A liberdade de dizer alarvidades
celiacloureiro
Há um discurso predominante na atualidade, proferido por pessoas bem-intencionadas, que me preocupa bastante. Isto de apelar para que que a liberdade de expressão dos mal-intencionados seja silenciada é-me preocupante. Levanta várias questões pertinentes, a primeira das quais: quem são os mal-intencionados, e o que define essa má-intencionalidade. A segunda questão implica que calar as eventuais boçalidades que nos ofendem é assumir que ofendem a sociedade em geral, que o meu pensamento está alinhado com o da maioria, que pertenço a uma cultura una e homogénea, com uma base social, educativa e económica semelhante, com as mesmas oportunidades e portanto perspetivas de futuro, com as mesmas dificuldades e desafios diários, com o mesmo código de valores. Portanto, que haveria consenso quanto ao tipo de discurso que pode ser propagado, e o tipo de discurso que deve ser silenciado. Isto é, que há um encontro cultural, geracional, étnico e ideológico no seio de uma nação quanto a questões que se têm levantado nas últimas décadas (ou até mais recentes).
Não acho que seja moralmente correto cingirmos a liberdade de expressão a quem pensa contrariamente a nós, determinando que pensamentos são corretos e aceitáveis, e que pensamentos são intoleráveis e devem ser abafados, esmagados, porque, de alguma forma, a sua liberdade de expressão é nociva. No passado, sempre que um governo, representando uma nação, por via democrática ou não, definiu o que pode ou não ser dito pelos cidadãos, pelas entidades, em esfera pessoal ou pública, o regime era ditatorial. A História definiu que essas ditaduras eram prejudiciais para o bem-estar dos cidadãos, em geral. Que um governo não pode exigir um pensamento único, um consenso em relação a uma religião, a uma corrente política, a uma convulsão social, a um movimento combativo atual. É necessário que haja contestação, debate, confronto, é desses embates que o pensamento maioritário emerge e prevalece, e não pode haver equilíbrio se a maioria for silenciada em prol de minorias. Para que a sociedade funcione, é preciso que haja espaço para que cada um se exprima e viva a sua individualidade sem penalizações. A situação complica-se quando a liberdade de um grupo ameaça a do outro, mas é alarmante decidirmos que livros podemos queimar, e quais devemos guardar.
A esquerda moralista é mais ativa nesse apelo ao silenciamento da direita conservadora, dita preconceituosa, retrógrada e cruel (é o que sugere o subtexto desses discursos). Criminalizar os comportamentos racistas, a discriminação com base em sexo, etnia e outras individualidades parece-me necessário, porque me parece que uma sociedade equitativa pressupõe que todos os cidadãos que a compõem mereçam o mesmo tipo de respeito e de tratamento, sobretudo por parte das instituições públicas. Contudo, exigir o cancelamento, a remoção de certos intervenientes, com base em opiniões pessoais, ou da esfera do privado, porque ofendem, parece-me perigoso. A História provou que é perigoso. Não é sensato assumirmos que estamos do lado “certo” quando silenciamos opiniões distintas das nossas. A liberdade de expressão pressupõe que todo o pensamento é válido, a menos que seja criminoso. E há que ter cuidado com o que se criminaliza. Também acho que é importante que se possam dizer alarvidades, como concluí da conversa entre Ricardo Araújo Pereira e Tomás Magalhães, no podcast Despolariza, porque me parece igualmente importante debater, desmantelar, destruir as alarvidades que consideramos intoleráveis, com vista à construção da tal homogeneização de opiniões, que precisa do seu tempo para se estabelecer.
João Pedro George foi, recorrendo às etiquetas de que dispomos atualmente, misógino e machista nos seus comentários em relação à escritora Madalena Sá Fernandes, na medida em que comentou a sua postura nas redes sociais, o seu corpo e o seu sorriso numa conversa para a qual nenhum desses elementos vinha a propósito. Penso que, até aqui, o pensamento seja consensual: foi um comportamento ignóbil, uma alarvidade de que talvez até o próprio já se tenha apercebido, uma atitude que descredibilizou muito do que disse, no mesmo espaço, sobre o tema em discussão: um livro da autora à luz da crítica literária, com a subreflexão, igualmente pertinente, a respeito do espaço que o mesmo conquistou no meio literário português. A definição de machismo e misoginia enquadra-se perfeitamente nesta apreciação descabida da imagem e da postura da autora. A sua abordagem manchou os argumentos de que se valeu, talvez suportados pela sua longa experiência e conhecimento enquanto sociólogo e crítico, e que pôs em causa a qualidade do seu parecer em relação a questões anteriores, em obras como Couves & Alforrecas, Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto, ou Chatear o Camões, Inquérito à Vida Cultural Portuguesa, que me encontro de momento a ler. E é uma pena porque, depois deste episódio, fiz um levantamento das bandeiras do JPG, acompanhei algumas das suas intervenções em plataformas como o Youtube, ouvi a sua entrevista sobre a biografia de Fernando Pessoa, que me parece promissora até pelo modo como pesquisou para a elaborar, recorrendo a relatos da sobrinha do autor, e escutei atentamente as denúncias que tem feito a respeito da promiscuidade no panorama cultural português. Concluí, desencantada, que a sua perspetiva sobre este meio complementa a minha.
