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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

20
Abr25

Porque se escreve e publica cada vez mais em Portugal? - Parte II


celiacloureiro

Crer ou não crer na seriedade das distinções?

Desde 1995 que o Transparency International analisa o índice de corrupção nas instituições públicas de um país “a partir da perceção de especialistas e executivos de negócios sobre os níveis de corrupção no setor público”. O índice é estimado entre 0 (percecionado como pouco corrupto) a 100 (muito transparente). Eis o apuado para Portugal em 2024:

“Portugal, que é avaliado no conjunto dos países da Europa Ocidental e União Europeia, obteve 57 pontos, fixando-se na 43ª posição em 180 países. O desempenho de Portugal foi um dos piores da Europa Ocidental, com uma queda de 4 pontos na pontuação e a perda de 9 posições no ranking global”[1].

Contudo, para o comum consumidor de cultura, a corrupção ou os jogos de influências nos bastidores do meio cultural são impensáveis. Isso porque a figura cultural, ao contrário da política, atingiu um estatuto de ídolo intocável. Aos ídolos da cultura perdoa-se o impensável. Basta refletir nos rumores a respeito de crimes presumivelmente cometidos por Michael Jackson contra menores, nas acusações de pedofilia contra Marion Zimmer Bradley, no Óscar de Melhor Realizador atribuído a Roman Polanski em 2003 pela Realização de O Pianista, depois de três décadas a ser distinguido com os principais prémios de cinema internacionais apesar de, em 1977, ter sido acusado de violar uma adolescente de 13 anos.

Há inúmeros exemplos de como a opinião pública é benevolente para com aqueles que nos entretém, e talvez tenha sido percetível para o meio cultural português que era possível criar uma societé de “intocáveis” em menor escala através do carimbo de qualidade literária. Afinal, perante este cenário de leviandade e criminalidade internacional, o que são uns favores a meia dúzia de amigos?

Convém esclarecer que “corrupção” não se refere a “roubo”, mas também a canalização ou desvio de recursos públicos. Vejamos o que nos diz o Ministério Público sobre o conceito:

“De um modo geral, a corrupção pode-se definir como o desvio de um poder para fins diferentes daqueles para que foi concedido. Ou seja, o uso (abuso) para fins particulares de um poder recebido por delegação. Esta definição cobre uma ampla gama de práticas: os conflitos de interesse, o desvio de fundos públicos, somas extorquidas por funcionários públicos abusando do seu poder, as autoridades públicas subornadas por pessoas ou empresas para fechar os olhos ao incumprimento de certa regulamentação ou para tomar uma decisão não imparcial, ofertas ou subornos de uma empresa dirigidos ao responsável pelas compras de outra empresa, etc.”[2]

A questão é que o meio cultural português, que começou a germinar depois da Revolução de Abril, num país com uma população à época abaixo dos 10 milhões (9 833 014 segundo os censos de 1981)[3], em que 1 em cada 4 portugueses era analfabeto em 1970, 64% dos quais mulheres[4], era, naturalmente, composto de meia dúzia de intelectuais que havia defendido a democracia, estudado nas instituições de ensino disponíveis, combatido o mesmo inimigo e convivido num meio restrito composto pelos próprios e um punhado de “outros”. Esse é o mesmo meio cultural que passou décadas a prestigiar os colegas, numa roda-viva de autoelogio e autorreconhecimento, e que se recusa a aceitar que as formas de viver e produzir cultura possam evoluir com a população.

Se os censos de 1970 apuraram que apenas 49 mil portugueses tinham um diploma do ensino superior, tenhamos em conta que só em 2022 se formaram 89.640 pessoas, 51.870 das quais mulheres[5]. Assim, pesando-se a balança do conhecimento, temos uma geração maioritariamente envelhecida que domina a cultura, maioritariamente masculina, em evidente contraste com a realidade do país. Serão as gerações mais jovens incapazes de produzir cultura? E por que motivo o meio cultural português, composto de autores consagrados, editores de renome, meios de comunicação social influentes, apenas reconhece valor e apoia “jovens” abaixo de 40 anos cujas relações familiares ou os evidentes contactos no meio põem em causa a parcialidade dessas distinções?

