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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

07
Dez20

Os disparates sobre Auschwitz e Birkenau


celiacloureiro

Analisemos a seguinte entrevista de JRS, e nada mais (é de dia 18 de Novembro, mas apenas agora lhe cheguei após ler o parecer do autor João Pinto Coelho a seu respeito).

Link para visualização: Grande Entrevista Episódio 55 - de 18 Nov 2020 - RTP Play - RTP

Coisas que me parecem disparatadas na Grande Entrevista ao JRS sobre os seus livros em torno de Auschwitz-Birkenau:

  1. O tom: sinto que estou a assistir a uma aula, pelo que não posso contrariar o professor;
  2. Dizer que não há autores conhecidos em Portugal que aborde o tema “Holocausto” na ficção (vou considerar ficção e não jornalismo), quando há um finalista do prémio Leya, que também é prémio Leya e best-seller, e que inclusive esteve envolvido em polémicas com o governo polaco devido ao seu trabalho… Ele é jornalista, e além disso está no meio literário… ou está completamente alheio ao resto? A somar a isso, a sua ideia de escritor “conhecido” é um Nobel e um candidato a Nobel português… Não faria mais sentido comparar-se a escritores de vendas, e não te cultura literária? Um Chagas Freitas, um Raul Minh’Alma? Ou, a nível internacional, a um Dan Brown tuga?
  3. O jornalista escuta quase sem contestar, sem contrapor – à semelhança de muitos leitores que defendem o intelecto de JRS dos Santos sem pestanejarem. Malta, não acreditem nem no que a vossa mãe diz: pensem por vocês;
  4. Os erros históricos: dizer que em 1942 Himmler alegava que não podiam “matar judeus”, tinham era que os expulsar, quando é o arquiteto da “Solução Final” e a tinha em prática desde 1941, e quando no próprio ano de 1942 Auschwitz passou a funcionar como campo de extermínio, a par com outros semelhantes… Ver “Hitler’s Circle of Evil”, ou “Hitler’s Most Wanted”;
  5. A interpretação histórica e as contrariedades: por um lado diz que a realidade foi muito pior do que estamos acostumados a ouvir dizer, por outro lado dá o exemplo de alguns sobreviventes que não têm “más memórias” de Auschwitz e que queria dar voz a essas pessoas;
  6. Transportar leitores da sua realidade para a de um romance é a essência da literatura – ele não sabia?
  7. As motivações dos nazis vêm de anos de lavagem cerebral ao povo alemão, inclusive aos próprios nacionais-socialistas e às elites nazis, perpetuada inclusive na Educação – as crianças começavam desde cedo a aprender o ideal da superioridade da sua raça – consequentemente da inferioridade das restantes, em especial da hebraica, e desde muito cedo o antissemitismo funcionou como bode expiatório para unir o povo alemão contra um inimigo comum. Que novidades terá a dar-nos sobre a motivação dos nazis? Não, eles não buscavam um mundo melhor. Sim, eles buscavam um mundo melhor apenas para eles próprios e para o povo ariano que concordasse com eles;
  8. Custa-me a crer que haja sobreviventes que digam que não se sofria muito em Auschwitz, talvez digam que “não sofreram muito”, é uma experiência pessoal, conseguida por bloqueio ao ambiente que os rodeava, ou por serem jovens, ou por se considerarem sortudos porque viram outros sofrer mais. Dizer que “não se sofria muito” parece-me ofensivo e há milhares de entrevistas com sobreviventes que contam outra versão;
  9. A definição de “psicopata” do JRS parece-me desprovida de significado científico. O psicopata não é só um tipo muito mau, é um tipo que pratica o mal sem que esse lhe fira a alma. Muitos nazis eram psicopatas, sim, precisamente porque o nacional-socialismo colocou o poder nas mãos dos degenerados, nas mãos de quem odiava mais e mais alto, e por isso estava mais apto a abraçar políticas de ódio e tirava verdadeiro prazer das torturas que infligia às suas vítimas – ler Morrer Sozinho em Berlim, Hans Fallada (1947), que viveu nesse tempo na Alemanha;
  10. Porquê que os nazis fizeram o que fizeram ao povo judeu? É complexo, não é? Mas não tem grande mistério, e a resposta é de conhecimento geral. Eu explicá-lo-ia do seguinte modo, que se traduz numa interpretação diferente da do autor: 1º Porque precisavam de subir ao poder, e descobriram os benefícios da retórica e da propaganda para dominar o povo alemão – a estratégia básica era a de identificar um inimigo comum contra quem todos pudessem marchar em simultâneo. A partir daí, e tendo em conta a política de expansão de Hitler, foi necessário financiar a guerra. Quem tinha dinheiro na Alemanha estropiada pela I Guerra Mundial, endividada até à medula pelos americanos, entretanto desgraçados pelo crash da bolsa? Os judeus. O inimigo comum do povo ariano. Que fazer? Deixá-los partir com a riqueza que os nazis cobiçavam? Despojá-los dos seus bens e deixá-los partir (e com que meios o fariam)? Deixá-los ir espalhar relatos da indignidade de que tinham sido vítimas no -exterior? Unirem-se e regressarem para esmagar os nazis? Não. Apoderaram-se dos seus bens e eliminaram-nos. A caminho disso extraíram-lhes a vida por via do trabalho – obrigando-os a trabalhar para fornecer o exército nazi de munições, equipamento, combustível, etc. O extermínio esteve sempre em mesa – Himmler era o cérebro desse projeto, porém não o fariam enquanto pudessem tirar utilidade daqueles desgraçados. Porque apressaram o seu aniquilamento? Porque estavam cercados de aliados e quiseram queimar arquivo;
  11. A ideia do gás surgiu para permitir uma morte mais humana aos judeus? Acho que até o meu sobrinho de 10 anos sabe que os nazis criaram mecanismos de extermínio em massa, e que isso não foi uma consequência de não saberem o que fazer com os hebreus, mas sim o objetivo final de um projeto muito maior, o qual, claro, envolveu muitos anos e muitas mentes, e muitos recursos. Speer trabalhou para uma Auschwitz mais eficaz na eliminação de seres humanos porque os via como animais, e não porque queria poupá-los a mais sofrimento;
  12. Só se fala em câmaras de gás, mas a câmara de gás era só um dos muitos modos como eram executados os prisioneiros nazis – não apenas judeus, como inimigos políticos, prisioneiros de guerra, etc. – se o gás era para uma morte humana, então porque é que Mengele torturou humanos com experiências inimagináveis (inclusive tentando mudar-lhes a cor dos olhos, injetando-lhes pigmentos na íris?); se o gás era para uma morte humana, porquê os fuzilamentos, as torturas, as execuções sumárias, os espancamentos, etc.?

 

Para concluir: trata-se de uma interpretação perigosa daquele que é possivelmente o momento mais documentado da História. A ler com cérebro e muito cuidado, porque arriscam-se a sair da leitura mais burros.

05
Nov20

2020 - O essencial são os outros


celiacloureiro

2020 tem sido um dos anos mais conturbados da vida de toda a gente. Acontece de tudo, desde perder o emprego, até cair um frigorífico em cima do tio. Os dadaístas não teriam conseguido inventar um ano assim. Um ano em que de repente é evidente o que é essencial e o que é acessório. No fim das contas, o que se conclui é que o essencial são os outros. Mas os outros, quando autênticos, não vão a lado nenhum. 

