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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

05
Jan23

Piso 8


celiacloureiro

Estou de volta ao piso 8 do Hospital Garcia de Orta. De volta aos velhinhos que não sabem inserir o cartão de cidadão na ranhura para validar a consulta. De volta à sala de espera de oncologia, rodeada de condenados e de um punhado de futuros milagres. Desta vez, a pessoa ao meu lado é a minha mãe. Uma vez mais, o médico dirige-se a mim, porque a pessoa ao meu lado, sobre a qual paira a foice, não tem palavras.


Enquanto o médico da minha avó era mais reservado, esta oncologista é direta, sucinta, incisiva. Não há nada a fazer. Não há cura. Pode fazer quimioterapia ou não, diga-me você, você é que sabe, eu acho que devia, mas você é que sabe. Não sabe quanto tempo a quimioterapia poderá comprar-nos, se descobrirmos agradece que a informemos. É uma roleta-russa. Continuamos a remar, apesar de sabermos que estamos sozinhos no meio do oceano, sem salvação possível, ou pousamos os remos e deixamos que o sol e a sede nos devorem? Morrer a lutar ou morrer tranquilo, sem viagens ao hospital, sem salas de espera, sem catéteres nem o assalto do cheiro a antisséticos?

Lá estou eu, a descer às catacumbas do hospital para marcar outro exame de medicina nuclear, mais de quatro anos depois. A suportar 35 utentes à minha frente para marcar as análises, as senhas que não funcionam, a funcionária que se ausentou um instante, a fila desordeira e o utente que assoma só para “perguntar uma coisa”.

Lá estou eu, ao lado de outra pessoa condenada, sem palavras, sem plena noção de que o que lhe anunciam é o fim, com a Ponte 25 de Abril para lá da janela, uma paisagem solarenga que não se coaduna com o silêncio da médica que digita a um ritmo insuportavelmente lento a transcrição total do relatório de um raio-x ao tórax. Fomos chamadas para uma consulta de oncologia e, nos primeiros dez minutos, a médica passa o olhar do relatório para o teclado, ocasionalmente para o monitor de um HP antigo, e continua a transcrever a nossa sentença. Parece-me pouco humanizado, o processo. Por fim, pousa os cotovelos na mesa, apoia o queixo nos dedos e diz: Pronto, o cancro espalhou-se. Está nos dois pulmões, nos ossos e no fígado. Não tem cura, está num estado muito avançado. Quer tentar fazer quimio ou peço consulta de cuidados paliativos?

E as respostas absurdas. Tal como o meu pai, há quatro anos, a minha mãe também tenta combater as dores de um cancro terminal com Ben-u-ron. Mas diz que nem sempre o toma, porque receia que lhe faça mal. Ou dormir, nem sempre (quase nunca) dorme, mas também não toma nada por receio que lhe faça mal. Também não come, come pouco ou nada, se a médica pudesse ajudá-la a recuperar a fome… A médica procura-me os olhos, é tudo o que vemos uma da outra. Repete: Tudo vai dar ao mesmo. Ao cancro. Encolhe os ombros, como quem diz “para o pouco tempo de vida que tem, tome os comprimidos que quiser para dormir.”

Pede algo que lhe abra o apetite, porque a médica diz que 45kg para uma mulher de 1,60m não é peso de gente. Saímos do hospital depois de correr três pisos para marcar exames e de sermos extorquidos no parque de estacionamento. A ronda das farmácias não corre bem. O comprimido para o apetite está esgotado nos fornecedores. Um suspiro profundo, como se daí pudesse vir a salvação, e agora tudo estivesse perdido.

Antes de bater a porta do carro para entrar na farmácia, a voz arfante da minha mãe pede-me: Traz-me Halibut, custa-me a estar sentada.

E eu regresso minutos depois, a perguntar-me como foi que viémos aqui parar: a este estranho momento no tempo em que o Halibut passa das minhas mãos para as dela, 33 anos depois.

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