar “problemas”, porque as pessoas têm medo das câmaras municipais, esses monstros de papelada, como têm da polícia de trânsito quando se sentam ao volante depois de jantar, mesmo que não tenham tocado em álcool. Comprei uma casa fechada desde 2016, o quintal era uma selva, os esgotos estavam às três pancadas, a eletricidade nem quero imaginar, o piso desnivelado, por toda a parte iam surgindo rachas e rachinhas, e estava enclavinhada entre duas outras moradias, habitadas. Na mesma rua, há uma prestes a derramar-se sobre a estrada, a fachada está, literalmente, suspensa por um fio. Ainda assim, nem os vizinhos nem a câmara ficaram satisfeitos com as obras de requalificação. Aborrece-lhes o barulho, chateia-lhes que não tenha preenchido requerimentos (os tais que a lei atual dispensa), e estão preocupados com a cor que escolhi para a porta e o friso, porque há cores de portas e frisos proibidos na região.

Tudo isto é tão pequenino, tão comezinho, que torna mais fácil compreender o porquê de os portugueses desistirem de Portugal. Este aparelho burocrático castrador não incentiva o cidadão comum, com vida ativa, problemas rotineiros, contas para pagar, a querer salvar nada. É mais fácil largar tudo, deixar cair. Um país que não nos estende a mão na saúde, que está a abandonar-nos na educação; uma freguesia como a minha, que tem um incentivo de 500,00 euros para cada criança que nasça na freguesia, porque a mesma vem a perder população há décadas, depois pede-os de volta nas tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas.

Um país onde a justiça continua a deixar assassinos saírem com penas suspensas, que explora professores, forças de segurança, médicos, enfermeiros, dispõe-se a perseguir o cidadão cumpridor, trabalhador, com uma ferramenta espantosamente funcional, observadora de prazos e diligente, que é a divisão de fiscalização de urbanismo. Neste Portugal dos escândalos, da corrupção, do compadrio, em que o próprio Ministério da Cultura usa os fundos dos contribuintes (e os europeus) para patrocinar as carreiras dos filhos e netos dos boys, o estado preocupa-se com bidés. E, para começar, como é possível que os portugueses tolerem um estado tão intrusivo que, em 2024, ainda legislava sobre a disposição das suas casas de banho?

Vivemos, mesmo depois da promulgação do novo diploma, a ditadura dos bidés.

23
Nov24

Quem é a Madame Butterfly?


celiacloureiro

Ora permitam-me responder, com todo o gosto, a uma pergunta algumas vezes repetida desde as stories que tenho publicado desde ontem.

Em primeiro lugar, Madame Butterfly é o que me traz a Lucca, o tema do meu trabalho de mestrado sobre o orientalismo na ópera de Puccini.

Mas quem é, afinal, a Madame Butterfly? Para o explicar - porque a explicação não é propriamente simples -, devo entrar um pouco pelo tema do meu trabalho de Literatura e Artes. Assim, a personagem Madame Butterfly é fruto do fascínio dos homens europeus (e norte-americanos) pelo exotismo do oriente e, em especial, pelos mistérios da feminilidade oriental em geral, e da japonesa em particular. Li, algures, que, o Orientalismo na arte é a interpretação do oriente a partir dos olhos dos ocidentais, portanto um Oriente projetado que não existe, se não em oposição ao que é ser-se ocidental. É, assim, uma quebra relativamente às regras, às leis, à religiosidade, às paixões e à conduta social dos europeus. Assume-se que o ocidente seria o lado da razão, do trabalho e da honra e da respeitabilidade, ou seja, do estatuto social do homem civilizado, enquanto o oriente era um mundo mágico de prazeres desconhecidos, um escape, um capricho. O ocidente como força masculina do mundo, o oriente como a feminina. Yin e yang.