Desde ontem que ando a remoer neste texto. Tudo começou quando a minha irmã parou diante da mesa onde estava sentada ao computador e me perguntou que champô ando a usar agora, porque o meu cabelo anda ótimo. Ora bem...

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- Em 2020 o meu champô é da marca do Pingo Doce, custa tipo 1,69€ e, ao que parece, o cabelo nunca esteve tão bom.

- Em 2020 o meu gel de banho é o carote d'Aveia, porque a psoríase tem estado péssima por causa dos excessos de gulosices;

- Em 2020 a psoríase esteve ótima, porque fiz imensas semanas de praia;

- 2020 foi o ano que mais fui à praia na vida;

- Em 2020 a Relógio d'Água publicou E Tudo o Vento Levou;

- 2020 foi o ano em que um contrato meu acabou sem ser renovado - o Turismo está hibernado - e descobri o que é ser desempregada;

- 2020 levou-me à inscrição no IEFP, e a sentir pela primeira vez o que é estar sentado em casa com o Estado a chover-nos dinheiro em cima;

- Em 2020 fiz imenso yoga;

- Em 2020 fiquei completamente sedentária e nunca tive dores de costas tão más;

- Em 2020, as dores de costas deram-me as piores enxaquecas da minha vida;

- Em 2020 tenho 30 anos e quero fazer um piercing no nariz - será que faço?

- Em 2020 cortei imenso o cabelo - que se lixe, não passa disso mesmo;

- Em 2020 não fiz a ecografia mamária semestral;

- Em 2020 fiz o rastreio do cancro do colo do útero e fui chamada num ápice para uma consulta que foi agora adiada por tempo indeterminado;

- Em 2020 cancelei o seguro de saúde e marquei uma consulta no público, à qual compareci uma semana depois;

- Em 2020 devia largar os anti-depressivos, mas vou continuar;

- Em 2020 li Guerra e Paz e li imensos outros livros;

- Em 2020 estive praticamente um mês de férias na aldeia da minha avó, a gozar aquilo que a vida tem de melhor: tempo;

- Em 2020 aventurei-me em novos troços do Dão a nado;

- Em 2020 colhi morangos;

- Em 2020 conheci um cabrito chamado Tiago;

- Em 2020 conheci imensa gente boa, gente nova, conheci as  suas histórias, aprofundei relações, recebi imensos presentes e dei outros tantos (o bacalhau com natas da Tété, os bombons, o bolinho de aniversário da Tété, mais bombons, o paninho de cozinha bordado em redor);

- Em 2020 comprei uma Bimby - depois de anos a dizer que aquilo é para quem não sabe cozinhar, comprovei que mesmo alguém que pouco saiba de cozinha, como eu, pode virar um chef de culinária;

- Em 2020 converti-me às marcas brancas e, com elas, aprendi a gerir uma vida digna e com o mesmo nível de qualidade anterior com quase metade do meu salário de 2019;

- Em 2020 acertei os contratos de serviços para o essencial, apaguei mais vezes a luz e fechei mais vezes a torneira enquanto lavava os dentes;

- Em 2020 comecei a comprar apenas roupa em segunda mão, e a essencial;

- Em 2020 tive mais tempo para reciclar e para plantar salsa e manjericão (vão florescer?);

- Em 2020 comprei uma hera e outras plantas para alegrar a casa;

- Em 2020 ajudei uma gatinha bebé, esfomeada, a ser salva de uma vida de parideira na aldeia e a ir viver com conforto na capital;

- Em 2020 fui para aí 6 vezes a um centro comercial (definitivamente menos de 10 vezes) e não tive saudades nenhumas;

- Em 2020 comi menos em restaurantes e mais em casa;

- Em 2020 entreguei o carro e percebi que os Ubers, Bolts e MTS desta vida funcionam às mil maravilhas;

- Em 2020 o meu tio de 54 anos, desempregado crónico, recomeçou a vida do zero - com alguma roupa e um emprego novo, está de pé e provou que podemos recomeçar em qualquer altura, basta estar-se vivo;

- Em 2020 o meu avô morreu e ainda não fui ao cemitério;

- Em 2020 a Rafaela começou a andar e a passar as mãos em todas as superfícies, e ando atrás dela a dizer "não, está porco" ou "não, pode ter covid";

- Em 2020 vi os portugueses nos transportes todos de máscara, e nem a minha imaginação tinha previsto tal coisa;

- Em 2020 fechei para sempre a porta da casa onde cresci, resgatando dela apenas a casa de bonecas de madeira que o meu pai fez com as próprias mãos;

- Em 2020 aprendi a desapegar-me ainda mais de consumismo, de marcas e de objetos;

- Em 2020 fiz mais companhia às gatas;

- Em 2020 descobri que os vizinhos com menos dinheiro, ou que perderam o emprego, são os que pagam a senhora da limpeza do prédio (minha mãe) com mais celeridade;

- Em 2020 as minhas melhores amigas instalaram-se a preceito nas suas novas casinhas;

- Em 2020 uma grande amiga licenciou-se;

- Em 2020 o meu tio levou com um frigorífico no peito no trabalho - rimos imenso, quando regressou do Hospital a dizer que queria ir trabalhar no dia seguinte;

- Em 2020 renegociei o contrato com a NOS e os tipos melhoraram os serviços e baixaram a prestação;

- Em 2020 fui a imensas entrevistas de emprego para entender duas coisas sobre o mundo do trabalho: a primeira é que não temos de ficar cingidos a uma área específica, e que temos mil e um outros contributos a dar noutras áreas, a outra é que os pattrões portugueses pagam uma miséria aos empregados, e muitos são autênticos sanguessugas. Porque é que os funcionários aceitam? Outros patrões aproveitaram o covid para fazer os empregados trabalharem full-time em layoff, quando continuavam a faturar normalmente. Descobri um caso em que a funcionária trabalha 6 dias por semana (48 horas) por um salário mínimo sem subsídios ou outros apoios, pago em mãos, e outro em que o funcionário trabalha 40 horas por semana, pelo salário mínimo, há 18 meses e sem férias nem subsídios. Ainda lhe disseram (é estrangeiro) que em Portugal pode ser despedido por faltar uma tarde para ir ao médico, ainda que traga justificação. E essas pessoas são donas de grandes grupos de pastelarias ou de restaurantes da moda, desses que vemos os amigos postarem fotos com hashtag no instagram em torno de salas bonitas e trendy;

- Em 2020 decidi que não quero ter filhos;

- Em 2020 quis ter filhos porque pareceu-me a altura ideal;

- Em 2020 percebi que vivo numa cidade ótima, numa localização ótima e com conforto, e que ia ficar fechada nesse refúgio com pessoas que amo, o tempo que fosse;

- Em 2020 conheci melhor o meu sobrinho durante as férias, e o amor multiplicou-se;

- Em 2020 comi Pho pela primeira vez (o desejo de um dia ir ao Vietname);

- Em 2020 voltei a cozinhar goulash (a viagem à Hungria e a vida que se tem gozado desse modo);

- Em 2020 comecei a cozinhar para o meu tio, cujos colegas de trabalho pedem para provar o Goulash e a sopa vietnamita que leva para o trabalho (chupem, o covid não deixa essas proximidades!);

- Em 2020 comecei a ir ao supermercado da minha rua e à mercearia da minha rua (esta semana, quando uma velhota levou o meu saco, foi-me assegurado que o devolveria, e assim foi) - vivo numa aldeia, embora cheia de serviços;

