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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

23
Nov24

Quem é a Madame Butterfly?


celiacloureiro

Ora permitam-me responder, com todo o gosto, a uma pergunta algumas vezes repetida desde as stories que tenho publicado desde ontem.

Em primeiro lugar, Madame Butterfly é o que me traz a Lucca, o tema do meu trabalho de mestrado sobre o orientalismo na ópera de Puccini.

Mas quem é, afinal, a Madame Butterfly? Para o explicar - porque a explicação não é propriamente simples -, devo entrar um pouco pelo tema do meu trabalho de Literatura e Artes. Assim, a personagem Madame Butterfly é fruto do fascínio dos homens europeus (e norte-americanos) pelo exotismo do oriente e, em especial, pelos mistérios da feminilidade oriental em geral, e da japonesa em particular. Li, algures, que, o Orientalismo na arte é a interpretação do oriente a partir dos olhos dos ocidentais, portanto um Oriente projetado que não existe, se não em oposição ao que é ser-se ocidental. É, assim, uma quebra relativamente às regras, às leis, à religiosidade, às paixões e à conduta social dos europeus. Assume-se que o ocidente seria o lado da razão, do trabalho e da honra e da respeitabilidade, ou seja, do estatuto social do homem civilizado, enquanto o oriente era um mundo mágico de prazeres desconhecidos, um escape, um capricho. O ocidente como força masculina do mundo, o oriente como a feminina. Yin e yang.

Jean Auguste Dominique Ingres, La Grande Odalisque

Tratou-se de uma influência muito grande na arte ocidental desde, sensivelmente, fins do século XVIII e início do século XIX, estendendo-se até ao entre guerras. Terá começado com o enamoramente dos holandeses e dos ingleses pela parafernália de objetos que o comércio marítimo começou a trazer dessas paragens: sedas, chá, pedras preciosas, porcelanas, mais tarde vasos, utensílios de cozinha, mobiliário, biombos, quimonos. Durante o séc. XIX, Ingrès, Manet, Delacroix, pintaram o mistério do oriente e de paragens exóticas de forma magistral, introduzindo A Odalisca, os banhos turcos, os homens de turbante, a natureza oriental à audiência europeia. O fim dessa divagação amorosa do ocidente em relação ao oriente deu-se quando o Japão se tornou num inimigo da "liberdade" e dos Estados Unidos, na Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, embora essa admiração deixasse de ser tão vocal, é provável que permaneça até hoje uma ideia de oriente enfabulado, desconhecido e indecrifável na qual os ocidentais projetam imagens tantas vezes erróneas.

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Por volta de 1850, quando o Japão, um reino desde sempre fechado ao ocidente, abriu por fim os seus portos aos ocidentais, os norte-americanos puderam enviar navios para portos como Nagasaki e, nas décadas seguintes, a sociedade japonesa esforçou-se por se adaptar aos marinheiros que percorriam aquelas colinas fascinados com as suas pecularidades. Surgiram casas de má fama (bordéis), apesar de ser estritamente proibido que as mulheres japonesas se relacionassem com os homens ocidentais. Contudo, com a evolução das relações comerciais, acabaram por surgir modos de aproximar homens e mulheres de formas um pouco mais respeitosas, embora não menos degradantes para as mulheres japonesas de famílias desfavorecidas - ou caídas em desgraça, como a de Cio-cio-san, a nossa Madame Butterfly. Começaram a surgir intermediários casamenteiros, que sabiam que os americanos costumavam demorar-se nos seus portos e que procuravam mulheres dóceis que serviam de "esposas" em casas estabelecidas e custeadas pelos próprios americanos, para que estes vivessem a fantasia de ter uma casa, uma família, no Japão. Como é evidente, nenhuma mulher de famílias respeitadas se submeteria a essa posição. Muitas das que o fizeram sabiam que, uma vez que o seu marinheiro partisse, viria outro noutra estação que poderia, igualmente, tomá-la como esposa e sustentá-la durante algum tempo. O Japonismo é um subproduto do Orientalismo, e esteve muito em voga nas últimas décadas do séc. XIX precisamente pela abertura do Japão ao mundo ocidental. O oriente misterioso que os europeus exploravam há séculos estava pronto a revelar-lhe mais segredos.

Madame Butterfly é um conto escrito em 1898 por John Luther King, cuja irmã acompanhara o marido, missionário, a Nagasaki. Ali, ouvira falar da trágica história de amor entre uma japonesa e o marinheiro americano que a abandonou tendo, inclusivamente, conhecido os dois protagonistas. Era uma história recorrente, que também Pierre Loti explorara no seu romance de 1887, Madame Chrysanthème.

O conto vendeu "como pães quentes", e é fácil compreender porquê.