É preciso coragem para denunciar o amiguismo no meio cultural em Portugal, uma bravura que não é necessária quando se critica a vida política do país. É aceitável que se tenha opiniões divergentes quanto a políticos, ao caráter dos políticos, às suas motivações, honestidade ou falta dela, relações e rede de influências. No mundo cultural – talvez devido à subjetividade do valor do produto cultural – é impensável levantar-se suspeitas, acusações, sobre as conquistas de determinado indivíduo. É impensável discutir-se a sua qualidade, uma vez legitimada pela opinião de Y, o blurb Z ou o prémio literário X.
Como diz o próprio JPG algures, se falarmos em termos genéricos há consenso: sim, é provável que haja nepotismo, amiguismo, compadrio, troca de favores, entre autores, júris, instituições culturais, meios de comunicação, etc. Há-o em todo o restante meio português, porque não na Cultura? O problema é quando se nomeia alguém.
Vejamos um exemplo. Em 2021, a TVI concedeu a Francisca Cerqueira Gomes o papel de protagonista numa telenovela do canal. Levantaram-se imensas vozes, inclusivamente do meio da cultura – atores e atrizes –, a condenar o facto de a jovem ter sido beneficiada pelo canal, presumivelmente através da influência da mãe, do número de seguidores, etc., em detrimento de profissionais que estudaram para o efeito e que não obtém as mesmas oportunidades porque não estão nas boas graças de quem manda no canal. Como consequência, FCG perdeu o papel e não pôde “cumprir o seu sonho”, segundo entrevista na SAPOMAG (7 de abril 2021). Não houve dúvidas quanto a condenar esta escolha por parte da TVI, não houve dúvidas quanto à motivação para a concessão desta oportunidade a FCG, nem quanto à justiça de a ver afastada porque a oportunidade era “forjada”. Quantos cidadãos terão opinado que FCG foi eleita para protagonista apenas e só porque se destacou no casting que a TVI garante que realizou na Plural? Sem que a posição da mãe no canal, ou o peso da sua presença nas redes sociais, ou simplesmente a sua beleza e porte, tivessem contribuído para essa escolha?
Repare-se nesta questão que, quanto a mim, é crucial: a TVI é gerida pelo grupo Media Capital, com fundos privados, e deve poder investi-los como bem entender. Ainda assim, a indignação do público teve esse efeito: travou aquilo que se entendeu ser uma injustiça para com os profissionais “sérios” da cultura.
Por outro lado, quando surgem rumores de que determinado autor beneficiou de determinada benesse, com recurso a fundos públicos, a maioria dos discursos acusam o crítico de inveja, má-fé, e um rol de outros argumentos, e não admitem que outros profissionais possam ter sido prejudicados por esse favoritismo. Porque, através da Cultura, o Estado Português vem erigindo os ídolos intocáveis do país desde 1974, com a conivência do povo, que se manifesta sobre tudo, menos sobre aquilo que receia que o faça soar ignorante.
Há uma relação de facto promíscua entre quem estabelece o que é qualidade cultural no país e os postos que ocupa em instituições culturais que se regem também através de financiamento público, com forte contributo da comunicação social, jornais e instituições-chave que fazem circular entre si as oportunidades que existem na área da Cultura. Apoiando o trabalho de um artista, dando-lhe espaço de divulgação, validando-o através de opiniões tidas como fundamentadas, colocando-o nos sítios certos, à hora certa, é possível fabricar-se um ídolo cultural, ludibriar o país, através da validação concedida por esses nomes/instituições-chave, convencendo-o de que isto é o melhor que a cultura tem para oferecer, e que a carreira da pessoa x merece visibilidade, investimento e projeção, por ser de qualidade indiscutível. O CV da pessoa vai-se construindo em torno dessas oportunidades concedidas, muitas vezes, com recurso a investimento público.