- Em 2020 comecei a comprar livros em segunda mão e agora custa-me muito comprá-los novos ao PVP costumeiro ou mesmo com 10% de desconto;

- Em 2020 fui a uma festa: a Feira do Livro;

- Em 2020 retomei relações antigas em torno de mesas intimistas, na casa dos amigos, com o cheiro deles e os objetos deles;

- Em 2020 percebi que estamos todos mesmo muito ligados uns aos outros;

- Em 2020 nasceram bebés sozinhos com as suas mães, e morreram pessoas sozinhas com os seus médicos;

- Em 2020 tenho tempo;

- Em 2020 perdi imenso peso;

- Em 2020 ganhei imenso peso;

- Em 2020 não fiz a limpeza de dentes semestral;

- Em 2020 ensinei a Rafaela a lavar os dentes;

- Em 2020 tentei aprender russo (agora sei ler em russo, embora não saiba o que as palavras significam);

- Em 2020 mantive contato com amigos de outras partes do mundo;

- Em 2020 ainda não sei se os amigos vão poder vir para soprar as velas;

- Em 2020 ainda não sei se vou poder receber a família para o Natal;

- Em 2020 ainda não sei como convidar o casal nepalês meu amigo para o Natal;

- Em 2020 o meu arroz doce é finalmente bom (Bimby linda);

- Em 2020 desenvolvi a ideia para um projeto em torno de livros;

- Em 2020 aprendi a amar de modo saudável;

- Em 2020 aprendi que o que vale no amor é aquele momento em que estamos com a cabeça no ombro da outra pessoa e sentimos o peito estremecer-lhe de gargalhadas por causa de alguma coisa que dissémos;

- Em 2020 o amor é universal;

- Em 2020 a internet mantém-nos todos ligados;

- Em 2020 a futilidade e a imagem perderam relevância - e os influencers afinal não servem para nada.

E podia continuar para sempre.

Mas fico-me por aqui, porque, e de modos inespesperados, e às vezes arrepiantes, está a ser um ano... wow. Inesquecível.

 

 

28
Set20

Carta às mulheres que continuam com homens execráveis


celiacloureiro

Isto não é um apelo feminista: é um apelo à integridade física e psicológica de um estrato social que são as mulheres, e é dirigido às que vivem relações tóxicas com homens que deviam estar internados em alas psiquiátricas, e que ameaçavam levá-las a elas à loucura – ou à morgue.

Há vários argumentos para uma mulher não deixar um homem execrável: um deles é que é pai dos seus filhos, e não quer que os filhos cresçam sem pai. Aqui talvez devamos atentar na definição de pai. Um pai não é o tipo que entrega uns trocos para as compras da casa, nem quem paga metade da creche, nem quem oferece um brinquedo aos miúdos no Natal. Há tipos que são pais sem um tostão no bolso, mas que tiram prazer da companhia dos filhos, que agem com cada pensamento direcionado ao melhor das crianças. Depois há tipos para quem estar com os filhos é um frete, um cansaço evitável, um aborrecimento de fim-de-semana. Os filhos como fardo, e o pretenso pai a destruir um fim-de-semana de amigos e copos por causa dos putos.

Para mim um pai é quem ama os filhos, quem os põe à frente de si próprio, quem canaliza para eles (e para o seu bem-estar) os recursos necessários para que possam crescer saudáveis e felizes. E atenção que os miúdos não precisam de muito para serem felizes.

Esclarecida a definição de pai, uma mulher, sobretudo se uma que trabalha, não precisa de aguentar uma relação abusiva por causa dos filhos – pelo contrário, se o pai maltrata a mãe, física ou psicologicamente, se lhe destrói a paz e a autoconfiança – priva-a da força necessária para cuidar das crianças. E as crianças, acreditem, não querem pais que maltratem as mães. Por muito que esses pais tenham os bolsos cheios de rebuçados flocos de neve.

Quando o homem aterroriza a mulher com ameaças, com mensagens que talvez pudessem encontrar até um enquadramento penal, com ofensas, com boçalidades que traduzem – resumidamente – que ele na realidade é uma besta, a mulher deve fechar a porta. Porque é que algumas mulheres são maltratadas – humilhadas, espezinhadas – por este tipo de homem doente, e não fecham a porta? Algumas não conseguem fazê-lo – porque ele as ameaça e persegue, por exemplo. Mas outros têm um bocadinho de respeito às autoridades e, sobretudo, querem preservar a imagem de santo perante a família e os amigos (em suma: esconder que são, afinal, a tal besta), e até as deixariam ir em paz. Isto é, durante alguns dias, ou semanas, podem até mentir, dar a entender que daqui por diante vão ser melhores. A mulher tem é de compreender que esses homens não têm melhor – aquilo são eles a nu, e depois de mostrarem a sua verdadeira natureza não há como varrê-la para detrás da máscara do cordeirinho de início de namoro.

E algumas mulheres deixam mais depressa um homem que as traia do que um homem que as maltrate. Porquê?

Uma relação tóxica destrói a mulher, destrói a família, destrói a conceção de família e relacionamento saudável para as crianças. Suga a alegria, a espontaneidade, os momentos bons de que as vidas devem ser férteis. Torna-se uma relação de interdependência que os destrói a ambos – um porque a alma apodrece ao fazer mal, outro porque a sensibilidade se estilhaça ao ser vítima de agressões gratuitas de alguém a quem, a todo o momento, se procura agradar. Espero que essas mulheres encontrem forças para se livrarem dos homens execráveis: acordem um dia e entendam que são mais, que merecem mais, e que o problema é que esses homens não sabem amar, não saber pôr-se no lugar dos outros, não querem construir nada nem sequer providenciar vidas melhores aos filhos que dão diligentemente andam por aí a fazer. Atenção: claro que têm o seu lado charmoso (manipulador), ou são bonitos, ou ótimos a fingir-se de arrependidos. Não caiam em nenhuma dessas tretas.

O feminismo fundamentalista dos anos 60 e 70 apregoava mulheres de pêlo no sovaco e que não precisavam de homens para alcançar sucesso. O feminismo de hoje em dia, mais consciente, sabe que o que importa é a felicidade da mulher. Que a mulher se cumpra psicologicamente, sexualmente, socialmente, e também, se o desejar, na maternidade e nos relacionamentos amorosos. O que não entendo é como é que algumas dessas mulheres de hoje, que sofrem nas mãos de homens abjetos, ainda não entenderam a verdade absoluta por detrás do famoso “antes só do que mal-acompanhada”.

Libertem-se! Os vossos pais não vos criaram para isto. Ou, se os vossos pais também viviam relações doentes, como não registaram o exemplo como um a não repetir? Libertem-se! Os vossos filhos não têm de levar com os danos colaterais da vossa relação apodrecida. Libertem-se! Merecem mais, merecem melhor. Nunca se rebaixem. À primeira ofensa, partam para outra. Há homens que avançam sobre a boa-vontade de uma mulher até a transformarem num caco, num ser humano que se auto-anula, num trapo velho. Libertem-se! Estamos convosco.

