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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

19
Abr20

O Luto e Abril na Assembleia


celiacloureiro

Neste texto, procuro confrontar duas ideias que me têm acorrido enquanto assumo este meu papel de dona de casa. Poderia acrescentar-lhe uma terceira ideia, mas a essência do texto são os sacrifícios, as ausências, o desvirtuamento dos rituais e a teimosia do Ferro Rodrigues. Vamos ver se serei bem-sucedida nesse casamento de ideias, porque tenho a firme noção de que se associam aqui algures.

Vou começar por dizer que, nos últimos três anos, sepultei três pessoas muito próximas. Quando digo sepultei significa que estava na linha da frente dos preparativos e da escolha dos cetins, e não que fui mera expectadora. Enterrei a avó que me criou, cremei o pai, despejei-lhe as cinzas no cendrário comum do cemitério. Do funeral da avó ficou o grupo da igreja da sua irmã a tocar guitarra e a cantar sobre a Ressurreição. Ficou o atirar das flores para a cova e o afastar-me dali para o calor de vários abraços. Do funeral do pai ficou o caixão fechado por minha escolha, uma exceção que procurava dar-lhe a dignidade que o cancro lhe havia roubado, ao mastigar-lhe a carne até aos ossos. Do funeral do avô ficou a sensação de não me ter despedido. De não ter soltado aquele suspiro quando as coisas estão terminadas, porque tudo foram protocolos e limitações. O avô não tinha covid-19, mas ainda assim acedemos sem qualquer objeção a todas as medidas de segurança. Significa que muitos familiares próximos não voltaram a ver-lhe o rosto, que não houve velório, que paguei 130 euros por sacos distos de segurança porque a morgue o entrega num e a funerária deve coloca-lo noutro, e o caixão deve ser encerrado, e aconselha-se a cremação. Com o avô, que chamava “rajá” aos gelados, não houve abraços de familiares, e pelo contrário: senti-me culpada por ter chamado ao cemitério pessoas que têm famílias, que têm preocupações de saúde, ou mesmo a sua irmã de quase noventa anos. O avô não foi vestido, porque “não valia a pena”, posto que nunca mais iríamos vê-lo. Não recuperámos a roupa que ele levou no corpo quando os bombeiros vieram busca-lo – paciência, mas entendem? A pessoa sai pela porta de casa, ou desaparece pela porta de um hospital, quem sabe ainda viva, e nunca mais a vemos. Temos de fazer um esforço sobrenatural de imaginação para acreditar que é o nosso ente querido naquele caixão fechado, na caixa de vidro de uma carrinha funerária de cortinas corridas. Fitamos as cortinas fechadas e o avô estava para lá delas, só nos resta acreditar que sim. O avô, o último romântico que dizia que amava a avó muito mais do que ela tinha noção disso. O avô, sentimental, choramingava por não o visitarmos com mais frequência, e por ter 91 anos e enfisema pulmonar optámos por não visitar, de todo, desde que o primeiro caso de covid-19 surgiu em Portugal, em inícios de março. Ficarei sempre na dúvida se terá tido noção que não íamos para o proteger. Ficarei sempre na dúvida sobre se terá realmente compreendido que não podíamos arriscar, porque a sua vida era a mais frágil que conhecíamos. O avô, que vivia de afetos, morreu de uma queda em casa. Mas eu vou sempre acreditar que morreu porque se viu privado dos afetos que lhe eram tão caros. O avô sabia os nomes dos netos e dos bisnetos todos, sabia o ano exato em que entrou para a tropa, escanzelado, e que por isso lhe perguntaram nesses distantes anos 40 se era “vegetariano”. O avô tinha-me dito, há alguns meses, que nunca tinha comido nada vegetariano, tinha era passado fome. Fiz-lhe caril de lentilhas e a partir daí ele começou a exigir “vegetariano”, que afinal até era bom, num ou outro domingo.

Quando o avô caiu, a pessoa que o assistia ficou na dúvida se podia ou não chamar ajuda médica. Esta conversa toda da linha saúde 24 e do resto confunde os mais inaptos. Ter-se-ão perdido preciosos minutos em que o avô, tão mais lúcido do que o seu cuidador, terá sentido a vida a deixá-lo enquanto o filho o sacudia e lhe pedia que não o deixasse. O avô terá pensado: liga para o 112, seu idiota!, ou terá pensado que se a solidão não se tivesse adensado nas últimas semanas teria tido a assistência que, quem sabe, lhe teria salvado a vida?

