Porque se escreve e publica cada vez mais em Portugal? - Parte I
celiacloureiro
São várias as vozes que lamentam o facto de se publicar cada vez mais em Portugal, perpetuando a ideia de que aquilo que tem qualidade é uma raridade, ou não está ao alcance de qualquer um. Embora não possa discordar por completo, as circunstâncias são propícias a mais criação artística e literária, o que explica que, de facto, haja uma maior azáfama de produção e publicação. Contudo, o que é difícil de explicar é que, perante essas circunstâncias que desenvolvo abaixo, não surjam mais "livros a sério". O meio mais tradicional continua obstinado em manter o seu círculo "exclusivo", e é difícil encontrar nele alguém que não tenha ligações ao Estado, a determinados partidos políticos ou a faculdades específicas.
Não serão essas vozes, que dizem que se lê cada vez menos "livros a sério" e que "agora se publica tudo", em parte responsáveis pela degradação dos hábitos de leitura do país até há pouco? Não serão, quiçá, os responsáveis por apenas agora o meio cultural estar a experimentar algum dinamismo, algum frescor?
Eis a grande questão: Porque se escreve e publica cada vez mais em Portugal?
Será que, de repente, toda a gente tem uma história para contar? Será que o “escritor” é visto como uma rock star, e que é por isso que há gente “sem talento” a tentar juntar-se ao clube? Será que as editoras baixaram os critérios de qualidade e agora "publicam tudo", ou será uma consequência natural da crescente escolarização da população? Já agora, como sobrevive quem não depende do gosto do público e escreve "livros a sério"?
Perspetiva histórica, a que interessa
Segundo Jorge Buescu em Matemática em Portugal, uma questão de educação, numa publicação da Fundação Francisco Manuel Dos Santos, a taxa de analfabetismo em Portugal, em 1878, era de 82,45% (por comparação, em Inglaterra era de 1%). Interessante que, ainda em 2021, segundo o INE, a taxa de analfabetismo em Portugal continuava a ser superior à de Inglaterra 143 anos antes. Estas estatísticas demonstram que a probabilidade de surgir um escritor em Portugal, bem como de haver um mercado para escoar as publicações, estava dependente da pouca escolaridade dos cidadãos e de uma indústria que teria como público alvo a fatia de 20% da população que sabia ler, ficando ainda à mercê de interesses pessoais e do poder de compra desses indivíduos. Também importante observar que 89,29% dos analfabetos eram mulheres.
Como consequência, é também natural que a literatura que se publicava em Portugal estivesse então refém da visão de um determinado nicho da sociedade que, independentemente da inclinação política (monárquica ou republicana) tivera acesso a educação e, portanto, circulava em grupos específicos de indivíduos oriundos uma fatia muito magra da população. Em comparação, em Inglaterra, qualquer degenerado poderia publicar o que entendesse, desde que encontrasse quem o quisesse publicar, sem nada a perder.
Ser escritor no Portugal do século XIX
Apesar das estatísticas tão pouco animadoras, o século XIX foi prolífero em escritores (e até algumas escritoras) em Portugal. Alguns dos nomes mais sonantes surgiram no seio de famílias de funcionários públicos, militares, políticos ou aristocratas, como são exemplo Eça de Queiroz, Abel Botelho, Teófilo Braga, Teixeira de Pascoaes, Manuel de Arriaga, Alexandre Herculano, Ramalho Ortigão, Almeida Garrett, Pinheiro Chagas, Maria Amália Vaz de Carvalho e tantos outros. Parece também evidenciar-se uma relação estreita entre a Universidade de Coimbra, em particular do curso de Direito, e a produção literária. Também no século XIX a literatura deixou de ser apenas produzida por aristocratas no mundo e surgiu o “artista operário” e o “artista burguês”, como recorda Rodrigo do Prado Bittencourt, acrescentando ainda, a propósito da evolução do ofício de escritor em Portugal, no século XIX:
“Portugal não chegou ao mesmo grau de desenvolvimento de seu mercado editorial e isso se percebe até mesmo pelas dificuldades de seu reduzido público de alfabetizados, mas também à penosa condição de escritor, que pouca atenção recebia do resto da sociedade, comparativamente (...) aos países da Europa Ocidental. Esse legado histórico de pouco desenvolvimento do campo certamente contribuiu para a aceitação da ampla influência da Literatura Estrangeira no país”.[1]
Bittencourt também comenta que o escritor português do século XIX, por inexistência da condição de mecenato, teria talvez de ficar por sua conta e resignar-se a criar obras que alcançassem algum sucesso comercial, ficando assim livre para escrever sem imposições de patrocinadores. Contudo, o mesmo não se verificou, porque já nessa altura o Estado Português contratava escritores para cargos públicos, precisamente por coincidirem estes com os cidadãos formados do país, o que servia ainda, segundo Bittencourt, para calar “as críticas dos que acusam o Estado de não investir em cultura e de não valorizar a arte nacional”. Terá nascido, assim, uma ligação estreita entre a escrita e a política em Portugal, que o próprio Eça de Queiroz retratou com ironia, por constituir uma “exceção” face a outros escritores que, uma vez abertas as portas da política, adaptaram os seus escritos aos ditames estéticos e ideológicos do regime que representavam. No século XIX, conclui Bittencourt, e não há como discordar, o Estado era o principal empregador de artistas, e também o principal consumidor de arte, assumindo-se assim como seu mecenas.