19
Set20

O que 4 dias de cuidado na alimentação e hidratação extra podem ter feito pela minha psoríase...


celiacloureiro

Tenho recebido várias mensagens privadas de pessoas que conhecem alguém que tem psoríase, e que por algum motivo não se parece muito com a minha, ou é exatamente igual à minha. A psoríase é uma doença muito complexa que pode causar vários tipos de lesão diferentes. Há quem a tenha por placas grandes e avermelhadas (como que continentes), e quem a tenha em pintinhas (como que ilhéus), e há quem a tenha apenas localizada e muito ressequida apenas nos cotovelos, joelhos e couro cabeludo. Eu, por exemplo, nunca tive lesões no couro cabeludo, no rosto nem nos joelhos. A minha psoríase começou com uma medalhinha no centro do peito, que foi crescendo e que não desaparecia de modo algum.

A psoríase é uma doença autoimune (o corpo combate-se a si próprio), crónica e não contagiosa, possivelmente despoletada por stress ou outros fatores psicológicos. No Brasil existem cerca de 5 milhões de pessoas com essa doença, e é encarada como algo que, não comprometendo a capacidade de trabalho do paciente, pode prejudicar a sua contratação e permanência num posto de emprego devido a discriminação quanto ao aspeto das lesões ou medo de contágio. Por esse motivo, a minha pesquisa sugeriu que há muito apoio do estado nessa doença, inclusive financiando medicamentos biológicos. O número de doentes em Portugal é de cerca de 250 000 (https://psoportugal.pt/), e o estado também garante alguns benefícios aos portadores da doença. Em primeiro lugar, existe uma “portaria” para doentes com psoríase, que garante comparticipação extra nos medicamentos com receita médica indicados para a doença. Isto porque muitos corticoides e pomadas/loções podem ser também indicadas para outras doenças que não apenas esta. O estado também financia tratamentos como fototerapia e medicamentos biológicos, desde que o paciente se disponibilize para acompanhamento próximo e para o camadão de exames de rotina a realizar para seguir essas terapêuticas. A minha dermatologista (a espetacular Ana Ferreira no Hospital dos Capuchos), disse-me que há imensos doentes de psoríase que não fazem tratamento. Não me espanta… a dada altura também me aborreci das análises, raio-x e testes à tuberculose a cada três ou quatro meses. Durante anos tomei Enbrel, um imunossupressor na altura com o custo de c. 1360,00€/caixa (continha 4 injeções de 25ml, que eu devia injetar duas vezes por semana no braço, barriga ou coxas). Era-me entregue gratuitamente na farmácia do hospital, e via outros doentes crónicos a levantarem os seus medicamentos com o mesmo ar resignado.

A psoríase pode evoluir para uma série de outras complicações, entre elas a artrite reumatoide, que é uma doença bastante debilitante porque ataca as articulações e dá dores atrozes. Tenho uma familiar que sofre dessa doença e tem fases em que se deixa ficar no sofá até que alguém surja para poder auxilia-la a levantar-se. Por todos estes motivos, mas também pela carga psicológica que a psoríase acarreta para o doente, entende-se que não é uma doença que mata, mas é uma autoimune que mói bastante, e a todos os níveis.

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Existem vários fatores que causam irritação na pele (diretamente) ou no organismo do doente que tem psoríase, como sejam:

- Tabaco;

- Álcool;

- Stress;

- Fritos;

- Açúcar;

- Glúten;

- Lactose (no meu caso);

- Alimentos processados em geral;

- Tecidos artificiais como nylon ou poliéster;

- Banhos longos e com água quente (a psoríase não gosta muito de água e muito menos quente, que pode irritar ainda mais a pele).

Alimentos passíveis de causar inflamação no corpo também despoletam crises de psoríase, porque o corpo intensifica o combate a esse “invasor”, e o resultado da luta é visível na escamação e vermelhidão da pele. Alimentos picantes, por exemplo, podem ter este efeito.

O combate à psoríase começa por dentro, o que pode ser mais difícil e bem mais exigente do que passar um creme com cortisona sobre as lesões (acaba por causar habituação e deixar de funcionar), injetarmo-nos numa base regular, ou tomar comprimidos que atuam sobre o organismo e as manchinhas, mas que custam a saúde do estômago (quando penso no sabor a borracha dos comprimidos que tomei, ainda sinto pontadas no estômago). Para se ter uma vida saudável apesar da doença, há que trabalhar a paz de espírito e fugir ao stress, trabalhar o corpo (tento fazer yoga, porque a qualquer instante a doença pode evoluir para aquela outra que nos come as articulações), cuidar da alimentação e manter um ritual de hidratação (chato) adequado.

Decidi escrever estas linhas para alertar os outros doentes de como isto é, acima de tudo, uma jornada pessoal. Há que entender o que irrita especialmente o nosso organismo, o que despoleta a psoríase, e ajudá-la com rotinas básicas (evitar os alimentos prejudiciais, evitar vícios como tabaco e álcool, hidratar a pele, ser rápido nos duches, apanhar sol ou suplementos de vitamina D sempre que possível – e indicado pelo médico). Como disse a minha dermatologista, “Eu nunca lhe disse para ir à praia, só lhe disse que precisa de apanhar sol”. De facto, este ano deitei-me a ler na varanda durante várias manhãs e os resultados foram quase imediatos. Fazia 30 minutos exatos de exposição, e senti-me muito melhor. As lesões perdem relevo e a pele começa a cicatrizar. Mas não chegou.

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Há muitos anos que não faço tratamento para a psoríase (desde 2015). Também não usava tratamentos tópicos nem tomava comprimidos. Simplesmente hidratava a pele com o creme de ureia do Istituto Español (1,99€ em primor.eu) e usava o gel de banho que melhor funcionou com a minha pele ao longo destes anos todos, D’Aveia PS (Pele Seca, Emulsão de Limpeza – c. 23,00€). Este último é de uma marca portuguesa, cheira bem, acalma muito a pele e faz imensa espuma. Mesmo com o duche rápido diário, acaba por durar uns 2 meses, se não mais. Basta umas gotinhas para uma pessoa com 1,50m como eu. Apenas estas três coisinhas funcionaram durante anos, e desconfio que a somar a isso haveria talvez o rescaldo de vários anos das injeções de Enbrel, e ainda o facto de ter mantido uma alimentação quase vegetariana durante mais de dois anos (significa que comia leguminosas e verdes, não consumia carnes vermelhas, cozinhava peixe e carnes brancas em receitas que valorizavam os vegetais). Entretanto, comecei a tomar antidepressivos e julguei que a própria tranquilidade que advém desse tipo de medicamento estava a contribuir para a quase não manifestação da doença.

O que mudou este ano? Além de retomar as carnes vermelhas, as batatas fritas, o leite comum (durante anos também só tomei bebidas vegetais), os iogurtes, o pão, bolachas, doces com fartura, também deve ter havido alguma angústia extra devido a esta situação de pandemia mundial. E, pela primeira vez em anos, senti a doença propagar-se para zonas do corpo onde nunca a tinha tido de todo (como por exemplo as costas da mão).

Há quatro dias postei uma foto da minha perna completamente tomada de manchinhas pequeninas, muito dispersas, mas vermelhinhas (ativas e em expansão). Nesse dia decidi recomeçar a minha dieta. Rejeitei o pão, os fritos, tentei evitar glúten (mais arroz e menos massas, que adoro), comprei um chocolate negro (apesar de o cacau, o café e o chá também irritarem o doente de psoríase, o chocolate negro sempre tem menos açúcar que é outro fator problemático), ignorei as Oreos que tinha no armário e comprei bolachas de água e sal para comer com queijo fresco. Comprei fruta (figos, manga, ameixas, amêndoas), verduras (muita sopa comi esta semana), salmão (as gorduras boas ajudam) e entupi-me de água e sumos naturais (maçã, manga e ananás). A água também é importante porque convém mantermos a pele hidratada… Só que eu bebo pouquíssima água, tem de ser pensado isso de beber água. Fui ao médico (consegui uma consulta super rápido no médico do meu posto) e pedi um creme para aplicação local que ajudasse. De salientar que só comecei a pôr o creme nos braços ontem, e que nem sequer toquei nas pernas com ele porque precisava de entender o papel da dieta nisto.

