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Célia Correia Loureiro

Sobre a vida, em dias de chuva, de fascínio ou de indignação!

05
Abr25

Dilema literário: subtexto e final


celiacloureiro

Amy Beager (título ? / ano ?)

Não é fácil escrever um romance, e não é fácil pôr um ponto final num romance. Nunca escrevi um livro partindo do mero relato do dia-a-dia de alguém, navegando de acontecimento banal em acontecimento banal. Lembro-me que era isso que me incomodava na escrita da MRP quando comecei a lê-la, nos anos 2000. O "levantei-me, fui até à casa de banho, lavei os dentes, a cara, depois entrei no duche e regulei a água para a temperatura que achei confortável. Depois de me secar, fui até à cozinha, abri um pacote de bolachas e encostei-me ao balcão. Pensei: tenho de telefonar à EDP" nunca me disse nada. Isto são, muitas vezes, histórias de personagens à deriva no vento, à espera que venha um acontecimento (tantas vezes uma coincidência) que valide a narrativa. Atenção, há ótimos livros sobre personagens à deriva no vento. Vejam À Espera no Centeio, de J. D. Salinger, mas, mesmo aí, a deriva é mais emocional do que geográfica (embora também o seja), rotineira. Há pouco de interessante em relatar aquilo que é o quotidiano de todos. Quem sabe, daqui a um século, valha a pena saber como era a rotina de um cidadão do início do século XXI, logo após a viragem do milénio. Como literatura contemporânea, peca por secura.

Feita esta introdução, admito que ando às voltas com o subtexto do romance que estou a terminar. Trata-se de uma história concluída pela primeira vez em 2006, quando eu tinha 16 anos. Como é evidente, estava impregnada do meu romantismo juvenil, dos meus sonhos de futuro, de amor cego e ingénuo. Ainda assim, considero que há qualquer coisa que merece ser salva nesse enredo, então repesquei-o, mais uma vez  depois de várias tentativas de o reescrever , limpei-o dessa aura juvenil e creio que nunca estive tão próxima de o levar a bom porto. O objetivo não é, como não pode ser, agradar o leitor. Nem, tão pouco, falar ao leitor. Quando muito, pode ser convidar o leitor a refletir sobre o que ali se expôs. Posto isto, importa ponderar na forma de fazer chegar a mensagem. Porque, julgo que à semelhança de todos os meus livros, esta narrativa carrega reflexões importantes.

Eu não gosto de esfregar explicações na cara do leitor. "Maria bateu à irmã quando a viu abrir um presente melhor do que o seu porque tinha ciúmes da sua relação com os pais". Maria bateu à irmã quando a viu abrir um presente melhor do que o seu, ponto. O leitor saberá tirar as suas conclusões. Não gosto de dizer, no primeiro capítulo, que a personagem tem uma má relação com a mãe, para depois, no terceiro, lembrar que "uma vez que se dava mal com a mãe..." Caí nesse erro com maior gravidade no meu segundo livro, O Funeral da Nossa Mãe. É um crime de repetição que só serve para aborrecer o leitor. Ainda que muita gente tenha conseguido extrair a seiva desse livro, outros debateram-se com essa enxurrada de lembretes. É preciso livrarmo-nos do medo de que o leitor esqueça, de que não perceba. E, quando somos subtis, ou quando guardamos segredos enquanto contamos uma estória, é mais fácil cair nessa tentação. É neste ponto que me encontro encurralada.

Sei como o meu livro acaba. Na verdade, comecei-o com uma motivação, mas logo encontrei outra, que considero ainda mais pertinente. Sei o local exato onde cada personagem estará, no final. Conheço os seus sentimentos em relação ao que foi narrado, conheço os seus corações, as suas mágoas antigas e as novas. Contudo, não basta narrá-lo. A literatura, como o cinema, dispõe de uma câmara que aponta para um ângulo específico da trama. A título de exemplo, em Get Out, a expressão de puro terror, as lágrimas involuntárias de Chris Washington bastam para perturbar a audiência. É, talvez, mais aterrador do que ver, por exemplo, outra personagem a afiar uma faca com ar ameaçador. Em Atonement, Joe Wright mostra a devastação de Dunkirk pelos olhos de Robbie, atirando a audiência para o meio do caos e roubando-lhe(s) a esperança de um resgate bem sucedido. Ao mesmo tempo, a sequência de quatro minutos acompanha Robbie e os seus companheiros de armas, focando-se neles, na sua dificuldade em processar o que estão a ver, em navegar por entre destroços, em escapar ao horror da guerra e à degradação do estado físico e psicológico dos outros soldados, com cavalos a serem abatidos em pano de fundo, documentos e equipamento militar a serem destruídos e jovens a cantar Dear Lord and Father of Mankind, poema no qual se exalta a beleza da paz. Foi este ângulo que Wright escolheu para transportar o público para a Normandia de 1940, e não outro que se limitasse a mostrar uma praia arrasada, gente encardida de olhos encovados e um pianinho triste ao fundo. Há camadas de emoção e estratégias para o alcançar. Podemos dizer que o realizador estava a tentar emocionar o público, como podemos dizer que, profundamente comovido e comprometido com o episódio devastador que estava a encenar, o realizador optou por esta abordagem por a saber alinhada com os seus sentimentos e, assim, possivelmente, também com os da audiência. Espreitem aqui a cena em questão.

