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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

08
Jun25

Ode aos amores que nunca o serão


celiacloureiro

Devia haver um sítio especial para guardarmos os amores que nunca o foram e nunca o serão. São páginas de doçura e angústia nas nossas vidas. Narrativas sem continuação, rascunhos amassados e atirados para o lado de histórias com potencial que, por algum motivo, nunca se cumpriram. Superamos, é inevitável. Na vida, chega que nos doa o que é. Não haveria continuação - civilização - se capitulássemos perante o que não é. Mas mesmo isso dói. Pesa no coração. Rouba sono e ar. Rouba paz e arranca suspiros de "e se"?

Conheci um homem que me pareceu saído das páginas de um livro que nem sequer escrevi. Perfeito para mim. Ele gostava de usar vocábulos como "miúda e rapaz", mas eu sempre nos considerei mulher e homem. A voz dele conquistou-me ao primeiro áudio. Dava para ouvir o riso através dela, e ele estava sempre a sorrir. Era difícil ver-lhe os lábios por debaixo da barba, pelo que às vezes parecia só um coelhinho com ameaça de covinhas a rir. Imagino que tenha recebido muitos elogios por ter olhos azuis, mas o que eu lhe via nos olhos era luz e riso, clareza e bondade. E a voz, outra vez a voz. Calor e mel e argúcia e afago. Honestidade, mãos cheias dela.


Da nossa noite juntos, ficou-me as mãos dele, tão delicadas e quase femininas à vista, mas quentes e decididas na minha cintura. Mãos das quais saem outras mãos pela ponta do lápis. Se for sincera, e sabendo que nunca antes uma primeira saída me trouxe essas certezas, essas ânsias de proximidade, tenho de admitir que foi aí que a chama se acendeu. Quando ele estava à distância de um braço, a desenhar, com um lápis, a minha mão sobre uma folha branca, e o seu cheiro estranho me embalou. Quis ficar e fugir. Tive medo, porque conheço-me e percebi que estava ali a acontecer algo desconhecido. Novo e grande. E eu, que nem sabia de que cor eram os seus olhos ainda, porque era noite, senti a minha alma repousar na tranquilidade do timbre daquela voz, na segurança do seu pulso do qual saem formas tão belas. Eu não procurava, seria por isso que teria encontrado?

Do seu espaço, ficou-me a cadência da sua voz sussurada no ouvido. A sensação de estar num santuário pessoal que nem toda a gente pisa, que não era para qualquer um. Livros e música. Toquinho e Jobim. Uma manta permanentemente abandonada num cadeirão confortável, um gato dengoso e a promessa de música a cada canto. De manhã, um abraço demorado. Todos os nossos abraços me souberam a refúgios sem tempo, duravam enquanto respirávamos fundo, expirávamos. Ele mexia-me no cabelo enquanto eu o abraçava pela cintura, ou pela perna esguia, a minha bochecha na curva do seu joelho, e eu sabia que ia ficar com ele todo oleoso, mas nem sob ameaça lhe pediria que parasse. Ele perguntou-me se preferia que nunca nos tivéssemos conhecido: preferia que voltassemos a esse momento, em que as suas mãos que enganam os olhos teciam mundos sobre a minha têmpora, desfaziam nós nas minhas costas, cuidavam e embalavam e alvoroçavam.

Achava-o magro e ligeiro, sem o peso da maturidade dos quase quarenta que acho tão lisonjeira nos homens. Porém, havia firmeza em cada um dos seus gestos. Os pés talvez demasiado pequenos, delicados, o cabelo com trejeitos que lhe ficavam melhor quando deitado. Aliás, era desse ângulo que me parecia mais bonito, porque mais casa. Espreitá-lo a partir de baixo, descobri-lo ali, a sua presença segura a pairar acima de mim, a espessura da barba a ocultar-lhe o sorriso, os olhos fechados e rugas alegres a rasgarem-lhos. Os dentes inferiores a libertarem-se do espartilho do aparelho, que terá removido há anos. Já lhe conhecia o hálito, a vibração do peito quando ria, o cheiro cru da pele no peito e na nuca. Sei que odeia que lhe peçam satisfações sobre como vai o trabalho, sei que leva a sério o autocuidado, e que é uma enciclopédia de expressões inglesas sobre relacionamentos. Pude ainda experimentar a profundidade do seu beijo e cair nele, cair mais um pouco, cair até saber que não poderia aceitar menos do que essa escuridão segura. As músicas da minha vida tocavam ao fundo, e eram também as da vida dele, e o mundo pareceu, por fim, alinhado no seu eixo.

O sorriso, sempre o sorriso, que às vezes era só um relance de luz por entre cerdas pardas e hirsutas. Fios de prata a emoldurarem-lhe o rosto, onde a barba envelhece junto às orelhas. Sem acessórios. A pele limpa de ornamentos, a alma pura. Ele era luz, e era cuidado. Ao fim de um mês, e apesar das reticências, do receio, da estranheza de me sentir tão ligada a uma pessoa nova, cujo cheiro reconhecia com naturalidade, cuja mera presença me deixava radiante, senti uma ânsia visceral de retribuir. De o embalar, ainda que nada lhe doa. Que correr para ele e saber que seria acolhida junto ao seu peito. De nadar com ele no escuro, porque ao lado dele nao há medo e se ele o tivesse eu vencia-o pelos dois. Enfrentava a noite e os intrusos para proteger a nossa paz. Queria ter podido revigorá-lo quando volta das lutas dos outros. De me assegurar de que alguém cuida dele, embora, hoje em dia, já ninguém precise que se cuide de ninguém. O cuidado é cada vez mais um luxo. O verdadeiro tesouro de uma vida de servidão, de apagar fogos e correr atrás de prejuízos.