Jean Auguste Dominique Ingres, La Grande Odalisque

Tratou-se de uma influência muito grande na arte ocidental desde, sensivelmente, fins do século XVIII e início do século XIX, estendendo-se até ao entre guerras. Terá começado com o enamoramente dos holandeses e dos ingleses pela parafernália de objetos que o comércio marítimo começou a trazer dessas paragens: sedas, chá, pedras preciosas, porcelanas, mais tarde vasos, utensílios de cozinha, mobiliário, biombos, quimonos. Durante o séc. XIX, Ingrès, Manet, Delacroix, pintaram o mistério do oriente e de paragens exóticas de forma magistral, introduzindo A Odalisca, os banhos turcos, os homens de turbante, a natureza oriental à audiência europeia. O fim dessa divagação amorosa do ocidente em relação ao oriente deu-se quando o Japão se tornou num inimigo da "liberdade" e dos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, embora essa admiração deixasse de ser tão vocal, é provável que permaneça até hoje uma ideia de oriente enfabulado, desconhecido e indecrifável na qual os ocidentais projetam imagens tantas vezes erróneas.

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Por volta de 1850, quando o Japão, um reino desde sempre fechado ao ocidente, abriu por fim os seus portos aos ocidentais, os norte-americanos puderam enviar navios para portos como Nagasaki e, nas décadas seguintes, a sociedade japonesa esforçou-se por se adaptar aos marinheiros que percorriam aquelas colinas fascinados com as suas pecularidades. Surgiram casas de má fama (bordéis), apesar de ser estritamente proibido que as mulheres japonesas se relacionassem com os homens ocidentais. Contudo, com a evolução das relações comerciais, acabaram por surgir modos de aproximar homens e mulheres de formas um pouco mais respeitosas, embora não menos degradantes para as mulheres japonesas de famílias desfavorecidas - ou caídas em desgraça, como a de Cio-cio-san, a nossa Madame Butterfly. Começaram a surgir intermediários casamenteiros, que sabiam que os americanos costumavam demorar-se nos seus portos e que procuravam mulheres dóceis que serviam de "esposas" em casas estabelecidas e custeadas pelos próprios americanos, para que estes vivessem a fantasia de ter uma casa, uma família, no Japão. Como é evidente, nenhuma mulher de famílias respeitadas se submeteria a essa posição. Muitas das que o fizeram sabiam que, uma vez que o seu marinheiro partisse, viria outro noutra estação que poderia, igualmente, tomá-la como esposa e sustentá-la durante algum tempo. O Japonismo é um subproduto do Orientalismo, e esteve muito em voga nas últimas décadas do séc. XIX precisamente pela abertura do Japão ao mundo ocidental. O oriente misterioso que os europeus exploravam há séculos estava pronto a revelar-lhe mais segredos.

Madame Butterfly é um conto escrito em 1898 por John Luther King, cuja irmã acompanhara o marido, missionário, a Nagasaki. Ali, ouvira falar da trágica história de amor entre uma japonesa e o marinheiro americano que a abandonou tendo, inclusivamente, conhecido os dois protagonistas. Era uma história recorrente, que também Pierre Loti explorara no seu romance de 1887, Madame Chrysanthème.

O conto vendeu "como pães quentes", e é fácil compreender porquê.

Hohenstein_Madama_Butterfly.jpgEm 1904, depois de ver a peça de David Belasco em Londres, Puccini lança a ópera Madame Butterfly, com as devidas adaptações para o público italiano. Embora tenha sido um fracasso na estreia no La Scala, devido à barreira cultural e a ser excessivamente longo, o compositor não desistiu da sua obra e repensou-a em três atos, transformando-a num sucesso mundial que é hoje em dia.

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O enredo é relativamente simples: um americano desembarca em Nagasaki e é recebido pelo cônsul americano na cidade e pelo casamenteiro que contratara por correspondência para conseguir uma mulher e uma casa durante a sua estadia na cidade. O cônsul avisa-o de que Cio-cio-san, ou Butterfly (chochou, o nome da protagonista em japonês, significava borboleta), era uma jovem sensível caída em desgraça devido ao suicídio do pai, gesto que é uma vergonha na cultura japonesa, e que ela acredita piamente no casamento com um americano. Está, inclusivamente, disposta a amá-lo, a abdicar da sua religião e dos costumes japoneses por ele. O cônsul explica-lhe que, para os japoneses, o casamento deve durar "999 anos". É desde logo evidente que Pinkerton encara o casamento como sendo "de fachada", "temporário", até, um dia, poder casar-se com "uma verdadeira esposa americana". Ora espreitem a ária em que o diálogo tem lugar, Dovunque al mondo, na qual Pinkerton diz que um homem não pode estar satisfeito se não colher o tesouro que são as jovens bonitas de cada praia, e que ficará casado com Butterfly por 999 anos, desde que não seja transferido para outro porto.

