Os disparates sobre Auschwitz e Birkenau
celiacloureiro
Analisemos a seguinte entrevista de JRS, e nada mais (é de dia 18 de Novembro, mas apenas agora lhe cheguei após ler o parecer do autor João Pinto Coelho a seu respeito).
Link para visualização: Grande Entrevista Episódio 55 - de 18 Nov 2020 - RTP Play - RTP
Coisas que me parecem disparatadas na Grande Entrevista ao JRS sobre os seus livros em torno de Auschwitz-Birkenau:
- O tom: sinto que estou a assistir a uma aula, pelo que não posso contrariar o professor;
- Dizer que não há autores conhecidos em Portugal que aborde o tema “Holocausto” na ficção (vou considerar ficção e não jornalismo), quando há um finalista do prémio Leya, que também é prémio Leya e best-seller, e que inclusive esteve envolvido em polémicas com o governo polaco devido ao seu trabalho… Ele é jornalista, e além disso está no meio literário… ou está completamente alheio ao resto? A somar a isso, a sua ideia de escritor “conhecido” é um Nobel e um candidato a Nobel português… Não faria mais sentido comparar-se a escritores de vendas, e não te cultura literária? Um Chagas Freitas, um Raul Minh’Alma? Ou, a nível internacional, a um Dan Brown tuga?
- O jornalista escuta quase sem contestar, sem contrapor – à semelhança de muitos leitores que defendem o intelecto de JRS dos Santos sem pestanejarem. Malta, não acreditem nem no que a vossa mãe diz: pensem por vocês;
- Os erros históricos: dizer que em 1942 Himmler alegava que não podiam “matar judeus”, tinham era que os expulsar, quando é o arquiteto da “Solução Final” e a tinha em prática desde 1941, e quando no próprio ano de 1942 Auschwitz passou a funcionar como campo de extermínio, a par com outros semelhantes… Ver “Hitler’s Circle of Evil”, ou “Hitler’s Most Wanted”;
- A interpretação histórica e as contrariedades: por um lado diz que a realidade foi muito pior do que estamos acostumados a ouvir dizer, por outro lado dá o exemplo de alguns sobreviventes que não têm “más memórias” de Auschwitz e que queria dar voz a essas pessoas;
- Transportar leitores da sua realidade para a de um romance é a essência da literatura – ele não sabia?
- As motivações dos nazis vêm de anos de lavagem cerebral ao povo alemão, inclusive aos próprios nacionais-socialistas e às elites nazis, perpetuada inclusive na Educação – as crianças começavam desde cedo a aprender o ideal da superioridade da sua raça – consequentemente da inferioridade das restantes, em especial da hebraica, e desde muito cedo o antissemitismo funcionou como bode expiatório para unir o povo alemão contra um inimigo comum. Que novidades terá a dar-nos sobre a motivação dos nazis? Não, eles não buscavam um mundo melhor. Sim, eles buscavam um mundo melhor apenas para eles próprios e para o povo ariano que concordasse com eles;
- Custa-me a crer que haja sobreviventes que digam que não se sofria muito em Auschwitz, talvez digam que “não sofreram muito”, é uma experiência pessoal, conseguida por bloqueio ao ambiente que os rodeava, ou por serem jovens, ou por se considerarem sortudos porque viram outros sofrer mais. Dizer que “não se sofria muito” parece-me ofensivo e há milhares de entrevistas com sobreviventes que contam outra versão;
- A definição de “psicopata” do JRS parece-me desprovida de significado científico. O psicopata não é só um tipo muito mau, é um tipo que pratica o mal sem que esse lhe fira a alma. Muitos nazis eram psicopatas, sim, precisamente porque o nacional-socialismo colocou o poder nas mãos dos degenerados, nas mãos de quem odiava mais e mais alto, e por isso estava mais apto a abraçar políticas de ódio e tirava verdadeiro prazer das torturas que infligia às suas vítimas – ler Morrer Sozinho em Berlim, Hans Fallada (1947), que viveu nesse tempo na Alemanha;
- Porquê que os nazis fizeram o que fizeram ao povo judeu? É complexo, não é? Mas não tem grande mistério, e a resposta é de conhecimento geral. Eu explicá-lo-ia do seguinte modo, que se traduz numa interpretação diferente da do autor: 1º Porque precisavam de subir ao poder, e descobriram os benefícios da retórica e da propaganda para dominar o povo alemão – a estratégia básica era a de identificar um inimigo comum contra quem todos pudessem marchar em simultâneo. A partir daí, e tendo em conta a política de expansão de Hitler, foi necessário financiar a guerra. Quem tinha dinheiro na Alemanha estropiada pela I Guerra Mundial, endividada até à medula pelos americanos, entretanto desgraçados pelo crash da bolsa? Os judeus. O inimigo comum do povo ariano. Que fazer? Deixá-los partir com a riqueza que os nazis cobiçavam? Despojá-los dos seus bens e deixá-los partir (e com que meios o fariam)? Deixá-los ir espalhar relatos da indignidade de que tinham sido vítimas no -exterior? Unirem-se e regressarem para esmagar os nazis? Não. Apoderaram-se dos seus bens e eliminaram-nos. A caminho disso extraíram-lhes a vida por via do trabalho – obrigando-os a trabalhar para fornecer o exército nazi de munições, equipamento, combustível, etc. O extermínio esteve sempre em mesa – Himmler era o cérebro desse projeto, porém não o fariam enquanto pudessem tirar utilidade daqueles desgraçados. Porque apressaram o seu aniquilamento? Porque estavam cercados de aliados e quiseram queimar arquivo;
- A ideia do gás surgiu para permitir uma morte mais humana aos judeus? Acho que até o meu sobrinho de 10 anos sabe que os nazis criaram mecanismos de extermínio em massa, e que isso não foi uma consequência de não saberem o que fazer com os hebreus, mas sim o objetivo final de um projeto muito maior, o qual, claro, envolveu muitos anos e muitas mentes, e muitos recursos. Speer trabalhou para uma Auschwitz mais eficaz na eliminação de seres humanos porque os via como animais, e não porque queria poupá-los a mais sofrimento;
- Só se fala em câmaras de gás, mas a câmara de gás era só um dos muitos modos como eram executados os prisioneiros nazis – não apenas judeus, como inimigos políticos, prisioneiros de guerra, etc. – se o gás era para uma morte humana, então porque é que Mengele torturou humanos com experiências inimagináveis (inclusive tentando mudar-lhes a cor dos olhos, injetando-lhes pigmentos na íris?); se o gás era para uma morte humana, porquê os fuzilamentos, as torturas, as execuções sumárias, os espancamentos, etc.?
Para concluir: trata-se de uma interpretação perigosa daquele que é possivelmente o momento mais documentado da História. A ler com cérebro e muito cuidado, porque arriscam-se a sair da leitura mais burros.