Queria ter-lhe devolvido, com a ponta dos dedos, o amparo das carícias como rabiscos, do abraço que estalava costas rígidas, corações congelados. Ele era arte, falávamos a mesma língua. Mas o íman que senti, ele não sentia. E dói, mas a vida continua sempre. Gostaria de o ver mais focado em si, com mais limites em relação ao que dá aos outros. Não quis ser outra pessoa que leva, e que ele diz que aprecia porque lhe faz bem dar. Queria, simplesmente, dar-lhe também, porque tenho muito para dar e guardo-o há décadas. Para alguém como ele, que ainda não é ele. Também eu, que tantas vezes preciso de colo, sei ser colo e sei embalar. Achei, a cada passo que avancei para essas águas, que o que vivíamos era um clarão de cor no meio de uma existência cinzenta. Mas ele não o sentiu como uma explosão cromática, sensorial. Foi-lhe travessia morna, que nunca chegou a desassossegar. Viveu mais e mais intensamente do que eu o mundo das emoções. Iludi-me, é a verdade que custa a admitir. Gostei, quando me é difícil gostar. E perdi-o, o que é algo que revisito vezes sem conta na vida: no momento em que começo a desejar uma coisa, uma pessoa, perco-a. No momento em que me apego a alguém, é hora de deixar ir. Desfazer o abraço, secar as lágrimas. Ficar sozinha numa estrada escura, com a visão turva, com receio de que a casa nunca surja ao fim. De que, surgindo, a descubra fria e vazia.


Achei que, tal como eu rearranjava o meu mundo interior para o acomodar, para o aceitar luz e sombra, alegria e frustração, maravilha e raiva, ele acabase por fazer o mesmo comigo. Que as minhas lágrimas não o repugnassem e que a minha vulneravilidade não o espantasse. Que ele visse algo em mim que quisesse manter por perto pela vida afora. Que considerasse que havia coisas que só eu lhe poderia dar, e que quisesse vivê-las.


Passeámos pela cidade e nada o inquietava, tudo lhe era conforto e enlace, tudo lhe arrancava sorrisos. Achei, por um instante, que estivémos destinados a encontrar-nos sobre as pedras desta calçada. E estávamos, mas nao estávamos a ficar. Na mesa de cabeceira, uma poetisa portuguesa, como se as lutas pelas quais me bati fossem desenrolar-se como ondas na margem da sua cama. Daquela cama de adolescente onde ouvimos soul abraçados, onde o calor e o tempo não conseguiram demover-nos, apartar-nos. Onde me expus em mãos seguras, que depois se abriram e me deixaram cair. Onde cada gesto dos dois era no sentido de nos aproximarmos mais, nunca de buscar ar nem distância. Como se tivéssemos a boca cheia de flores ou peixes.


E ele escreve. E ele desenha. E eu queria muito por-lhe um pincel na mão. Ele tem um dom, que é o de olhar e ver, ver e e criar, guardar. De fazer rir. Queria ter-lhe mostrado, com o tempo, que o potencial para a grandeza é algo que se desprende de cada um dos seus gestos. Que ser-lhe-ia natural criar algo para a posterioridade, para aconchegar a sua geração, inspirar outras. Achei que lhe faltava alguém que o visse assim: com asas que só tinha de abrir para se superar. Um dia, quem sabe, tomaríamos chá frio num alpendre e cuidávamos juntos das cabras. Dos gatos. Dos cães.


A beleza deixa-me tolhida, pregada ao chão. A cada intermitência de estrelas na nossa última noite, a cada reviravolta da guitarra, a cada nova estrofe poética na voz de um intérprete portuense, a minha alma sentia-se mais em casa. Pensei que, ao levar-me debaixo do braço, ele me conduzisse a essa casa. À casa que, aos poucos, seria ele. A vida poderia bifurcar-se a partir dali. As minhas mãos antes dele e as minhas mãos depois de conhecerem a textura do cabelo dele. As torções do seu pescoço. Os mergulhos nas profundezas do ser humano e social, os temas que nunca nos deixavam sem pé, em que ora ele me estendia a mão, ora eu lha estendia a ele. Queria cozinhar os seus pratos preferidos e assistir às duas contradições. Queria maravilhar-me com a quantidade de doces que consegue ingerir enquanto está de dieta. Queria acolher o paradoxo de sermos humanos nele, nos gestos dele. Saber que ele estaria lá para mim sempre, devolvendo-lhe o mesmo. Preparada para erupções e furacões. Quando seguro a mão, não solto. Iria segurar a dele junto ao coração.

Esta é uma ode a um amor que nunca o chegou a ser, mas que, ainda assim, revibra no meu peito como um projeto cintilante, fulgente. Fábulas e carvão, fagulhas e o cheiro a tinta, a pertença, a alegrias infindáveis e inimagináveis. Um amor que, não o sendo, me lembrou como é bom sentir que se pertence a um sítio, a alguém. Que, mesmo com o bloqueio da Sertralina, quando uma coisa deve ser sentida consegue furar a barreira das lágrimas, dos soluços. Desenrola a mortalha medicamentosa e usa o nosso coração como tambor. Agita-o. Esmaga-o. Agradeço-lhe por isso. Por cada abraço, por cada gesto de delicadeza, por cada favor que se dispos a prestar-me se fosse possível tê-lo como amigo.

Foi dia de lançar um balde de água sobre esse sonho bonito, extingui-lo em cinzas e fumaça. Estendi-me nos destroços à medida que esfriavam. Deixei ir esse sonho breve, mas intenso. Hoje, enterrei este poema bonito que recitei sozinha, e que se resumia ao seu colo para sempre meu, ao meu colo para sempre dele.

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