Butterfly é-lhe apresentada e tem cerca de 15 anos. É incrivelmente bonita e vem acompanhada de uma criada, Suzuki, a quem fará os seus desabafos ao longo da história. Uma vez a sós, percebe-se que os recém-casados ficam desde logo apaixonados um pelo outro, embora seja evidente que Pinkerton lhe faz promessas que não tenciona cumprir. Há ainda a menção que Butterfly faz ao que ouviu dizer do ocidente: que, ali, quando um homem encontra uma borboleta, acaba por espetá-la com um alfinete para a adicionar à sua coleção. Na segunda ária mais bela de todo o espetáculo, Vieni la sera, Pinkerton afasta os receios de Cio-cio-san e os dois enlaçam-se e transformam-se em marido e mulher, legitimando, pelo menos para ela, o casamento. É óbvio que ela pretende ser-lhe fiel e honrá-lo, adotando a sua religião e, graças a isso, sendo regenada pela própria família. Nesse ponto, na mesma área, Cio-cio-san confessa: sozinha e renegada, renegada e feliz. Porque julga que o tem a ele.

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Passam aproximadamente 3 anos e Pinkerton não voltou a Nagasaki nem sabe que Butterfly teve um filho seu. Um menino de traços japoneses e olhos azuis - tocando, neste ponto, na questão das crianças mestiças que sofreram graves discriminações no Japão. Apesar de todos a avisarem, incluindo o casamenteiro que lhe arranjou um potencial novo marido, Butterfly não acredita que Pinkerton não vá voltar. Na realidade, a sua fé nele é inabalável e exaspera todos ao seu redor. Naquele que é para mim o ponto alto da ópera, Cio-cio-san procura mitigar as dúvidas de Suzuki, garantindo-lhe que um belo dia veremos chegar o barco de Pinkerton, e que ele regressará para os seus braços e voltará a chamá-la de sua mulher. Chorem com Un bel dì vedremo.

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Pinkerton regressa, mas acompanhado da legítima mulher, e só então se apercebe do mal que causou à jovem Butterfly. O final é trágico, como o de quase todas as óperas, mas é lindíssimo. Já vi duas vezes e voltarei a ver mais dez.

Tudo isto dá pano para mangas em termos de reflexão. É uma história incrivelmente misógina, é verdade, em que a mulher está completamente submetida a um homem que considera superior não apenas por ser do sexo forte, mas por ser de nacionalidade americana, abdicando da própria família, religião e cultura por ele. O retrato da mulher submissa que tudo suporta foi muito criticado ao longo dos anos. Contudo, de algum modo, Puccini recebe o elogio de não ter denegrido a imagem de Butterfly, de não a ter transformado numa prostituta desesperada e apaixonada, mas sim numa jovem crédula e de coração partido, numa mãe abgenada, cujos sonhos são esmagados pelo oficial da marinha insensível. Essa consideração pela mulher estrangeira na base da cadeia alimentar tem valido reconhecimento a Puccini e, sem dúvida, conquistou a minha estima e admiração pelo modo como o autor elevou Butterfly que é, sem dúvida, a personagem mais nobre desta ópera. Talvez seja por isso que as audiências mundiais tenham sempre torcido por Cio-cio-san e condenado Pinkerton. A história foi readaptada dezenas de vezes, inclusive a romance pornográfico e a um filme de 1993, com Jeremy Irons, intitulado M. Butterfly.

Esclarecidos sobre quem é Madame Butterfly, prometem que compram bilhete quando estiver em cena nas redondezas?

22
Nov24

O Murmúrio dos Estorninhos


celiacloureiro

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Quando tive de escolher o tema para o trabalho de Literatura e Artes, escolhi O Orientalismo em Madame Butterfly, de olho na versão de Giacomo Puccini. Sempre senti um fascínio inexplicável pelo compositor lucchese, mas, e apesar de ter visitado por quatro vezes a Toscana, nunca tinha visitado Lucca.

