Dói, ser mulher
celiacloureiro
Nos últimos tempos, tenho refletido muito acerca da condição da mulher (e da minha condição de mulher). Pensei em colocá-lo num desenho, e saiu este que uso para ilustrar este post. O sangue é, com toda a certeza, aquilo que salta à vista. Mas este sangue não é a menstruação, nem um aborto espontâneo, nem o que fica de uma violação. Este sangue é tudo isso, e muito mais.
Ontem estava a ver um episódio intitulado Métodos Contraceptivos de uma espécie de mini-documentário da Netflix chamada Resumindo, Sexo. São 25 minutos sobre o modo como a mulher sempre foi a principal responsabilizada por uma gravidez indesejada, e como isso resultou na sua pobreza, por vezes ostracização, dependência do marido, linchamento público, enxovalhamento social, etc. Ao longo de toda a História as mulheres submeteram-se a toda a espécie de mezinha, ritual, brutalidade, para interromper gravidezes indesejadas. Também inseriam objetos estranhos no próprio corpo e lavavam-se com vinagres, poções ou mesmo com excrementos de animais (de elefante, na Índia, por ex.), para evitar gravidezes. Apenas na década de 50 do século XX é que a indústria farmacêutica se interessou por produzir estrogénio sintético, e a pílula revolucionou a vida das mulheres no mundo inteiro. Inicialmente, as mulheres foram cobaias dessa mesma indústria, e poucas décadas depois tornou-se claro que essas pílulas traziam muitos efeitos secundários indesejáveis - alguns letais - para essas mulheres-cobaias. Pouco depois surge o DIU, um anzol de cobre, também disponível em plástico, implantado no útero de mulheres inicialmente de Porto Rico, também como cobaias, para apenas depois se tornar opção nos EUA e restante mundo. Pelo menos 18 mulheres terão morrido, nesses primeiros anos, com choques sépticos e infeções graves do útero e outros órgãos. O documentário dá voz a Loretta Ross, que usou uma nova espécie de DIU aquando da sua saída no mercado, e que perante as dores e o desconforto que sentia no ventre os médicos procuraram incessantemente uma DST. Mulher negra com tantos cuidados para não conceber, só podia ser uma promíscua e portanto estar infetada com uma doença desse espectro. Foi apenas quando entrou em coma que se percebeu que o DIU lhe havia destruído o útero, e lho removeram de emergência. Porquê? Porque as mulheres não são ouvidas, e eu continuo à procura do motivo, do porquê. Terminam dizendo que existe, há anos, uma pílula masculina em testes, porém os efeitos secundários não agradam aos laboratórios nem às entidades que poderiam acolhê-los e distribuí-los no mercado. É inconcebível que os homens fiquem sujeitos a coágulos, flutuações de humor, sensibilidade extrema, mamilos sensíveis e dores de cabeça, como ficam as mulheres ao tomar a sua pílula. O homem não aguenta desconforto? Ou a indústria é mais terna com o sexo masculino? Ou simplesmente mais preguiçosa, com a mulher? A resposta é clara, posto que continuam a tentar minimizar esses efeitos do medicamento antes de o lançarem no mercado.
Avancei para o episódio sobre Fertilidade, e uma vez mais a mulher é a responsabilizada em quase todos os casos de infertilidade num casal. Faz sentido, na medida em que o corpo da mulher é o labirinto que recebe a semente, e se algum caminho estiver vedado não há gravidez. Por outro lado, é mais uma responsabilidade psicológica em cima da mulher. E, quando o problema é mesmo da mulher, é a mulher quem extrai óvulos, é a mulher quem se injeta sozinha na barriga, na coxa, com hormonas para aumentar a produção de óvulos, é a mulher que se submete aos tratamentos In Vitro, é a mulher que depois carrega o embrião, o feto, e o alimenta com o seu corpo, e é ela que sofre os pontapés na bexiga, a incontinência, as dores nas costas, os enjoos, as tonturas, o cansaço, o sono, o parto. O parto - com ou sem anestesia, o parto em que tantas vezes arrisca a vida, o parto, e depois são dela os mamilos abocanhados, feridos, gretados, pela criança, é sobre ela que recai o julgamento social se não perde peso suficientemente rápido.
