Leaving on a Jet Plane
celiacloureiro
O cancro é uma coisa imunda, cruel, do mais ignóbil que existe à face da Terra.
Quando percebemos que o cancro estava finalmente a apanhar a minha mãe, descobri uma canção de Peter, Paul & Mary chamada Leaving on a Jet Plane sobre uma partida. Não pensei que a minha mãe nos deixasse tão cedo. Pensei que ainda tivéssemos mais um bocadinho. Mais uma ida à Costa da Caparica, uma pequena trégua numa doença implacável. Mais um bocadinho do sorriso alegre dela, por entre sofrimento que nem consigo imaginar. A minha mãe devia ter dores. Devia ter carências. Devia ter medo. De algum modo, encapsulou tudo isso no seu interior e mostrou-nos sempre sorrisos e optimismo. Em janeiro, pelo braço do companheiro dos últimos dez anos, falava no verão. Falou sempre nos seus planos para quando voltasse a ter a sua vida de volta. Para quando nem tudo se resumisse a funções básicas corporais como comer, dormir, falar. Acontece que o tempo nunca voltou atrás por uma tarde que fosse. Cada degrau que ela descia era irrevogável, não havia volta a dar. Todas as capacidades que ia perdendo ficavam perdidas para sempre. Não houve medicina moderna que a ajudasse, ou sequer que a reconfortasse um bocadinho fora um Metamizol e uma malfadada bomba de Ventilan que pode, ou não, ter contribuído para o colapso da sua função cardíaca.
O que me entristece - quando me permito sentir - é saber que ela tinha medo. Ela tinha muito medo do fim, da escuridão do desconhecido, do silêncio do nada, da inação. A minha mãe preenchia todos os instantes de trejeitos de voz, de palavras infindáveis, de narrativas, de apartes, de histórias. E eu, sabendo que ela estava a ir embora num jet plane, sentia-me triste por saber que ela estava prestes a confrontar-se com esses seus receios. Pensava nos meus próprios receios - abandono, solidão - e imaginava-me diante deles. Doía-me pensar que não havia nada que pudesse fazer para mitigar os seus receios.
A minha mãe foi embora - I don't know when I'll be back again - e eu não sei se lhe disse vezes suficientes que a amava. Acho que ela não chegou a conhecer bem o colo do amor, o amparo do afeto incondicional. Viveu sempre a sentir falta da mãe biológica, do pai adotivo que a deixou numa Consoada para nunca mais regressar, e até do piano que tocava aos quatro anos e que saiu pela porta em troca de dez contos de reis quando ainda era demasiado pequena para compreender ou se opor. Deve ter atravessado a vida com um vazio terrível, condenada a enfrentar as suas batalhas a sós. Longe dos pais, dos filhos, apenas com a música e a Feira da Ladra como amigos do peito, companheiros constantes.
Vou ter saudades, mamã.
Sei que voltaremos a encontrar-nos para um grande, grande abraço.