Desatentas
celiacloureiro
A vida no campo tem acalmado o meu espírito e a minha alma, tem-me permitido dedicar-me a paixões novas e às de sempre, mas, como previa, não é suficiente para mitigar esta bênção e esta maldição que é a PHDA. Muita gente, inclusive próxima de mim, com um olhar direto para a minha rotina (ou falta dela) e desafios, já se pronunciou sobre o facto de esta condição não ser “desculpa para tudo”. Claro que não, quero acreditar que eu existo para lá dessa perturbação. Porém, condiciona muito do que sou e, sobretudo, muito do que faço ou que deixo de fazer.
Ontem, passei um tratamento para madeira na mesa de cabeceira que ando a restaurar. Abri o frasco, altamente inflamável e cheio de truques, e pensei “não posso perder esta tampa”, ainda por cima vermelha e vistosa. Passei mais de uma hora a percorrer o jardim, para cima e para baixo, à procura da dita cuja tampa quando terminei o trabalho. Arrasto-me devagar, porque não vale a pena perder a cabeça, revoltar-me contra mim própria. É o meu normal: perder um tempo injustificado, cansar-me desnecessariamente, para realizar tarefas simples que não fui capaz de executar bem à primeira. Entrei em casa, procurei na caixa das ferramentas, no saco do lixo, nos bolsos do robe. Voltei a sair e a percorrer o jardim, mesmo as partes que pareciam um pântano por causa da chuva, que tem sido constante. Chap, chap, chao. Os cães andavam entretidos com os seus ossos da discórdia, por isso não estava com eles. Além disso, eu lembrava-me de ter pensado que não podia perder aquela tampa. De entre todas as tampas, aquela. Desisti de procurar o dito pedaço de plástico mais de uma hora depois, depois de apalpar e revirar o saco do lixo duas ou três vezes, depois de esvaziar e voltar a encher a caixa de ferramentas, depois de procurar e voltar a procurar nos bolsos do robe, no chão, sobre as superfícies, dentro das gavetas, etc. Parece algo que alguém escolhesse para si? Parece que alguém seria assim se pudesse evitá-lo?
De volta ao jardim. Apática, medicada para a PHDA com Elvanse, subi-o e desci-o. Já não sabia quantas vezes o havia feito. E pensei no tempo que passa e na falta de produtividade de que tanto sou acusada. Como ser produtivo quando precisamos de uma hora ou mais, diariamente, para corrigir disparates? É desmotivante, cansativo, insuportável. Há dias em que, para não errar, nem apetece sair da cama.
Hoje fui almoçar ao Intermarché do Redondo, porque tinha mesmo de lavar roupa nas máquinas industriais do parque de estacionamento. Uma vez mais, vim protegida pelo Elvanse. É crucial que consiga avançar no meu trabalho, porque já estou uma vez mais atrasada com uma deadline. Dói-me que pensam que acontece porque não me importo, ou porque sou irresponsável, ou porque não tenho os outros e os seus compromissos em consideração. Eu esforço-me. Eu canso-me. Não estava deitada, nem a ler um livro, por muito que me apeteça, nem a ver televisão. Estava a andar para cima e para baixo no jardim, profundamente desiludida comigo mesma, frustrada, à beira das lágrimas. É possível que, se alguém for espreitando por cima da cerca ao longo da minha vida, seja sempre este o cenário que vai encontrar:
Eu de braços caídos ao lado do corpo, a caminhar devagar, a olhar em redor, a espreitar debaixo de pedras, por entre a vegetação, dentro dos vasos, a tatear os bolsos, a suspirar, apática, de cenho franzido e lábios pressionados. Irritada. Cansada. À procura de qualquer coisa insignificante – mas crucial – que perdi. Acabei por desistir e tapei a rolha com um pedaço gigante de plástico, para pelo menos reparar e não o entornar quando voltar a pegar-lhe.
Na noite do dia 3 de março, em Paris, decidi reencaminhar os bilhetes da Disneyland para o grupo da família. As crianças estavam excitadíssimas, é gratificante poder conceder-lhes uma experiência que estava a anos-luz de nós durante a nossa infância. Sabia que iam adorar e que, mais novos ou mais velhos, seria algo que iria proporcionar-lhes muitos sorrisos e alegria. Reparei que os bilhetes, que desde o primeiro dia assumi serem para o dia 4 de março, tinham, na verdade, a informação de que eram válidos apenas para o dia 3. O dia que se aproximava rapidamente da meia noite. Pensei que logo resolvia o problema no dia seguinte. No meio dos azares, até costumo ter sorte.
Acontece que no dia seguinte, perante as cancelas do parque temático mais famoso do mundo, fomos barrados. O bilhete era realmente apenas válido para o dia 3, e não havia garantia de que viesse a haver qualquer reembolso. As crianças estavam alerta, assustadas com a hipótese de não poderem atravessar um torniquete para o mundo de maravilhas que andávamos há meses a prometer-lhes. Não hesitei. Peguei no telemóvel, no cartão de crédito, e comprei os bilhetes todos de novo. Sete bilhetes para a Disneyland Paris, comprados em cima do joelho perante a cancela. Lá entrámos e tentei abster-me de mais essa distração ruinosa. Como funciona o meu cérebro, tentei compreender mais tarde. A resposta não tardou a encontrar-me. A lógica foi – deve ter sido – que não iria comprar os bilhetes para a terça-feira de Carnaval (4), porque o parque estaria muito cheio, por isso optei por adquiri-los para o 3 de março. Contudo, o que guardei em mente foi que íamos à Disney no Carnaval.
