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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

27
Nov24

Pelo Fim da Ditadura dos Bidés


celiacloureiro

O dia 8 de janeiro de 2024 foi o dia em que, no Diário da República, foi publicado o Decreto-Lei n.º 10/2024 que pôs um ponto final à ditadura dos bidés em Portugal. Ora vejamos:

 

(...) elimina-se a obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho; ii) permite-se que possa existir um duche em casas de banho, em vez de banheiras. (...)

 

Pois é, que lei é esta que andámos todos (tantos, bastantes) a violar até 8 de janeiro de 2024, e o que significa isto do “fim da obrigatoriedade da existência de bidés em casas de banho”? Será que todos aqueles que preferiram ter um armário de toalhas ou um cesto para a roupa suja, ou mesmo uma máquina de lavar-roupa na casa de banho, no sítio onde tradicionalmente estaria o bidé, esteve este tempo todo sujeito a multas? E, afinal, a que multa estaria o cidadão/residente em Portugal sujeito por viver numa casa que não observava os trâmites legais do urbanismo nacional? Todos aqueles que tinham duche, até dia 7 de janeiro de 2024, estavam a viver à margem da lei? E de que forma é que uma banheira se impõe sobre uma base de duche, quando a base de duche é o recomendado para pessoas com pouca mobilidade, e a que burocracias é que um doente ou idoso teria de se submeter para obter uma licença para se ver livre da banheira e adotar a base de duche? A minha forte suspeita é a de que, graças à cegueira de legislação do género, andámos e andamos todos meio na ilegalidade, sujeitos à fiscalização que, por sorte, nunca, ou raras vezes, acontece.

O que mais me assustou ao ler sobre esta lei foi o facto de poder imputar responsabilidade, multas e contraordenações a um proprietário recente. Ou seja, se compraram hoje uma habitação, e a mesma não observa os trâmites legais, porque o antigo proprietário a alterou a seu bel-prazer sem pedir licenças para alterar o interior da sua casa, é o vosso nome que poderá ser prejudicado – com custos, tantas vezes elevados – caso os fiscais do urbanismo decidam bater-vos à porta. Pergunto-me se esta lei não inviabiliza – ou, pelo menos, desmotiva, fortemente – a compra de habitação no interior do país, ou a compra de habitações mais velhas, numa altura em que ter casa é um luxo e em que o interior continua a precisar de gente.

No meu caso, comprei, em junho de 2024 uma casa sem licença de utilização. Na escritura, ficou definido que trataria de fazer valer o Alvará da CME para a legalização de um anexo construído com data posterior à definida por lei para a isenção, e a primeira coisa que fiz ao dar início às obras foi corrigir a situação dos esgotos, com visitas regulares de um técnico do serviço de águas e saneamento da dita cuja câmara.

Uma vez que a casa tinha um pé alto de mais de 5 metros, decidi construir um entrepiso (uma espécie de mezanino) e, para esse efeito, fui consultar a lei. A lei transmitiu-me a seguinte informação:

Por outro lado, são acolhidas novas situações de isenção, onde não existe qualquer procedimento administrativo de controlo prévio. É o que passa a suceder, por exemplo: i) quando exista aumento de número de pisos sem aumento da cércea ou fachada (...)

 

Ontem, contudo, recebi uma carta da CME. Na realidade, uma intimação. Tinha dez dias para me opor à decisão de embargo da obra, pelo período de um ano, e o motivo alegado é que tinha procedido a obras de ampliação da minha habitação sem fazer comunicação prévia à CME, conforme previsto por lei num artigo e letra que não encontro no diploma atual. Não podendo acreditar que a câmara estivesse a emitir pedidos de suspensão – com todas as consequências que daí advém – baseada num parecer erróneo da legislação, voltei a ler o Decreto-Lei n.º 10/2024, perguntando-me porque terá sido mais fácil seguir Guerra e Paz do que este palavreado legal. Mas eis o que deslindo, posto que a alínea abaixo surge ao abrigo da citação anterior

(...) As obras de reconstrução e de ampliação das quais não resulte um aumento da altura da fachada, mesmo que impliquem o aumento do número de pisos e o aumento da área útil;

Por um instante, fiquei em pânico. A minha interpretação parece-me correta, mas a lei é tão confusa, tão omissa, tão obscura e intrincada, até para quem cursa cadeiras de mestrado e leu Leo Tolstói, que pus a hipótese de ter entendido mal. Dirigi a minha resposta ao respetivo departamento da CME e fico à espera.