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Ah, também entrou em cena uma loção hidratante de farmácia com ureia a 10% (quando se tem psoríase, os hidratantes diários devem ter pelo menos 10% desse componente, segundo me explicou a minha dermatologista. Estes hidratantes são cremes comuns que podem ser comprados nas farmácias e parafarmácias sem receita médica. O meu é da ISDIN, Ureadin, 400ml custou c. 17,00€. Não estou a ser generosa na utilização e tem sido o meu aliado nos últimos quatro dias.

 

Resumindo, em quatro dias:

- Mudei a alimentação (derrapei ao beber 1 café, comer 2 cookies, 1 refeição com couscous, 1 pão e 1 pastel de nata – os erros aqui são a cafeína, o açúcar, o glúten), mas de resto tratei-me com carnes magras, grelhados, alimentos anti-inflamatórios (alho, legumes de verdura escura, frutos secos, tomate – comprei biológico e sabe muito melhor, e o salmão, a somar a muita água.

- Passei a dedicar-me mais ao ritual de hidratação diário (D'Aveia Emulsão de Limpeza PS como gel de banho e ISDIN, Ureadin 10% Ureia como loção hidratante);

- Fui ao médico e pedi uma pomada que ajude a controlar as lesões - saí de lá com uma Betnovate que custou uns módicos 2,51€ (sem acionar a portaria de doente de psoríase), mas creio que seja necessário receita que comecei ontem a aplicar nos braços;

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Passei um bocadinho de fome de açúcar, mas estou aqui a tentar decifrar esta feitiçaria que aconteceu na minha pele. Passaram quatro dias e as lesões já secaram (as das pernas sem ajuda da pomada, que só apliquei nos braços)…

Por isso, façam a experiência. Não descurem o papel da alimentação no controlo desta doença tão complexa. Agora, para comemorar, vou comer uma pratada de massa e mais logo volto a ser santa.

De qualquer modo, para melhor aconselhamento, procurem um dermatologista. 

31
Ago20

A questão da habitação digna


celiacloureiro

Quando o meu avô morreu em Abril, o contrato de arrendamento da casinha onde sempre viveu com os filhos expirou também. Era um contrato celebrado em 1975, e a senhoria há muito que torcia pela morte do meu avô para poder recuperar a casa. Tudo bem, é património que lhe pertence. O tio sairá, até Outubro. A odisseia de procurar casa é que tem sido muito amarga, e tem-me levado a muitas reflexões.

Em primeiro lugar, o meu tio tem 54 anos, a quarta classe, um emprego estável (embora apenas desde Maio, porque antes disso era cuidador do avô), e um salário diria que até bem simpático. Resumindo, o salário dele equivale ao que eu recebia ao fim de uns 5 anos a fazer uso da minha Licenciatura em Turismo. Não me parece nada mau para um homem nas suas circunstâncias, e é um emprego numa junta de freguesia onde têm manifestado apreciação pelo seu trabalho e intenções de o manter.

 

Dir-se-ia que tem as ferramentas certas para viver uma vida digna, com emprego digno e habitação digna, mas não. Não porque um T1 em Almada custa, no mínimo, uns 500,00€. Além disso, pedem referências do além, IRS, fiador, e sei lá mais o quê. Eu compreendo, porque ao longo dos últimos anos houve imenso investimento em imobiliário, as casas compraram-se, remodelaram-se e estão no mercado de arrendamento que reflete todos esses gastos, os impostos e ainda o lucro (mais ou menos) pretendido com o negócio. Mas a maioria dos portugueses – creio eu -, não tem como viver nessas condições. Há um T0 a arrendar em Almada Velha (onde os carros mal circulam e a cada duas casas há uma em ruínas cheia de bicharada) a 850,00€, "totalmente remodelado". Uff!

O mais chocante para mim tem sido a questão dos quartos alugados. Toda a gente aluga um quarto, a preços astronómicos, sem recibo, a exigir todo o tipo de papeladas, e nas circunstâncias mais absurdas.

Vi um “excelente quarto” a 500,00€ em Almada, e fiquei estupefacta. Até “referências” da pessoa eram exigidas. Vi quartos de toda a espécie, inclusive quartos partilhados – quem não adoraria pagar 250,00€ por uma cama de beliche e dividir o quarto com outras três pessoas? Hoje vi um quarto a 190,00€, mas dizia “partilhado”. Quando fui ver as fotografias, cheguei à conclusão que, se a pessoa tiver mau dormir, acaba na cama com o parceiro de indignidade imposta.

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Falei ao telefone com inúmeras pessoas, todas elas com quartos para alugar em casas onde não habitam, e que desejam inquilinos sem animais, que não fumem, que tenham trabalho fixo ou que sejam estudantes, de preferência jovens e mulheres. Há um quarto a duas ruas de mim por 230,00€, pareceu-me o ideal porque o tio sempre viveu aqui. O senhor nem se dignou a responder-me. Outro, com um quarto na mesma localização a 250,00€, diz que só quer aceitar estudantes, prefere esperar. “É outro tipo de vida, sabe?”. É, acho que sei. E o que resta para um homem de 54 anos, com um salário razoável para este país de gorjetas, sem habitação própria?

Há dois dias fui visitar um sítio onde ninguém merece viver, e fiquei horrorizada. Trata-se de um bairro social ainda no concelho de Almada, mas noutra freguesia. Está a quatro ou cinco paragens de metro da minha porta (centro de Almada) e é um mundo à parte. A senhora era muito simpática, tinha uma voz doce e é conhecida de uma amiga da minha mãe. Enfim, não estava a lidar com uma estranha. Falaram em 180,00€ para o quarto, com tudo incluído, porque se tratava de uma casa num bairro social. Perdoem-me por, apenas aos 30 anos, descobrir o que é um bairro social.

A minha conclusão é que, quando se trata as pessoas como animais, algumas delas transformam-se mesmo em animais. Por favor, não interpretem mal a minha frase. Eu dirigi-me a casa de uma angolana com dificuldades que teve direito a habitação social, que trabalha e que já passou por muito. Eu é que nunca podia sonhar que o Estado atirasse pessoas para aquela realidade.

Por toda a parte se via muçulmanos, negros, pessoas de etnia cigana. Um mundo à parte, como vos digo. Não tenho absolutamente nada contra aquelas pessoas, e o que por vezes as possa tornar degenerados não é a sua cor, etnia ou religião, mas a segregação a que os vi ali expostos. Tive algum medo – porque senti que estava em terra de sobreviventes, e a sobrevivência por vezes toma diversas caras. Eu morei a algumas ruas dali, quando tinha 18 anos. E, uma vez mais, era outro mundo. Era uma área tranquila, com um jardim público muito sujo, isso é verdade, e com um supermercado frequentado por toda essa multiculturalidade de pessoas, mas até tinha um espírito bairrista. Dávamo-nos todos bem, a minha mãe é negra e tem amigos de todas as cores e etnias. Éramos uma parte tranquila daquela freguesia, por muito que as histórias más nos chegassem de perto.