A conta foi elevada, mais um prejuízo em cima de um ano é que os tenho cometido aos magotes. Não é algo exclusivamente meu, é a maldição de quem sofre de déficit de atenção. E depois a culpa, a insegurança quanto às nossas próprias capacidades, o medo da rejeição, do desafeto, que nos faz assumir os prejuízos, pedir desculpa uma e outra vez, recear chamar os outros à razão quando, logicamente, nos sentimos injustiçados.
Hoje, aproximei-me do balcão das refeições no Intermarché e esperei pela minha vez com a bandeja sobre o apoio. Fui escolhendo a refeição, analisando os preços, mudando de ideias uma e outra vez. Enquanto isso, pelo menos duas pessoas passaram à minha frente, dirigindo-se diretamente à caixa para pagar pedidos menores. Quando se sentaram com os seus cafés e sobremesas, a empregada deu as costas ao balcão e começou a arrumar a louça lavada a uma velocidade estonteante. Foi evidente que estava ocupada, mas perguntei-me se seria a prioridade correta: arrumar louça quando não havia mais ninguém atrás de mim e quando estava ali há, pelo menos, quinze minutos. Olhando sobre o ombro, a senhora lá reparou em mim. Continuou a mover-se com a eletricidade com que estivera anteriormente a lavar a louça, mas houve algo que se destacou de imediato: pediu-me desculpas uma, e outra, e outra vez. Pareceu que estava a ver-me ao espelho. Tanta subserviência. Não é que tenha medo do patrão, de ser repreendida ou despedida. Simplesmente, assumiu que foi outro dos seus erros constantes e desdobrou-se em pedidos de perdão. Explicou exaustivamente que estava concentrada a arrumar a louça, que tinha imenso que fazer, que tentava desdobrar-se em mil e que, simplesmente, não me tinha visto. Esforçou-se ao máximo por me atender com diligência, foi simpática e, ainda na caixa, antes de pagar, voltou a pedir desculpa outra vez. Por essa altura, já estava atenta a todos os sinais de PHDA. Então, saí de detrás do balcão e apresentei-me perante o terminal de multibanco, para pagar. Estava de jardineiras e com uma camisola oversize por baixo, enrodilhada em torno da cintura. Ela deu um salto e disse, de imediato: ainda por cima está grávida e fi-la esperar! Ao que eu, com a minha própria impulsividade, respondi Não estou grávida, mas fiquei a saber que estou gorda. E a mulher voltou a ficar mortificada, voltou a desdobrar-se em desculpas. A dada altura, disse algo do género: eu e esta boca, falo sempre sem pensar.
Sentei-me depois de lhe garantir, uma vez mais, que estava tudo bem. Acontece. Eu também sou distraída. Enquanto comia, fui ouvindo as suas conversas com os clientes e os colegas. Toda a gente parece conhecer-se, e ela era realmente extrovertida (ou parecia), falava muito e estava em toda a parte ao mesmo tempo. Entre as corridas e os pedidos de desculpa que continuei a testemunhar, levantei-me para ir buscar um pacote de açúcar para o café e aconselhei-a a considerar a possibilidade de ser hiperativa. Ela disse que talvez seja, a rir-se, a levar tudo com leveza e brincadeira. Mas continuou a pesar o assunto e, enquanto eu comia, voltei a ouvi-la dirigir-se para um colega e dizer: sei lá, às vezes não sei o que estou a fazer, deve ser de ser hiperativa, ou psicopata, ou lá o que é. Outra pessoa poderia ficar ofendida com as suas palavras, mas eu ri-me. Esta inconveniência também é minha.
Depois de lhe pedir uma caixa para levar o que sobrou da comida, com o espaço mais vazio, pude perguntar-lhe algumas coisas, e tudo o que ela disse me levou a acreditar que tenha realmente PHDA. Diz que dorme mal. Bebe seis e sete cafés por dia, sem que “façam nada” e, ainda antes de me ir embora, ouvi-a dizer a uma cliente sua conhecida que estava sem telemóvel, porque o tinha perdido. Escrevi-lhe PHDA por extenso no verso da minha fatura e entreguei-lho, pedi-lhe que veja disso. Voltou a pedir-me desculpa, disse que está cansada porque anda sempre a fazer mil coisas ao mesmo tempo, e para a chamar quando for assim, caso ela não repare em mim. Disse que, às vezes, se pergunta se tem Alzheimer. Era algo que eu costumava perguntar-me muitas vezes, antes do diagnóstico.
Enquanto tirava a roupa já seca da máquina industrial, refleti sobre o quanto a sociedade é injusta para connosco, mulheres, e também para com as pessoas que sofrem deste tipo de condição. Somos acusados de preguiça quando nos esforçamos muito mais do que os outros – não por vontade, mas porque é necessário para atingirmos objetivos vagamente semelhantes. Passamos os dias a colar os cacos do nosso comportamento desatento, desastrado. Passamos a vida a pedir desculpas. E a sentir-nos inadequados, de algum modo diferentes, incapazes de realizar tarefas que os outros fazem com uma perna às costas. A resistência sobrenatural a coisas simples, rotineiras, o congelamento perante assuntos que não nos estimulam, não nos oferecem nada de novo.
É uma sorte sermos aceites. É uma sorte termos quem nos ame apesar de toda a incompreensão. O que vos peço? Que sejam meigos no julgamento dos outros. E que não deixem de se lembrar de que as mulheres – as vossas filhas, mães, irmãs – podem estar a passar por isto sem qualquer ajuda, sem compreensão de si mesmas e do próprio comportamento –, porque o diagnóstico de PHDA demora décadas a chegar ao sexo feminino.