Passemos a casos práticos. Enquanto júri na atribuição das Bolsas da DGLAB em 2022, Marcos Farrajota (bibliotecário na Bedeteca de Lisboa e especialista em Banda Desenhada segundo anúncio da DGLAB) entendeu por bem atribuir 3 das 3 bolsas de criação disponíveis para o género BD a autores com obra publicada na editora que fundou em 1995, a Chili com Carne[6]. Não será isto um caso indiscutível de “conflitos de interesse”, sendo também evidente que tomou uma decisão imparcial, desviando, para esse fim, fundos públicos que poderiam ter sido desviados para outros projetos, quiçá mais merecedores?

Outro caso prático de interesse é o facto de, em 2019, Ana Bárbara Pedrosa ter integrado o júri do Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz 2019, como parte da Comissão de Seleção, tendo presumivelmente colaborado com a restante equipe, composta por Bruno Vieira Amaral, Isabel Lucas, Luísa Mellid-Franco, Manuel Pereira Cardoso e Maria Helena Santana. Em 2021, volvidos 2 anos, o júri do mesmo prémio, composto pelos mesmos elementos, distingue “Lisboa, Chão Sagrado” enquanto finalista, alavancando o prestígio de Ana Bárbara Pedrosa, ex-colega de painel, através desse gesto de reconhecimento. Não haverá aqui outro claro conflito de interesses?

Há pelo menos uma dezena de outros exemplos do género, quase todos assentes no facto de os responsáveis pelas instituições de cultura, pelo jornalismo de cultura e pelas distinções literárias serem sistematicamente os mesmos rostos.

A Literatura, em particular, é uma área que torna difícil discutir o desinteresse das considerações, e é nessa subjetividade que se apoiam os estabelecidos para alavancar “os seus” e excluir, por vezes até minimizar, “os outros”.

Bittencourt cita Eagleton (1997) para explicar essa resistência da velha-guarda intelectual à mudança, tão válida no século XIX que analisou como na atualidade:

“Se não é possível ver a literatura como uma categoria ‘objetiva’, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isto porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm as suas raízes em estruturas mais profundas de crenças (...). Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, mas que estes juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros”.

 

A literatura portuguesa atual e o falhanço deste modelo

Para mim, não há dúvida de que esta predominância de um pensamento homogéneo a liderar o setor da cultura tem prejudicado a cultura, o mercado livreiro, os leitores e, em última análise, a própria Língua Portuguesa. Numa entrevista ao Descendências, em fevereiro de 2023, além de se referir várias vezes a “literatura a sério”, quando questionada sobre a dificuldade em exportar a literatura portuguesa para o mundo, Maria do Rosário Pedreira responde:

“É fácil explicar. Apesar de o Português ser uma das línguas mais faladas no mundo, ninguém a fala nos países onde se publicam livros a sério. É muito difícil encontrar nas editoras de outros países pessoas que falem ou que leiam Português suficientemente bem para que possam apreciar um livro em Português e, posteriormente, publicá-lo”.

À partida, o argumento parece-me uma falácia. Segundo dados oficiais, há cerca de 2 milhões[7] de portugueses espalhados pelo mundo. A esses juntam-se todos aqueles oriundos dos PALOP e do Brasil espalhados pelo globo, num universo total de 265 milhões[8] de pessoas que falam português ao redor do mundo. Como assim, não há quem fale ou leia português em países com cultura literária capazes de valorizar a nossa literatura e publicá-la?

O argumento cai por terra quando consideramos o sucesso global de Elena Ferrante, que escreve em italiano, ou de Leïla Slimani, que escreve em francês e que viu o seu “Canção Doce” como um dos 10 melhores livros de 2018 segundo o The New York Times. Assumindo que o mercado dos EUA seja um dos “países onde publicam livros a sério”. É verdade que mercados como os EUA, o Reino Unido, França ou o próprio Brasil têm um interesse muito modesto na literatura portuguesa, o que não impediu José Rodrigues dos Santos de ser um best-seller em França. Isto porque é possível impor um gosto particular num país quando se domina as instituições que o legitimam, mas não é possível convencer mercados liberais do valor artístico de livros que sobreintelectualizam a Língua Portuguesa, tornando-a incompreensível para portugueses e inacessível para estrangeiros. Livros sem uma espinha dorsal (uma história, enredo ou personagens) que os sustente, e que ficam assim intraduzíveis.