Tudo isto são suposições, mas estou convicta de que o avô, que se tinha posto apático e deprimido nos últimos tempos, se deixou enfraquecer pelas limitações e protocolos que o governo instaurou para combater o vírus. Ficou privado daquilo que o mantinha vivo: os almoços de domingo, as intermináveis questões que nos colocava para se pôr a par da nossa vida. O avô, cujas cinzas não pude recolher e que se encontram no poço comum, junto das cinzas do pai e de tantos outros estranhos, não tem o nome gravado numa lápide. É como se tivesse desaparecido - se formos mais além, é como se nunca tivesse existido. Desapareceu e agora só se encontra nos registos da secretaria do cemitério, se perguntarmos por ele. É preciso que saibamos que existiu, para podermos perguntar por ele. Ainda não pude pôr-lhe uma flor.

O avô morreu no dia 5 de abril, que era também o dia de aniversário do meu pai. Como a avó morreu no dia 10 de abril, encerram-se nesses 5 dias, de agora para sempre, o luto desta família. Menos mal. Mas como posso entender que 19 dias depois da sua morte a Assembleia da República decida comemorar o 25 de Abril numa festarola solene para 130 pessoas da frente do combate? Como posso entender que a minha prima tenha dado à luz sozinha esta semana, e que o pai só tenha podido ver a filha ao terceiro dia, quando poucos dias depois do seu nascimento se dá essa comemoração descabida?

Como posso entender que a minha sobrinha mais nova tivesse quase sete meses quando isto começou, e que agora tenha quase nove meses, e que eu seja sua madrinha e não tenha podido acompanhar-lhe os progressos? Ainda ontem se pôs de pé na caminha de grades pela primeira vez, e eu vejo por videochamada, como se fosse substituto à altura. E o pessoal médico? A lidar com o horror psicológico dos pacientes no hospital, dos recursos em quebra, das famílias desesperadas, como podem encontrar justificação para a celebração da Liberdade, em Portugal, numa altura em que há Estado de Emergência e todos vemos as nossas liberdades castradas?

Na minha ótica, o 25 de Abril foi uma vitória nobre sobre uma adversidade que, durante tanto tempo, pareceu inultrapassável. Foi a luta de outra geração, pela qual estaremos sempre gratos. Esta pandemia é a luta da nossa geração, os sacrifícios têm sido feitos sem danos físicos para muita gente, sem disparos de armas nem bombardeamentos, mas ainda assim sabe a sacrifício, quem sabe porque o 25 de Abril nos trouxe uma longa paz e, apesar dos reveses económicos, prosperidade. Porque não honrá-lo e mostrar-nos à altura? Porque não mostrarmos que entendemos a ideia de sacrifício e, em vez de fazermos disso uma festarola na Assembleia, fazermos disso um coro de vozes em uníssono a entoar a Grândola Vila Morena, cada um do seu posto à janela, em sentido?

Termino dizendo que estamos todos fechados numa casa com outras pessoas. É difícil estar-se sozinho com os seus pensamentos neste confinamento. É difícil fazer-se luto nestas circunstâncias. O luto que pude fazer pelo meu avô fi-lo na tarde desse 5 de Abril, fechada no carro à porta da funerária. O carro tem um tecto rebatível, e pus o “Love Theme” da banda sonora de Cinema Paradiso. Deixei que chovesse sobre o tecto rebatível e sobre o carro, e pude chorar em paz ali. Escolhi esse tema porque imagino o avô um pequeno Totó, mais velho de uma mancheia de irmãos, magro, esperto, a cidade como palco das suas brincadeiras, a burrice para a escola e a capacidade para deitar mão a qualquer trabalho que surgisse. Fiquei ali, sozinha – porque este isolamento nem sempre significa que estejamos “isolados” de todos os outros – a imaginá-lo assim mesmo. Um miúdo magricela nas ruelas da calçada da Ajuda, a roubar amoras e a atirar pedras aos pássaros.

E terá de bastar.

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