Mas há mais, há o Parto, que é o episódio que se segue. Outro episódio na minissérie sobre Sexo em que, afinal, tudo é sobre a mulher e as dores, físicas e psicológicas, que tem suportado ao longo da História. Dizia uma das vozes que a mulher é a mamífera que experiencia mais dor ao dar à luz, e que assim é apesar dos milénios de evolução sobre a nossa espécie. Porquê? Porque a Natureza não se interessa pela dor, interessa-se pela sobrevivência, e a nossa espécie continua a reproduzir-se, com ou sem dor. Mas e a Ciência, não podia interessar-se um pouco mais pela dor, na mulher? Neste ponto, uma das comparações pareceu-me preciosa. O ser humano é o único animal que sofre por antecipação. A mulher chega ao parto aterrorizada, confusa - epidural ou sem epidural? Vou conseguir trazer a criança ao mundo de parto natural ou vou acabar na sala de cirurgia? - e tudo isto são também reflexos de cultura, a cultura a imiscuir-se no momento em que a mulher deveria estar em plena harmonia com a natureza - com ou sem drogas, acreditar que de algum modo foi feita para conseguir ultrapassar aquele momento. A comparação que se estabelece é com uma pessoa a tentar fazer necessidades numa sala em que é constantemente interrompida e, por embaraço, retém-se. Imaginem sentir o vosso corpo prestes a explodir em fluidos viscosos enquanto estão rodeados de estranhos... Os hospitais tentam proteger alguma da privacidade da mulher, mas as salas continuam a ser partilhadas com outras, as enfermeiras entram e saem, trocam turnos, há auxiliares, vozes, bebés a chorar ao longe, mães a gritar na sala ao lado. A mulher retém-se. O parto dura para sempre e, no fim, acaba a defecar na maca às vezes. Como é que a Ciência chegou onde chegou - isto é, mete homens no espaço e tudo -, mas a mulher continua a parir com dor e trauma?
E há toda outra dor. Há a dor física, o desconforto, a escolha - dói assim ou dói assado? Por exemplo, no meu caso particular, tenho dores atrozes quando estou com o período. Cheguei a sair do trabalho e a apanhar um táxi para casa, do outro lado do rio, porque não conseguia conduzir naquela aflição (e com analgésicos). Tive de escolher isso ou as dores de cabeça horríveis que tenho agora, nos dias que antecedem o período, e a possíbilidade de coágulos sanguíneos mesmo tendo má circulação. Isto, ou aquilo? E nada é isento de dor. E porque continuam a demorar tanto a diagnosticar a endometriose quando a mulher se queixa d dores excruciantes? Porque és mulher, aguentas com certeza.
Na última consulta ginecológica, o colo do meu útero foi salpicado com ácido acético, e isto enquanto estava ali, de pernas abertas, com duas pessoas ao meu redor e uma dor excruciante na lombar, porque... já disse que quando o período vai vêm as dores na lombar? Antes não tinha, será da pílula? Será de ser mulher? Por sorte, não houve biópsia. Havendo, e estando já à beira do desmaio, teria com certeza perdido os sentidos. Sem anestesia. Porquê? Parece-me muito importante despistar cancro, mas porquê fazê-lo de um modo tão horrível que receio regressar àquele gabinete, repetir aquele exame? Os homens passam por procedimentos do género sem a ajuda da ciência analgésica? Pela primeira vez, numa maca de hospital e com um espéculo dentro de mim, ouvi uma médica dizer, quando me encolhia: Isto não é fita, dói-lhe mesmo. Estes úteros jovens são muito sensíveis.
Significa que não sofro sozinha, sofremos todas, mas não sofremos juntas. Porque não sofremos juntas? Porque é que há tantas mulheres na ciência e continuamos a ter de passar por procedimentos dolorosos sem que se busquem alternativas, e a assumir responsabilidades que, na realidade, são de todos?
Ser mulher dói. Tem doído muito nestes 31 anos. E há-de doer mais, se vier tudo o que descrevo acima...
Ciência, porque não te lembras de nós?