Metade dos livros “a sério” em Portugal incluem “um isto que faz aquilo”, um “tipo que encontrou um calhau em forma de nabo”, “uma velha que sonhava em grego” e outras esquisitices tais, uma fórmula já muito vista e revista em Portugal, que inclusivamente já teve o seu momento e já deu os seus frutos (Para onde Vão os Guarda-Chuvas, Afonso Cruz, 2013). Exemplo:

“Uma parteira recebe meninas para fazer abortos, um sargento que se acha coronel persegue macaquinhos no parque, um passador leva meninos a salto para lá da fronteira; a meio caminho, um desastre na berma duma estrada; um rapaz em movimento que não sai do mesmo lugar; e há ainda uma nau catrineta que se afundou além-mar.”

Morramos ao menos no porto, Francisco Mota Saraiva, Prémio Saramago 2025

No caso, este último um livro em português truncado, de um démodé estilístico mesmo no panorama português, onde há décadas tantos tentam escrever como António Lobo Antunes, mas ainda assim um esforço da “elite” para manter o status quo. Para fingir que se renova.

São livros que não falam à grande generalidade do público nacional e com certeza não terão nada a dizer ao estrangeiro, nem em forma nem em conteúdo, e talvez por isso a própria Maria do Rosário se queixe da “quebra na compra de livros”, que não encontra justificação nos dados da APEL. Livros que, em última instância, só servem para aplaudir figuras estratégicas do meio cultural, numa hemofilia que sufoca e condena a literatura portuguesa no mundo.

A verdade é que essa literatura de nicho (literalmente, a que brota, germina e é colhida por um nicho bastante nítido) só sobrevive à boleia de financiamento estatal, que entretanto nos chega também da União Europeia, também um novo solo para implantar figuras culturais. E esse financiamento estatal é concedido a uns quantos em detrimento de outros, quiçá com mais vocação para difundir o que se escreve em Portugal no mundo.

De facto, esta literatura não tem sido nem será vista com interesse pelos mercados internacionais, aos quais não interessa a experiência individual, que nunca atinge um caráter universal, do tipo de literatura que tem sido apregoada como “a sério” em Portugal. Nunca se permitiu que houvesse um encontro entre escritores e leitores em Portugal, talvez porque os iluminados continuam a considerar que somos o Portugal de 1970, com meia dúzia de letrados, quando somos dos países com mais diplomados na Europa. Isso não confere “maturidade” aos leitores, nem tão pouco aos escritores mais jovens mas deveria, pelo menos, impedir que se desdenhasse do trabalho dos “não alinhados”. O modo como o meio descarta as abordagens e a opinião de quem lê e escreve é, simplesmente, indecente. Há como que um receio de que, abrindo a porta a mais autores – sendo justos e dando algum crédito aos leitores –, se abra a porta a uma revolução que os destrone. Que havendo mais livros nas mãos das pessoas, mas não sendo esses livros aqueles que consideram que deveriam ser, a sociedade portuguesa estivesse em risco.

Deus nos livre de permitir que se escreva sobre outra coisa que não o difícil que era a vida antes do 25 de Abril, no bairro, ou no Tarrafal, ou nas cadeias da PIDE.

Para concluir, gostaria de deixar claro que sei distinguir um bom livro quando o vejo. Que concordo que há livros que não podem ser considerados literatura, porque são, acima de tudo, um produto de entretenimento, e isso tem outro tipo de valor. Ainda assim, há muita literatura à espera de reconhecimento em Portugal, e há também rios de tinta a elogiar literatura que não o é.

 

[1] https://transparencia.pt/indice-de-percecao-da-corrupcao-2024/

[2] O que é a corrupção | Departamento Central de Investigação e Ação Penal

[3] EDPR81-90.pdf

[4] f_2024_04_17_pr_5_dd_vf.pdf

[5] Diplomados com ensino superior por sexo, ciclo de estudos e área de educação e formação | PORDATA

[6] Chili Com Carne

[7] Portuguese Communities - Foreign Policy - Diplomatic Portal

[8] World Portuguese Language Day | UNESCO

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