Naquele bairro social, os prédios não têm porta. Pensar-se-ia que, se os prédios precisam de porta, ali precisam mais do que em qualquer outro lado. Havia lixo cá em baixo – pó, penas, plástico enrolado, garrafas, latas. Dentro do prédio, não fora. As paredes, outrora brancas, estavam todas amareladas, escavacadas, grafitadas. Vi mensagens de cariz xenófobo, racista, preconceituoso em geral nas portas, nas paredes, nas caixas de luz e gás. Por toda a parte graffitis, barulho, roupa estendida, tinta lascada, sujidade em geral. Subi as escadas (um prédio de uns seis andares sem elevador) de coração nas mãos. Como é possível que a senhora simpática viva ali? Como é possível que o Estado a tenha mandado para ali?

A senhora simpática abriu-me a porta. A casa cheirava bem, era ampla. Mas pobre, tão pobre! Tão maltratada… Cheia de remendos… levou-me ao quarto e eu senti que estava dentro de um filme. Daqueles sobre as misérias da América do Sul, ou daqueles sobre a Europa durante os anos de barbárie nazi. Uma miséria indescritível. O chão de tacos, irregulares, estava cheio de manchas e não vê cera há décadas. O roupeiro era barato e desengonçado. A cama era daquelas de pinho barato, mas já com história, e tão estreita que um homem adulto mal caberia lá. Um lençol preso por molas coloridas fazia as vezes de cortinado. A televisão (minúscula e antiga) estava pousada sobre dois tocos de madeira. A cama estava primorosamente feita, com lençóis limpos, e eu sentei-me nela acompanhada pela senhora simpática. A senhora simpática é muito bonita, muito doce de modos, muito cuidada. Unhas e cabelo perfeitos, e eu olhava-a recortada contra a parede atrás, suja, descascada, crivada de buracos, torta. Ela disse-me que queria pintar o quarto, queria torná-lo mais confortável. Aceitou tudo o que lhe perguntei: “o tio poderia pôr um pequeno frigorífico no quarto?”. Foi um amor, e comunicou-me que o preço não era 180,00€, que a amiga se tinha precipitado. O preço era 250,00€ mas podia aceitar um pouco menos. 230, talvez? Ficou 230,00€.

Ficou 230,00€ mas, ao sair daquela casa, ao chegar cá fora para tentar respirar, ao deparar-me de novo com aquela rua, aquele lixo, aquela fachada em ruínas, as pessoas à janela, tantos rostos diferentes, todos desconfiados – todos uma ameaça para mim – lamentei, lamentei que tenha sentido desse modo. Lamentei, acima de tudo, que aquela mulher esteja a viver de uma habitação que eu e o meu tio pagamos com os nossos descontos, e que esteja a alugar um quarto a um valor talvez 500% acima daquilo que paga de renda num sítio onde ninguém – absolutamente ninguém – muito menos crianças! – deveria ter de viver.

Vim para casa a sentir-me horrível. Como recusar o quarto sem a ofender? Como dizer-lhe que o meu tio não pode morar num sítio desses? Que uma pessoa que toda a vida viveu numa rua limpa em Almada, com hortas e jardins cheios de flores, não consegue viver naquele sítio onde tantas vezes nem a língua que é falada se compreende? Como dizer-lhe que, na minha sensibilidade, acho que daria um tiro na cabeça ao fim de uma semana ali? Que, quando o quarto me fosse insuportável, os barulhos insuportáveis, a sujidade insuportável, não teria como fugir para a rua para respirar ar puro, porque na rua há pessoas a vender droga? Na rua há pessoas a assaltar outras (a minha amiga e a sua mãe foram assaltadas ali, embora vivessem na parte “segura” da mesma freguesia). Um ambiente assim leva ao desespero, ao crime, ao suicídio, ao abandono escolar, aos antidepressivos, aos homens a tornarem-se bestas para sobreviver. Porquê? Porquê que se permite que alguém viva assim?

E o meu tio, que será feito dele neste contexto de ganância, de irrealidade, de miséria anunciada para todos? Encontrará um quarto digno? Irá viver para debaixo da ponte? Portugal, para onde vais assim tão desgovernado?

10
Ago20

O velho e o cão


celiacloureiro

Enquanto lia "A Morte de um Apicultor", que não é um livro que me tenha apaixonado por aí além, vieram-me vários pensamentos à ideia. Quando o livro é vago nas mensagens, o cérebro põe-se a divagar para procurar significados mais profundos naquilo que vê impresso. Não me saía uma imagem da idade: a do senhor A., tolhido pelo Parkinson, no pátio da sua casa, com o focinho da cadela entre as mãos. Pedia-lhe perdão por não ter podido passeá-la nesse dia, e pedia-lhe também perdão por saber que no dia seguinte estaria ausente e também não poderia levá-la a esticar as pernas. A Luna, como qualquer cão fiel, sacudiu a cauda e olhou-o com adoração. Mas a cena ficou-me: o senhor A. desiquilibra-se constantemente, e sente necessidade de pedir perdão ao cão por não poder passeá-lo. Eu pensava nisso, e também tentava discernir o nome das árvores ao meu redor, que começaram a derramar a folhagem sobre o Dão. Passei o dia com os pés descalços sobre os blocos de granito, a equilibrar-me no topo da levada e a atirar seixos lisos sobre a superfície das águas. O máximo que consegui foram quatro pulos antes de a pedra se afundar. Há tanta paz aqui... Porém, a data de regresso está estipulada. Com ela, a necessidade de procurar rumos mais definitivos. 

Fomos passear a Luna. Levámo-la pela estrada principal, passámos por roseiras, pereiras, figueiras, laranjeiras, limoeiros, macieiras. Há árvores de tudo nesta terra, uma riqueza nunca vista. O meu sobrinho diz que, quando crescer, quer uma casa com horta para não ter de comprar legumes nem fruta. E, a guardá-la, um husky, um pitbull e um rottweiler. Pergunta-me qual é o cão mais inteligente, e eu digo-lhe que é o rafeiro. 

Tento ensinar-lhe a ser bom, que força não é sinónimo de brusquidão. Ele é um miúdo sensível, que está quase (quase) a abandonar a infância. Em breve vai inibir-se perante a ideia de se ajoelhar para acariciar um cão. Em breve os sentimentos vão ficar ainda mais fechados dentro dele, e os motivos das suas lágrimas, dos seus desgostos, ficarão encerrados nele sem que ninguém lhes tenha acesso.

Hoje, no café, perguntaram-me "Trinta e quantos?".

Caramba, será que, de repente, já aparento ter os 30?

Tempo maldito, sempre a voar, sempre a mastigar-nos.

09
Ago20

As amoras


celiacloureiro

A casa tem três andares. Estava deitada no último, sobre a cama de ferro. Duas das três janelas estão abertas e as cortinas quase translúcidas filtram o sol do fim de tarde. No segundo andar, alguém tomava duche e os vapores chegavam-me perfumados. Procurava a poesia que havia em mim: o jeito de observar as coisas ao meu redor, de me importar o suficiente para registá-las. Mas estou sempre cansada. Continuo a estar sempre cansada e a dormir demasiado. Pouco depois de acordar, já tinha sono. Pouco depois de almoço, tinha sono de novo. E, assim que regressei do rio, vi-me de novo sonolenta. Dormi tão bem, esta noite, que nem ouvi as crianças brincarem a jogos de mímica até tarde. Dizem que se riram, debitaram detalhes da brincadeira, mas eu não ouvi nada.