Mas eu tenho ansiedade e preciso de me sentir segura. Então, a seguir ao pânico, veio a nova resolução: se a CME encontrar – ou fabricar – motivos para embargar a obra, porque imagino que as câmaras estejam muito insatisfeitas com a perda do dinheiro que entrava por via de taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, compro outra casa. Esta malfadada casa em Évora, na qual o meu irmão se tem esfolado, tem embatido em imensos obstáculos. Primeiro, a pouca, fraca e dispendiosa mão de obra no distrito, onde é da praxe que os empreiteiros aceitem várias obras e as vão intercalando umas com as outras, sem grande seguimento nem cumprimento de prazos – recolhi vários testemunhos neste sentido. Tudo demora imenso tempo, os custos são cada vez mais avultados e, agora, a câmara a pairar sobre a obra, diligente, e a emitir propostas de pedidos de suspensão.

É também isto que está errado com o nosso país. Um cidadão que queira estar em conformidade com todos os meandros da lei, esfola-se em guichés e esvazia os bolsos para regularizar as tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas, mesmo quando a lei já não as exige, para evitar “problemas”, porque as pessoas têm medo das câmaras municipais, esses monstros de papelada, como têm da polícia de trânsito quando se sentam ao volante depois de jantar, mesmo que não tenham tocado em álcool. Comprei uma casa fechada desde 2016, o quintal era uma selva, os esgotos estavam às três pancadas, a eletricidade nem quero imaginar, o piso desnivelado, por toda a parte iam surgindo rachas e rachinhas, e estava enclavinhada entre duas outras moradias, habitadas. Na mesma rua, há uma prestes a derramar-se sobre a estrada, a fachada está, literalmente, suspensa por um fio. Ainda assim, nem os vizinhos nem a câmara ficaram satisfeitos com as obras de requalificação. Aborrece-lhes o barulho, chateia-lhes que não tenha preenchido requerimentos (os tais que a lei atual dispensa), e estão preocupados com a cor que escolhi para a porta e o friso, porque há cores de portas e frisos proibidos na região.

Tudo isto é tão pequenino, tão comezinho, que torna mais fácil compreender o porquê de os portugueses desistirem de Portugal. Este aparelho burocrático castrador não incentiva o cidadão comum, com vida ativa, problemas rotineiros, contas para pagar, a querer salvar nada. É mais fácil largar tudo, deixar cair. Um país que não nos estende a mão na saúde, que está a abandonar-nos na educação; uma freguesia como a minha, que tem um incentivo de 500,00 euros para cada criança que nasça na freguesia, porque a mesma vem a perder população há décadas, depois pede-os de volta nas tais taxas e taxinhas, papéis, papelinhos e autorizaçõezinhas.

Um país onde a justiça continua a deixar assassinos saírem com penas suspensas, que explora professores, forças de segurança, médicos, enfermeiros, dispõe-se a perseguir o cidadão cumpridor, trabalhador, com uma ferramenta espantosamente funcional, observadora de prazos e diligente, que é a divisão de fiscalização de urbanismo. Neste Portugal dos escândalos, da corrupção, do compadrio, em que o próprio Ministério da Cultura usa os fundos dos contribuintes (e os europeus) para patrocinar as carreiras dos filhos e netos dos boys, o estado preocupa-se com bidés. E, para começar, como é possível que os portugueses tolerem um estado tão intrusivo que, em 2024, ainda legislava sobre a disposição das suas casas de banho?

Vivemos, mesmo depois da promulgação do novo diploma, a ditadura dos bidés.

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