Assim, decidi que era chegada a hora e marquei uma viagem sozinha a Lucca, com o objetivo principal de me deixar inspirar. A última vez que estive sozinha em Itália foi em dezembro de 2016, por duas semanas. Corri Itália de norte a sul. Em Siena, fiquei num velho palazzo com vista sobre os telhados terracota. Falei com a minha avó por Facetime, e já sabia que ela estava em estado terminal. Abri a janela e mostrei-lhe as cores da minha cidade favorita italiana. Lembro-me dessa chamada porque comportou tanto beleza quanto angústia. Lamentei que ela não tivesse tempo para conhecer um bocadinho do mundo comigo.

Nas últimas semanas, senti-me tantas vezes cansada, exausta, esgotada, que ponderei cancelar, adiar ou mesmo simplesmente faltar à viagem. Contudo, houve um fecho de telejornal que pesou muito na minha decisão. Correu o mundo um vídeo de um bailado coreografado de estorninhos, sobre uma piazza na Sardenha. A música de fundo era Nessun Dorma, do meu adorado Puccini. Lembrei-me de como Itália é um país rico em bênçãos, em beleza e cores, e como a beleza faz bem à alma. Sempre disse que Itália é terapia para a alma, porque já ma amaciou vezes e vezes sem conta, no passado.

Então, às 5h30 da manhã de hoje, levantei-me da cama, tomei um duche, vesti-me com as roupas novas que comprei ontem à pressa no Almada Fórum (ainda não sei onde tenho a roupa de inverno, provavelmente no cimo da despensa), e entrei no Uber do Flávio, do Rio de Janeiro, em direção ao aeroporto. Pelo caminho, claro, falámos de trânsito e de beleza.

O voo para Bolonha correu bem, fui sentada ao lado de um casal super simpático (e charmoso) de italianos. Os homens italianos têm isto, sobretudo a partir da meia-idade. A voz suave, o italiano por si só, os óculos de inteletual e a graciosidade de todos os movimentos. Elegância nata. Os mais novos, que me perdoem, são todos meio chunguitas (neste momento, andam de quispos e calças justas a jogar à bola com latas na rua, são 23:30 em Itália). O senhor, de talvez 60, 65 anos, viajava de fato azul-marinho, com sobretudo por cima. Ia a ler, a mulher também. Também abriu um caderno durante o voo e escreveu. Expliquei-lhes que voava para Bolonha, mas que o meu destino era Lucca. Disseram-me que regressavam a casa, em Ancona, depois de uma quarta visita a Lisboa, que adoram. Sobre Lucca, mencionei Puccini e o senhor explicou-me que a mulher era uma expert em ópera, porque trabalhou na organização desse tipo de eventos. Senti que os sinais estavam todos a meu favor.

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Uma vez em Bolonha, demorei 20 minutos a percorrer o trajeto entre o terminal onde desci do avião e a sala de espera do Marconi Express, o comboio cujo bilhete eletrónico tinha comprado antecipadamente. A bella Itália não tardou a lembrar-me do seu pendor para a imprevisibilidade (para mim, que não estava a par do assunto, foi inesperado), e por toda a parte, em Bologna Centrale, havia avisos sobre a greve nacional dos maquinistas. Resumindo: corria o risco de, domingo, não ter comboio de regresso a Bolonha. Em breve, andava a correr de um lado para o outro dos percursos subterrâneos atrás do binario do meu comboio, para depois chegar lá e a funcionária me dizer, com uma expressão impávida e serena, que era 1 Est, e que eu estava no 1 Ovest. Lá voltei a rir e a descer as escadas com o trolley a reboque, a recordar-me dessa mesma recordação de dezembro de 2016, em que era quase tudo impossível de encontrar à primeira.

Sentei-me numa esplanada na estração, rodeada de colunas em ferro fundido, a comer uma pizza de mozzarella, tomate seco, manjericão e, para meu azar, anchovas. A luz de outono era tão perfeita que bastou-me estar ali, a comer e a pestanejar por um quarto de hora, para me sentir renovada.