De lamentar que, no século XXI, o Estado permaneça o principal patrocinador de arte em Portugal, constituindo as bolsas, prémios, posições, comissões e eventos na Cultura o grosso do retorno financeiro que um autor pode obter com as suas obras, para não mencionar o reconhecimento dos pares e as portas que vê assim abertas. É também assim que um autor ascende ao estatuto de “intelectual”, sendo o carimbo de qualidade do Estado aquele que mais importa. A título de exemplo, é do conhecimento público que a autora Ana Margarida de Carvalho recebeu os seguintes apoios/distinções por parte do Estado:
- Em 2013, 15.000€ através do Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB por Que Importa a Fúria do Mar, com o Tarrafal como tema central;
- Em 2016, 15.000€ através do mesmo prémio, por Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato e 7.500€ pelo prémio Manuel Literário Manuel de Boaventura atribuído pela CM de Esposende, uma obra sobre escravatura;
- Em 2017, 7.500€ pelo Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco APE/CM Vila Nova de Famalicão, pelo livro de contos Pequenos Delírios Domésticos e 15.000€ da Bolsa de Criação Literária DGLAB,
- Em 2022, 15.000€ da Bolsa de Criação Literária DGLAB.
Não inclui, nesta lista, os inúmeros prémios de jornalismo, porque não tive tempo de investigar a origem dos fundos atribuídos. Assim, temos o exemplo de uma autora que, tendo escrito um total de 3 romances em 9 anos, recebeu um patrocínio de (pelo menos) 90.000€ do Estado Português. Se tivermos em conta que as royalties de um autor andam em torno de 10% do PVP de um livro (deduzindo o IVA), significa que o seu livro Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato teria de conquistar cerca de 67 mil leitores para obter esse rendimento, num país onde cada tiragem tem, em média, 2000 exemplares. Ou mais, se tivermos em conta que há recibos a passar e descontos a fazer.
No século XIX, um dos principais exemplos de um escritor ao serviço do estado é, talvez, o de Alexandre Herculano que, entre outras funções, ocupou o cargo de bibliotecário na Biblioteca do Porto, a convite de D. Pedro VI. Não há dúvida de que o convite terá partido da afinidade de ideais liberais entre rei e bibliotecário, o que não desmerece o trabalho desenvolvido por Alexandre Herculano durante os seus anos de serviço. Contudo, podemos perguntar-nos: será que, eventualmente, outro poderia tê-lo feito melhor?
Talvez Júlio Dinis (pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, 1839-1871) se tenha tornado tão popular devido “à influência do pai, médico, e à sua educação científica”, que lhe permitiam ter “uma visão bem mais real e verdadeira do que a dos autores ultrarromânticos”[2], sendo que a obra de Dinis corresponde mais a um prenúncio do Realismo do que ao Romantismo. Enquanto escritor talvez burguês, o autor retrata o mundo rural e o declínio da fidalguia em obras como Os Fidalgos da Casa Mourisca ou As Pupilas do Senhor Reitor, sem saudosismo aristocrático.
Outro escritor popular no século XIX foi Manuel Maria Rodrigues que, na primeira metade do século XX encantou a minha avó com A Rosa do Adro (1870), talvez porque também havia visto o filme de 1919 ou o de 1938. O autor distinguia-se dos seus conterrâneos porque “os temas abordados nos seus romances eram histórias de amor entre pessoas comuns, operários, agricultores, gente simples, o que contrariava a tendência literária da época que privilegiava as relações repletas de glamour das classes mais altas”[3], de modo que era menosprezado pelos “críticos da altura”.