Quando vim dormir a minha sesta, disseram “vamos às amoras”, e partiram. Usaram uns chapéus de pescador que encontraram ao lado da porta, percorreram toda a aldeia até ao cemitério e debruçaram-se da ribanceira escudada de arbustos de amoras. Colheram-nas na palma das mãos, comeram-nas quentes e por lavar. Estão felizes. O mundo está a abrir-se para eles. Ontem, o R. escondeu-se de um menino francês atrás de umas bilhas de gás. O L. procurou-o para trás e para diante na rua, sem o encontrar. O francês perguntou algo ao pai, quando os dois foram apresentados. Depois disse-nos “esconde”. É a única palavra que sabe dizer em português, mas bastou.

A A. esfolou o joelho no rio, hoje. A dada altura, ela competia em velocidade, braçada após braçada, com uma menina aqui das redondezas. O R. juntava-se a dois meninos e procuravam seixos na beira da água. Sentada num bloco de granito, com o Dão aos pés, lia “A Morte de um Apicultor”, meio desligada do enredo, e meio deslumbrada pela beleza de algumas asserções.

Estou a gostar muito daqui. É a primeira vez que me vejo a sós com a gente da terra. Aprende-se imenso com os mais velhos. O senhor A., tolhido pelo Parkinson, percorre quilómetros todos os dias apoiado no seu cajado. Não o faz por necessidade: fá-lo porque lhe é intolerável estar parado. Conhece a minha cidade como a palma da mão, mas já não a pisa desde os anos 70. Significa que veio o metro de superfície e lhe alterou o rosto, mas não as nomenclaturas. O senhor A. contou que, em 1973, era cabo e foi instruído a trazer um prisioneiro de Viseu à Trafaria. O prisioneiro já tinha fugido várias vezes da cadeia em Viseu, era jovem e esperto. Na companhia de dois guardas, e de um motorista, o senhor A. viu-se na incumbência de o levar para o novo cárcere, sob ameaça de punição caso o deixasse fugir. As ordens foram as de o abater, caso tentasse fugir. O senhor A. não recebeu sequer um par de algemas para o manter imóvel, então, este senhor doce que só queria saúde para gozar a velhice, disse-nos como resolveu o quebra-cabeças: tirou os botões das calças do prisioneiro, tirou-lhe o cinto para garantir que, se tentasse fugir, as calças haviam de o atrapalhar. Por último, carregou a própria arma e mandou os outros guardas repetirem o gesto diante do prisioneiro, de modo a que este soubesse que não hesitariam em atirar. E assim se fez a travessia, sem gracinhas por parte do preso.

A história emocionou-me.

É interessante estar num local onde tanta gente conheceu a minha avó. Ela partiu, mas assim é como se estivesse mais perto dela. Hoje mesmo as senhoras da Associação Cultural do Vale do Dão montaram uma barraquinha no largo à nossa porta, a vender iguarias caseiras. Bola de carnes, pão, rissóis, pastéis de bacalhau, bolo mármore e bolo de chocolate e nozes. Quando fui aviar-me, uma delas reconheceu-me como neta da dona N., e disse que a avó era muito boazinha, e muito calma. Sinto-me em casa, aqui. As pessoas conhecem-se todas umas às outras - conhecem a minha família, lembram-se de mim em pequena. É como se não existisse só a pessoa que sou na minha cidade, mas há outra aqui. Outra que, ontem, pôde falar italiano no café, e a quem perguntaram se não se veria nesta vida, porque falta insuflar vida nova no interior - vida que tenha estudado, que acrescente valor, que arranque as aldeias a esta letargia. Há um sentido de comunidade e de entreajuda muito forte. A beleza da paisagem é inspiradora: mesmo quando o tempo está nublado é difícil considerar que haja alguém a sofrer no mundo. Mas há. Isto é um refúgio do mundo lá fora e creio que, se não fossem as minhas irmãs, seria uma opção séria a considerar.

Porque devo sacrificar a minha liberdade, a minha sanidade, para viver a vida que é esperada de mim? Knut Hamsun, Lars Gustafsson e Júlio Dinis acreditam nos poderes regeneradores do campo, da vida rural, da proximidade à natureza. E eu sinto-me tão sufocada na cidade… É como se o meu coração fosse verde, e os meus olhos só exultem perante o dourado do sol a pôr-se nas serras.

Esta pausa a que a vida me obrigou, não será antes uma oportunidade de repensar o que quero para o meu futuro mas, acima de tudo, o que desejo para o meu quotidiano?

21
Jul20

Banoffee


celiacloureiro

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Já tinha comido antes a tarte inglesa de banana conhecida por banoffee, mas não prestei grande atenção. 

Hoje apetecia-me algo fresco, rápido e fácil. 

Cá está (com as minhas adaptações, mas a partir da receita da Tia Cátia):

1 pacote e meio de bolachas maria (ou digestivas) para a base

C. 250 gr de margarina (a Tia Cátia aconselha manteiga sem sal)

1 lata de leite condensado cozido

1 pacote de 200ml de natas para bater (pus meia hora no congelador antes)

2 bananas

Cacau em pó ou raspas de chocolate para cobrir

 

E é isto. A base deve ser compacta e flexível, forram a forma de tartes com ela. Deixam 30 minutos a ganhar consistência no congelador. Quando a tirarem, espalham a lata de leite condensado com uma espátula sobre a base. Cortam as duas bananas maduras às rodelas, cobrem com as natas bem batidas. Por fim, polvilham com cacau ou raspam chocolate (o meu era de culinária) por cima.

Pronta a devorar!

22
Jun20

O riso dos clinicamente deprimidos

ou a doença daqueles que não conseguem apreciar o pôr-do-sol


celiacloureiro

Há alguns anos que a depressão tem sido uma realidade na minha vida. Nem sempre está activa, mesmo porque, sempre que a sinto a chegar, procuro ajuda. Vou ao Psiquiatra, ao médico de família (não é o mais adequado, mas desta última vez foi a médica de família que me ajudou), faço psicoterapia (de vez em quando...) e tomo a medicação tal e qual me é prescrita. O meu principal demónio é a ansiedade, e os ansiolíticos são drogas altamente viciantes. Assim sendo, os anti-depressivos são a alternativa mais adequada, a médio e longo prazo, para vencer a ansiedade. Tenho lido imenso sobre ansiedade, depressão, e por aí fora. Ouvi inúmeras explicações científicas, outras metáforas interessantes (como a do cão negro que nos segue para toda a parte). Nenhuma explicação me é tão esclarecedora como a que Robert Sapolsky nos oferece neste video

Como ajudar alguém que tem depressão? Como distinguir uma depressão clínica da tristeza, da pessoa deprimida, do luto? Como ajudar uma pessoa que suspeitamos que pode sofrer de depressão clínica?

1) Ouvir e não diminuir o sofrimento do outro

Chega de dizer "estás só deprimido". "Também, nunca sais de casa!". "Se te distraísses mais..." e, sobretudo, se a pessoa considera que preguiça de antidepressivos para conseguir manter-se funcional, para sobreviver, não se sair com o habitual "essas drogas só fazem pior".

"A depressão é uma desordem biológica tão real quanto a diabetes juvenil". Imaginam-se a dizer a um diabético que abandone as injeções de insulina?