A chegada a Lucca foi igualmente tranquila, atravessámos os campos da Toscana num regional, com muita luz dourada a inundar as janelas, e, quando dei por mim, tinha lido um terço do Inquieta, da Susana Amaro Velho, desde que saí de casa esta manhã. Uma vez na estação, sintonizei o spotify para as minhas árias favoritas de Puccini e, assim que comecei a subir a rampa para a rua, começo a ver estorninhos a bailar no céu límpido do fim de tarde. De vez em quando, a vida grita-me: é aqui, é mesmo aqui que tinhas de estar.

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Percorri os poucos metros da estação de comboio até ao meu B&B e não resisti a tirar algumas fotografias pelo caminho. Há jardins com roseiras, portas naquele tom terracota da Toscana, o centro histórico é muralhado, estão a preparar uma feira de Natal, há um presépio já montado, embora por iluminar, e as lojas têm um ar vintage, com as fachadas em madeira e vitrines tipo art nouveau que a mantém ao abrigo do capitalismo desenfreado das cidades muito turísticas. A partir de amanhã estará tudo iluminado e a feira estará em pleno funcionamento. Nem uma vaca Ale-Hop à vista, nem uma Zara. Bicicletas, esplanadas, italianos a passearem os cães fashionistas, é tudo. O B&B é no topo de um antigo palazzo, com uma cama antiga, paredes antigas e uma escrivaninha que podia ser, precisamente, do tempo de Puccini. Para subir ao segundo andar há um elevador exterior, como em Siena. É para isso que servem os pátios originais destes edifícios. O prioprietário foi muito simpático e o tecto da sala onde serve os pequenos-almoços e onde está sentado ao computador, rodeado do globo terrestre e de livros, está cheio de rachaduras e de frescos. É tão bonito ver que não cedeu ao branco estéril da atualidade e que deixe que a beleza permaneça por entre as marcas do tempo... Convidou-me para tomar o pequeno-almoço amanhã (ainda não verifiquei se está incluído, ele disse que era irrelevante), falou-me do seu divórcio e de como veio de Roma viver para Lucca há vinte anos, de que tem uma filha de 17 anos e que a avó costumava lavar roupa no Tibre, em Roma. Teria ficado ali mais umas quantas horas a conversar, e falar italiano é um prazer a que nem sempre posso entregar-me.

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Antes de jantar (bruschetta di pomodoro e tordelli, a massa tradicional de Lucca) meti os auriculares e fui ate à Casa-Museu Giacomo Puccini. De salientar que estou neste momento deitada a 200 metros da casa onde nasceu aquele que é, para mim, o melhor compositor de todos os tempos. Senti arrepios quando cheguei à piazza onde está a estátua de bronze do Maestro. inaugurada em 1994 e da autoria de Vito Tongiani, para celebrar o 70.º aniversário da morte do compositor. A luz da praça incidia sobre a figura de bronze de uma forma meio fantasmagórica. Ouvia o lado trágico - emotivo, transcendente - da sua "Vieni la Sera", e senti que estava numa vida antiga, perante um homem que amava e admirava, apesar dos seus inúmeros defeitos. Compreendi o desespero de todas as mulheres que devem tê-lo amado e chorado por ele. A Piazza della Cittadela estava semiobscura, à exceção das vitrines dos cafés e restaurantes com nomes de óperas de Puccini. Vi La Bohème, Tosca, Turandot e Madame Butterfly. Senti-me profundamente emocionada e, logo atrás da estátua, a fachada da casa-museu com o aviso de que estaria encerrada até amanhã. Por sorte, graças à greve dos maquinistas, mudei a minha partida de Lucca para segunda-feira, de modo que ainda poderei visitá-la (e com direito a visita guiada especial!) no domingo, dia 24.

No regresso ao B&B, sempre a sentir que flutuava, passei por uma pintura lindíssima de Madame Butterfly na grade de uma loja fechada. Madame Butterfly a flutuar, deixando cair o punhal e elevando-se, envolta em borboletas.

Ideias para romances: 1

Aguarelas de jeito: 1, do Maestro, com água mineral porque não tinha outro recipiente que não a garrafa de água Luso lisboeta e inflacionada do aeroporto para molhar o pincel.

Árias ouvidas: Infinitas.

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