Na viragem do século, com o fim de quase 800 anos de monarquia, são os vultos do republicanismo os que ficarão incumbidos de escrever a História e entreter os (poucos) literatos.
Escritores do século XIX no mundo
Se espreitarmos o panorama literário em Inglaterra no mesmo século, além de nos vermos perante uma lista interminável de nomes, a diferença no contexto socioeconómico dos escritores publicados é notória. Anne, Emily e Charlotte Brontë eram filhas de um reverendo, Thomas Hardy era filho de um pedreiro e nunca frequentou a universidade, Dickens também nunca frequentou a universidade e começou a trabalhar aos 12 anos, George Elliot (pseudónimo de Mary Ann Evans) frequentou escolas femininas até aos 16 anos, apenas porque o pai lhe viu uma inteligência incomum “para as mulheres”, Jane Austen era também filha de um reitor, Mary Shelley nunca frequentou a escola formal. Se nos atrevermos a espreitar para o outro lado do oceano, o padrão mantém-se: Mark Twain deixou a escola aos 12 anos para trabalhar como aprendiz numa tipografia, Herman Melville foi marinheiro e, se assim não fosse, provavelmente nunca teria escrito Moby Dick. Será que os leitores e os críticos do século XIX eram menos preconceituosos do que o meio cultural português em pleno século XXI?
O século dos prémios literários
Em 1901, o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído pela primeira vez, no caso a Sully Prudhomme, cujos estudos ficaram pelo liceu. Em 1905, o Nobel era atribuído a um polaco que nunca brilhou na escola e que não frequentou o ensino superior. Em 1907, Kipling, que apenas frequentou a escola militar, era galardoado com o mesmo prémio. A partir da década de 1910, começa a ser mais difícil encontrar um laureado que não tenha frequentado a universidade, mas temos o exemplo de Knut Hamsun, em 1920, que viveu uma vida de instabilidade errante até ao sucesso de Fome (1890), inspirado na sua própria experiência. Luigi Pirandello é agraciado em 1934, sem formação superior, e algumas das suas principais obras sugiram da sua experiência enquanto operário em minas de enxofre. Nos anos 60, ainda há uma série de casos de laureados que apenas receberam educação em casa, como Nelly Sachs. Contudo, a partir dos anos 70, começam a ser raros os nomes que não passaram por uma universidade. Em 1998 temos Saramago, um mero pensador entre académicos, e, em 2007, Doris Lessing, que abandonou os estudos aos 13 anos. Parece que temos de dar um salto ao Oriente para encontrar o último autor cujo valor literário foi reconhecido sem o selo de qualidade da passagem pela vida académica: Mo Yan que, aos 11 anos, foi trabalhar a terra (Nobel da Literatura 2012). Contudo, é sabido que o prémio Nobel esteve em muitos momentos refém de alguma politização.
Além do Prémio Nobel da Literatura, indiscutivelmente o mais prestigiado para o ofício, ao longo do século XX surgiam também a maioria dos outros prémios literários de relevância: desde 1918, o Pulitzer premeia ficção nos EUA. Nos primeiros 20 anos, o prémio foi atribuído a 10 mulheres, o que deixa transparecer o ecletismo e a visão quiçá mercantilista do mercado americano, premiando o mérito em vez da tradição. Em 1937, a obra premiada foi E Tudo o Vento Levou, da autoria de Margaret Mitchell, que havia estudado no Smith College, uma instituição privada de ensino exclusivo de mulheres, em funcionamento desde 1871. O primeiro Prix Goncourt foi atribuído em França em 1903, mas apenas em 1944, volvidos 41 anos, é que a primeira mulher foi premiada. A que se deve esta discrepância entre homens e mulheres na escrita galardoada? Talvez à taxa de alfabetização de 90% dos americanos na viragem do século XIX para o XX, enquanto a francesa era de 50%? Naturalmente, a educação chegaria mais tarde para as mulheres europeias. O liberalismo político dos EUA e o “monstro” do capitalismo terão permitido um desenvolvimento cultural mais democrático face àquele que a Europa se permitia?
Em 1969, surgiu o Booker Prize na Irlanda, talvez ainda hoje um dos principais prémios para a literatura de língua inglesa e, em 1975, Espanha criava o Cervantes para distinguir a literatura hispânica.