Hohenstein_Madama_Butterfly.jpgEm 1904, depois de ver a peça de David Belasco em Londres, Puccini lança a ópera Madame Butterfly, com as devidas adaptações para o público italiano. Embora tenha sido um fracasso na estreia no La Scala, devido à barreira cultural e a ser excessivamente longo, o compositor não desistiu da sua obra e repensou-a em três atos, transformando-a num sucesso mundial que é hoje em dia.

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O enredo é relativamente simples: um americano desembarca em Nagasaki e é recebido pelo cônsul americano na cidade e pelo casamenteiro que contratara por correspondência para conseguir uma mulher e uma casa durante a sua estadia na cidade. O cônsul avisa-o de que Cio-cio-san, ou Butterfly (chochou, o nome da protagonista em japonês, significava borboleta), era uma jovem sensível caída em desgraça devido ao suicídio do pai, gesto que é uma vergonha na cultura japonesa, e que ela acredita piamente no casamento com um americano. Está, inclusivamente, disposta a amá-lo, a abdicar da sua religião e dos costumes japoneses por ele. O cônsul explica-lhe que, para os japoneses, o casamento deve durar "999 anos". É desde logo evidente que Pinkerton encara o casamento como sendo "de fachada", "temporário", até, um dia, poder casar-se com "uma verdadeira esposa americana". Ora espreitem a ária em que o diálogo tem lugar, Dovunque al mondo, na qual Pinkerton diz que um homem não pode estar satisfeito se não colher o tesouro que são as jovens bonitas de cada praia, e que ficará casado com Butterfly por 999 anos, desde que não seja transferido para outro porto.

Butterfly é-lhe apresentada e tem cerca de 15 anos. É incrivelmente bonita e vem acompanhada de uma criada, Suzuki, a quem fará os seus desabafos ao longo da história. Uma vez a sós, percebe-se que os recém-casados ficam desde logo apaixonados um pelo outro, embora seja evidente que Pinkerton lhe faz promessas que não tenciona cumprir. Há ainda a menção que Butterfly faz ao que ouviu dizer do ocidente: que, ali, quando um homem encontra uma borboleta, acaba por espetá-la com um alfinete para a adicionar à sua coleção. Na segunda ária mais bela de todo o espetáculo, Vieni la sera, Pinkerton afasta os receios de Cio-cio-san e os dois enlaçam-se e transformam-se em marido e mulher, legitimando, pelo menos para ela, o casamento. É óbvio que ela pretende ser-lhe fiel e honrá-lo, adotando a sua religião e, graças a isso, sendo regenada pela própria família. Nesse ponto, na mesma área, Cio-cio-san confessa: sozinha e renegada, renegada e feliz. Porque julga que o tem a ele.

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Passam aproximadamente 3 anos e Pinkerton não voltou a Nagasaki nem sabe que Butterfly teve um filho seu. Um menino de traços japoneses e olhos azuis - tocando, neste ponto, na questão das crianças mestiças que sofreram graves discriminações no Japão. Apesar de todos a avisarem, incluindo o casamenteiro que lhe arranjou um potencial novo marido, Butterfly não acredita que Pinkerton não vá voltar. Na realidade, a sua fé nele é inabalável e exaspera todos ao seu redor. Naquele que é para mim o ponto alto da ópera, Cio-cio-san procura mitigar as dúvidas de Suzuki, garantindo-lhe que um belo dia veremos chegar o barco de Pinkerton, e que ele regressará para os seus braços e voltará a chamá-la de sua mulher. Chorem com Un bel dì vedremo.

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Pinkerton regressa, mas acompanhado da legítima mulher, e só então se apercebe do mal que causou à jovem Butterfly. O final é trágico, como o de quase todas as óperas, mas é lindíssimo. Já vi duas vezes e voltarei a ver mais dez.

Tudo isto dá pano para mangas em termos de reflexão. É uma história incrivelmente misógina, é verdade, em que a mulher está completamente submetida a um homem que considera superior não apenas por ser do sexo forte, mas por ser de nacionalidade americana, abdicando da própria família, religião e cultura por ele. O retrato da mulher submissa que tudo suporta foi muito criticado ao longo dos anos. Contudo, de algum modo, Puccini recebe o elogio de não ter denegrido a imagem de Butterfly, de não a ter transformado numa prostituta desesperada e apaixonada, mas sim numa jovem crédula e de coração partido, numa mãe abgenada, cujos sonhos são esmagados pelo oficial da marinha insensível. Essa consideração pela mulher estrangeira na base da cadeia alimentar tem valido reconhecimento a Puccini e, sem dúvida, conquistou a minha estima e admiração pelo modo como o autor elevou Butterfly que é, sem dúvida, a personagem mais nobre desta ópera. Talvez seja por isso que as audiências mundiais tenham sempre torcido por Cio-cio-san e condenado Pinkerton. A história foi readaptada dezenas de vezes, inclusive a romance pornográfico e a um filme de 1993, com Jeremy Irons, intitulado M. Butterfly.

Esclarecidos sobre quem é Madame Butterfly, prometem que compram bilhete quando estiver em cena nas redondezas?

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