Como é evidente, há aqui um casamento entre intervenientes públicos e privados, sendo que os privados se deixam levar à boleia das vantagens que essas colaborações lhes trazem, nem que seja a simples validação, para uma editora, de vozes que se tornaram portentos da cultura à boleia do Estado. Há vários casos que podem ser analisados por esta perspetiva, mas, seguindo a ideia abordada acima de que falando genericamente, sem apontar nomes, é mais fácil levar à concordância do público, parto de Chatear o Camões, Inquérito à Vida Cultural Portuguesa, para montar o puzzle abaixo:
Imaginem que, no início da década de 90, é inaugurada uma Casa Museu de Literatura, na posse da CML. Como diretora, é escolhida a senhora X. Três anos depois, decidindo-se liberar financiamento para uma revista literária gerida pela dita Casa Museu de Literatura, é selecionado, para seu diretor, o marido da senhora X. A senhora X torna-se, posteriormente, Secretária-Geral da Casa YY. Dois anos depois, o marido recebe o prémio literário de poesia que mais significado poderia ter para a Casa YY em Portugal, atribuído por uma universidade que não consta como colaborando oficialmente com a Casa YY, mas que organiza vários eventos em parceria com a Casa YY, e divulgam iniciativas mútuas nas redes sociais e outros meios de comunicação. De modo que, ainda que a título informal, há evidências de comunicação e de colaboração entre as duas entidades.
Imaginem que o senhor Y, advogado, pertenceu à primeira comissão administrativa pós-25 de Abril, foi deputado da Assembleia Constituinte, foi Secretário de Estado da Segurança Social e diretor do primeiro canal público do país, foi administrador da INCM e vice-presidente do P.E.N. Clube português (entidade que, a partir de 1980, passou a atribuir prémios literários em colaboração com o IPL, mais tarde DGLAB), tudo isso até à década de 80. Nos anos 90, recebe um prémio literário da instituição que presidiu e, nos anos 80, recebeu dois prémios literários de uma Câmara Municipal cuja orientação política coincide com a sua, fora muitos outros que, de momento, não tenho tempo nem disposição para investigar.
Imaginem que o senhor Z, grande vulto da cultura em Portugal, na qualidade de presidente de uma comissão para a organização de uma exposição a nível internacional sediada em Lisboa, na década de 90, vê as suas decisões financeiras auditadas e condenadas pelo Tribunal de Contas, num documento obviamente público, onde se destaca a prevalência de ajustes diretos, a derrapagem sucessiva do orçamento e a conclusão de que um projeto que deveria ter resultado em lucros para o Estado Português resultou num prejuízo avultado. O mesmo senhor Z, volvidos meia dúzia de anos, está no conselho de administração de outra grande instituição cultural portuguesa, uma fundação também financiada pelo erário público. Sem esquecer, obviamente, que este grande vulto dinamizador da cultura portuguesa também foi agraciado com dois prémios literários, já depois da auditoria do Tribunal de Contas, atribuídos por outros município do país e com financiamento público.
Posto isto, há ainda quem recuse a ideia de que a cultura se reja por amiguismo, e não por mérito. Que os autores elogiados na comunicação social, entrevistados, com tempo de antena, cuja qualidade é legitimada por esses mesmos meios de divulgação, pelas instituições X e Y, administradas pelos senhores Z e W, são todos exemplos isentos e imparciais daquilo que de melhor se cria em Portugal. Ainda que muitos consigam romper as malhas da promiscuidade em torno dos fundos para a credibilização das grandes figuras da cultura em Portugal, há muitos escritores que, talvez sem o pedirem, muito menos sem o exigirem, são levados ao colo por essa rede cerrada que decide quem entra no clube e quem não é bem-vindo. É difícil acreditar que o convívio em delegações, comissões, eventos, festivais, etc., não crie um tecido de afetos que depois é transposto para a distribuição de oportunidades. Basta ver como o vencedor do prémio de literatura X, com o aval do membro do júri Y, premeia o concorrente Y assim que se vê na posição de júri, volvidos dois ou três anos, quase como uma retribuição pela cortesia inicial. Também isto não é uma suposição, é um facto que pode ser consultado online por quem tiver interesse em realizar um inquérito ao mundo cultural português. Contudo, devo avisar-vos de que as conclusões irão deixar-vos maldispostos, por isso partam para a investigação com o frigorífico atestado de Água das Pedras.
Por último, e ainda que concordando que JPG se comportou como um alarve em trechos dolorosos de assistir no terceiro episódio de Quinteto Literário, é urgente que não o cancelemos. Que não amordacemos o discurso de pessoas como ele que, à guisa de crítico literário, vai denunciando a vergonha que é termos um meio cultural refém de uma teia de influentes tecida no pós-25 de Abril. Atrevo-me a dizer que a mesma está já a transitar para a segunda geração, e que há muito pouco de coincidência na consagração da genialidade dos intelectuais portugueses. Basta ver que, nestes três episódios, JPG se dispôs a discutir o que se escreve em Portugal, os fenómenos de popularidade nacionais, e não figuras intocáveis, como Goëthe, sobre as quais já se disse e escreveu (quase) tudo.