2) Entender que, para uma pessoa clinicamente deprimida, há um sintoma chamado atraso psicomotor, que faz com que tudo exija um esforço sobrehumano. Vestir-se, tomar banho, sair, limpar a casa, etc. A pessoa não é preguiçosa, nem desleixada. Está doente.

3) Entender que a pessoa clinicamente deprimida não consegue dormir bem porque os seus ciclos de sono estão todos revirados, o cérebro mistura-os, e assim priva o indivíduo de descanso. Não adianta dizerem à pessoa que devia deitar-se mais cedo ou acordar mais tarde. Ela não manda nos ciclos de sono.

"O que pode ser pior do que uma doença em que a pessoa é incapaz de sentir prazer?"

4) Distinguir uma pessoa "triste", que se refugia em comportamentos erráticos como comer compulsivamente, ou gastar dinheiro de modo inconsequente, de alguém clinicamente deprimido, que não consegue tirar prazer de atividade alguma: nem sequer de comer, ou de gastar dinheiro, ou de executar as tarefas que habitualmente lhe traziam satisfação A pessoa clinicamente deprimida frequentemente não tem apetite ou energia/motivação/interesse em executar atividades. Isto também se prende com distúrbios de neurotransmissores como a dopamina (ligado à motivação), e a serotonina (ligada ao humor e frequentemente ao conceito de felicidade). 

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5) A depressão tem factores genéticos (por ex., pessoas com uma variação do gene 5HTT têm predisposição para a depressão - mas apenas se tiverem passado por traumas na infância);

6) A depressão pode ser "adquirida" através de episódios de stress ao longo da vida.

Não é novidade que imensa gente passa por um stress tão incomportável, ansiedade sufocante, um sentimento de despero constante, que acaba por se convencer de que está a prejudicar os outros ao seu redor. Que está a atrasá-los, a causar-lhes trabalho. Tantas vezes a pessoa parte sem chegar a incomodar ninguém, pelo mesmo receio de incomodar. E a pessoa acaba por desistir. Suicídio é desistência - não por cobardia, não porque é o caminho mais fácil - mas porque viver é insuportável para a pessoa que decide partir. Aos familiares de quem parte, devo dizer que não devem culpar-se. Não há garantias de que pudessem ter ajudado a pessoa doente. O que podem fazer é, sobretudo, ouvir, respeitar - aconselhar, sim, mas não julgar. Sobretudo, não devem pressionar ainda mais a pessoa que já se encontra sob um horror inimaginável. Pesadelos, falta de energia, falta de apetite, um fingimento constante. Conseguem imaginar o que é representar a todos os instantes? Comer para evitar questionamentos, deitar-nos mas não dormirmos, rir porque é o esperado de nós em reação à piada que ecoa pela sala, fazer actividades porque hoje em dia é crime ficar-se parado, ir trabalhar senão somos preguiçosos, dar, dar, dar, quando a pessoa está num estado em que sente que está a chegar ao fundo do poço, que não consegue dar mais um sorriso, mais um conselho, mais uma hora da sua presença de fingido bem-estar?

Por favor, nunca considerem um suicida um cobarde. O depressivo não deixou de amar ninguém, simplesmente ama demais. Ama tanto que o mundo, cruel como é, se transforma numa ferida aberta. Num mundo em que tanta coisa causa dor aos que amamos, o depressivo não quer ser mais um fardo no progresso das pessoas felizes, saudáveis.

E é isto. Compreensão, por muito difícil que seja entender que um pai deixa os filhos para mergulhar no mar.

23
Mai20

1993


celiacloureiro

Em 1993 tinha três anos. Vivia na casa dos avós; um primeiro andar de vivenda com um quintal que me parecia infinito. Agora dou-me conta do privilégio que foi ter crescido com espaço. O quintal proporcionava, além de ar livre, banhos de mangueira, naufrágios de Barbies no tanque da roupa, missões secretas do Action Man, casas de tijolos e cassetes para as bonecas. Também cheguei a fazer fogueiras e a destruir panelas quando me dava para fazer sopa de urtigas e hortelã. Andava sempre descalça e com a avó a ameaçar-me com um chinelo que nunca chegava a cair-me no lombo.

É engraçado como as minhas memórias de infância são as que me surgem mais vívidas, muito mais do que as se seguiram na adolescência, ou as da última década como "jovem adulta". Qualquer momento que me recorde da infância está povoado de cheiros, de sensações, dos ecos das vozes e dos avisos da avó. Lembro-me exatamente a que é que sabia o azeite no fundo do prato, depois de ser torturada com pescada cozida, e de como adorava molhar pão nele. 

Mas este desabafo é sobretudo a propósito do Festival da Canção de 1993. Dou-me conta de que, nessa altura, não fazia ideia do que era o Festival da Canção. Além disso, não entendia nada da letra d'A Cidade (Até ser dia), mas gostava de como palavras como "noite", "sonho" e "magia" soavam na voz da cantora. Ainda assim, do último degrau da escada, esgoelava-me toda para o anfiteatro das traseiras dos prédios ao meu redor. Quando a avó ia fazer o jantar, e me chamava de mais um dia a escavaloar (como ela dizia), eu punha-me à porta de casa e reinava sobre o quintal na sombra, o gato molengão no telhado de zinco e as vizinhas que iam à janela gozar um momento de paz antes de acenderem os próprios fogões. E Jesus, se berrava!

Da cozinha, a avó dizia-me que eu era uma "cachondinha da Barreira", que estava a envergonhá-la, que qualquer dia as vizinhas iam bater à porta a mandar calar-me. A mim, tanto se me dava. Continuava a minha playlist diária. Ao longo dos anos, rodaram muitos hits por aquela escada. Com o tempo, a avó aprendeu a encolher os ombros e a dizer que eu não tinha mais que fazer. As vizinhas abordavam-na na rua e riam-se da miúda que começaram a chamar de "a cantora". Caraças, eu era mesmo pequena! Como é que não haviam de achar graça? Agora dói-me os ouvidos só de imaginar o espetáculo de uma miúda a embrulhar aquelas palavras todas na língua. De vez em quando, a avó ainda me mandava ir comer palha a Abrantes, ou suspirava que eu parecia a bruxa de Arruda, ali desgrenhada e descalça a cantar o mais alto que os meus pulmões e cordas vocais permitiam. Mas já estava conformada, coitada. Já sabia que quando o sol começasse a pôr-se havia espetáculo.

Primeiro A Cidade (até ser dia), depois a Chamar a Música, em '98 cantava Santamaria (Eu sei, tu és), e não posso jurar que não tenha feito algumas homenagens à Ágata a partir do meu palco. Também tenho vagas lembranças, que procuro reprimir, de fazer algumas coreografias naquela escada. Assim de repente salta-me o Iran Costa e as Las Ketchup à ideia. Ok, já tinha 12 anos quando esta última saiu, o que é idade para se ter juízo. Mas vejam que já havia uma longa carreira no showbizz a obrigar-me a afastar as cortinas da porta das traseiras e a dar àqueles vizinhos alguma coisa com que se entreterem ao fim do dia.

Jasus, que vergonha. E, ainda assim, quem me dera voltar àquela escada, a essa idade e a essa liberdade, a esse "que se foda", para poder gritar:

Queria dizer-te que estou a sofrer...

Eu já não posso mais...

Nós não somos iguais... IGUAIS

E o tempo foge de mim

Wooooooooooooowhoaaaaaaaaaa.

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