Os maus também morrem
celiacloureiro
Na sexta-feira passada, quando fui à minha aldeia buscar o meu irmão e os colegas de labuta de volta a Évora, para o autocarro rumo a casa, reparei numa coisa. Na casa em frente à minha, um pouco abaixo na rua, um dos vidros da porta principal estava partido. No seu lugar, ondulava um pedaço de plástico inútil. Não sou nenhuma santa, mas sempre que me apercebo de algo que creio poder remediar, tento fazê-lo.
Sabia que a pessoa que vivia nessa casa era um homem magro, na casa dos setenta (talvez um pouco mais novo, mas bastante debilitado), sempre acompanhado de uma bilha de oxigénio, tal como o meu avô. À semelhança do meu avô, igualmente magro e mais ou menos da mesma estatura, era grande apreciador de cigarros e usava uma boina de lã. Vi-o poucas vezes, a última delas sentado nesse degrau, diante da porta cujo vidro então me incomodou.
Disse ao meu irmão que podíamos ver se tínhamos algum vidro, do muito material de que ainda nos falta desfazer-nos, que pudéssemos disponibilizar-lhe. Talvez o meu irmão pudesse mesmo instalá-lo? Não sei, era uma janela específica de alumínio, e não custa indagar. A coisa ficou arrumada para esta semana.
Na segunda-feira, ao fim do dia, de volta à aldeia, o meu irmão comunica-me, com algum pesar, que o senhor tinha morrido e que o funeral havia sido no domingo. Uma estranha coincidência, mesmo porque, no início da obra, o meu irmão e o colega criaram alguma empatia e proximidade com o senhor. O senhor tinha uma casa e um terreno uma casa acima da nossa, em ruínas, e deixou-nos tirar tijolos e estacionar ali o carro em troca... de cigarros. Certo, não se deve dar cigarros a alguém que claramente tem os pulmões comprometidos, mas acredito que haja um código entre quem depende de nicotina, do género não se nega um cigarro a um irmão. A dada altura, apercebendo-se de que o senhor pedia cada vez mais cigarros, coisa que evidentemente não lhe fazia bem, decidiram começar a negar-lhos. Como consequência, o senhor afastou-se e o contacto resumiu-se a um aceno quando se cruzavam de frente na aldeia.
Nós já sabíamos que o senhor não se dava bem com a família, porque tínhamos abordado o tema do terreno em ruína, que ponderei comprar, sem poder fazê-lo porque o senhor explicou que pertence a uma série de herdeiros, todos de costas voltadas entre eles.
Hoje, ao retomarmos o assunto, o meu irmão diz que, durante quase um ano, sempre viu aquele homem sozinho, à janela ou sentado no degrau de casa, sempre na companhia da fiel bilha d oxigénio. Agora, passada menos de uma semana desde a sua morte, já apareçam familiares para visitar a casa vazia, já repuseram o vidro na janela. Em breve, segundo ele, haverá uma placa de imobiliária a anunciar a venda do imóvel. Senti pena do senhor, da sua solidão que poderia ter testemunhado da minha janela da cozinha. Não obstante, nas aldeias todos se conhecem. Consta que o senhor teve imensa gente a estender-lhe a mão. Ainda assim, optou por viver com a mãe, nunca se interessando por ter uma família ou uma carreira. Foi para o estrangeiro trabalhar, mas regressou logo depois, rejeitando a oportunidade concedida por um parente. Terá tido um historial de drogas e prisão. Para mim, era só o senhor da bilha de oxigénio, parecido com o meu avô. Afinal, parece que era violento e, possivelmente, explorava a mãe, que partiu poucos anos antes de ele próprio. Parece que "não se dava com ninguém".
Refleti no tema enquanto conduzia de volta a casa, por entre paisagens idílicas que se por fim se encheram de luz depois de uma semana de chuva constante. Quem irá recordá-lo? Quem irá guardá-lo na lembrança? Daqui a quanto tempo terá sido totalmente esquecido?
Pois é, os "maus" também morrem. Não só morrem, como também se evaporam.