Uma vez clarificado aquilo a que me refiro como "ângulo", e consciente da importância desse ingrediente, estou perante algumas limitações, como o facto de a história ser contada sempre e apenas a partir do ponto de vista da personagem principal que criei em 2006. Por outro lado, tenho a liberdade do tempo, e tenho ainda a liberdade de poder quebrar com o ponto de vista único da personagem num epílogo, por exemplo, emprestando-o a outro interveniente na história. Sei o que acontece, como já estabeleci. Só não sei até onde quero contá-lo. Imaginemos que sei que as personagens vivem felizes para sempre — um final muito ao gosto dos irmãos Grimm. Se fosse uma telenovela, o último episódio poderia incidir sobre o casamento dos dois pombinhos, com as restantes personagens ao redor, felizes e airosas. Se fosse um filme romântico, terminaria com uma corrida desenfreada no aeroporto e uma declaração de amor emotiva. Se fosse do género comédia, terminaria com o casal no meio do caos doméstico, com filhos barulhentos e um cão felpudo. Se fosse um conto de fadas, terminaria com a queda do vilão e o casalinho a avançar para o pôr-do-sol, montados num cavalo branco. Se o final fosse triste, poderia acabar com alguém a desaparecer ao volante de um carro, numa estrada muito longa (é possível que tenha recorrido a isto em Os Pássaros). Se o final fosse em aberto, bem... vocês sabem, corta-se a coisa depois de dar sugestões de possíveis desfechos, para que o público imagine, mas tenha pelo menos bases em que se apoiar.

Neste caso, o final não é aberto. A história termina da mesma forma desde 2006, o meu dilema está em quanto revelar depois da resolução final das personagens. Quanto explicar dos motivos que as levaram àqueles três dias de escapismo, sem tratar o leitor como burro, sem me repetir, sem repisar pontos que as personagens, para quem tudo isso é óbvio, não teriam interesse em repisar? Deixo que o leitor leia os sinais? Confio nessa sua capacidade, num mundo de desatenção em que eu própria sofro desse déficit, para unir pontas no fim?

O equilíbrio a encontrar é entre manter-me subtil ou plantar, propositadamente, um ou outro indício do que vem aí. Mas, mais importante ainda, do porquê de tudo, quando a leitura terminar. Não quero levar o leitor a concordar ou a discordar, a perdoar nem a julgar, mas apenas a refletir com base em toda a informação disponível. Agora, quanta informação disponibilizo?

Supunhamos que, a dada altura, as personagens conversam sobre um crime que, para o outro, é imperdoável. No final do livro, tendo a outra personagem cometido o tal crime que sabe que é imperdoável para a primeira, vale a pena ressalvar "eu sabia que, para x, isto era imperdoável!"? Neste ponto, tendo a optar por não o sublinhar, e por esperar que os leitores cheguem sozinhos a essa conclusão. Não só que, para o primeiro, o tal crime cometido pelo segundo é imperdoável, como também à conclusão de que o segundo está plenamente ciente disso. Idealmente, talvez o subentendam do estado de espírito geral da personagem.

Outra questão, imaginem que queremos mostrar o porquê de a personagem z ter cometido o tal crime, tudo isto no campo hipotético, não estou a dar spoilers do livro mas, quem sabe, do tal subtexto do livro. Vale a pena desfiar um background que o mostre? Ou basta um diálogo sucinto, uma explicação clara mas breve ou, como os americanos e os britânicos adoram, um aceno de cabeça, cujas lacunas o leitor depois preenche com tudo o que acabou de ler a respeito da dita personagem?

Como leitora, gosto muito de preencher lacunas. De fazer o puzzle. De dizer Ah, foi por isso que...! Então foi assim! Contudo, já percebi que há dois tipos de livros que pecam perante o leitor contemporâneo: os que explicam de mais e os que explicam de menos. Então, como encontrar o equilíbrio entre o que revelar e o que guardar? Também aqui, parto sempre do princípio de que devo escrever para mim, enquanto leitora. Teria apanhado aquela pista? Hum, depende. Estaria atenta? O trecho é especialmente aborrecido? O livro tem 120 páginas ou tem 670? Principalmente, quem são os meus leitores e com que disposição partem para os meus livros, agora que estou a ponderar fazer-lhes chegar um nono? 

Enfim, é neste ponto que me encontro. Acredito que só irei conhecer o último capítulo no último instante. Até lá, ficarei à espera de um ângulo de naturalidade que não destoe das cores do resto (laranja, verde-floresta, verde-musgo, ocre), e que não procure arrancar piedade nem condenação ao leitor. Não gosto de dar lições de moral nas minhas obras, embora, às vezes, não consiga evitá-lo (em Demência, talvez?)

O leitor que julgue: ao escritor cabe apenas narrar a história nos termos que esta exigir ser contada.

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