Quanto a Portugal, qual é a relação entre a vida académica e o reconhecimento do trabalho de um autor, uma vez que já ficou claro que a educação formal não é requisito para escrever boa literatura?
Portugal em prémios literários
Em Portugal, a viragem do regime após o 25 de abril obrigou a um reajustamento da comunicação e da perceção do que era a Cultura Portuguesa, sendo o meio literário inundado de autores e obras proibidos durante os quase 50 anos de ditadura. Quanto a prémios para os distinguir, alguns dos mais expressivos surgem logo nos anos 80, como o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB (1981), o Prémio Literário Camões (1988), sendo Miguel Torga o primeiro premiado, o Saramago cerca de 10 anos depois e o Oceanos (inicialmente Prémio Portugal Telecom de Literatura) para as obras em Língua Portuguesa, desde 2003. O Prémio Leya veio instituir-se como o maior prémio em termos de valor pecuniário na Língua Portuguesa a partir de 2008, mas nunca atingiu o ambicionado status de prémio literário, ficando-se, talvez, com o título de prémio estratégico-comercial mais cobiçado do meio no seu período de glória. É à boleia dessas distinções e de outros instrumentos para a divulgação da cultura portuguesa que surgiram algumas das personalidades que, ainda hoje, determinam o que é a boa literatura em Portugal, e a quem é permitido produzi-la.
Os primeiros galardoados (década de 80) foram quase sempre figuras associadas a movimentos de oposição ao regime salazarista, destacando-se, entre estes, José Cardoso Pires, Miguel Torga (que, entre outras ações, apoiou a candidatura de Humberto Delgado à presidência, em 1958), David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho e vários outros. Posteriormente, o Secretariado da Cultura, a INCM, como também a fundação de instituições culturais, como a Casa Fernando Pessoa ou a criação do Centro Cultural de Belém, contribuíram para distribuir os cargos disponíveis no leme da cultura por um núcleo relativamente circunscrito de personalidades.
Além de visões políticas convergentes, muitos têm/tinham em comum a formação na Universidade de Coimbra, particularmente no curso de Direito, ou em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (atualmente, parecem ser o curso de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, bem como o de Direito, aqueles mais propícios a dar à luz prodígios literários).
Eis as pedras basilares do gosto, da forma, da estética, do reconhecimento e da promoção do produto literário em Portugal no último quartel do século XX. Volvidos cinquenta anos do 25 de Abril, continua a apregoar-se os louros da literatura voltada para a demonização do Estado Novo, que volta e meia surge disfarçada de outros temas derivantes, como a escravatura, a colonização/descolonização no contexto nacional.
À boleia do Nobel, uma modernização fictícia
Tirando a pedra no charco que foi Saramago, ao ponto de preferir abandonar o país por esbarrar na falta de reconhecimento da República Portuguesa e dos seus pares, a restante montra de intelectuais nacionais vem de um contexto político e sociocultural muito homogéneo.
Com o Nobel, há um período de sensivelmente 15 anos durante os quais a literatura, ainda comandada pelos homens da cultura pós-25 de Abril, começou a pavimentar a estrada da nova geração de “líderes”, permitindo e patrocinando o surgimento de novos vultos de significância. Quiçá, para comunicar ao mundo que o país do Nobel da Literatura de 1998 não estava estagnado, e que o futuro da literatura portuguesa estava assegurado. Embora nem todos tenham mantido o estatuto de "herdeiro" desde a premiação, quer em termos de produção literária, quer em interesse dos leitores portugueses, também o prémio, que em tempos foi uma fórmula certeira de criar “celebridades instantâneas” na literatura, parece moribundo em 2025. Cada premiado geriu a sua carreira como melhor entendeu, gozando até há pouco de uma certa aura de “eleito”. A minha opinião conta muito pouco para o caso, mas diria que se destacam José Luís Peixoto pela autenticidade da obra, a voz única e a consistência do trabalho desenvolvido desde então, e João Tordo, por ter deixado claro que é capaz de ganhar a vida a escrever, despindo-se da intelectualidade intrínseca ao prémio e escrevendo livros capazes de alcançar um público amplo. Nenhuma das personalidades que o alavancou e elogiou no início de carreira virá agora dizer que é, afinal, um escritor comercial com uma obra de gosto essencialmente anglo-saxónico.
Não obstante, veja-se como a obra premiada deste ano passou quase despercebida na comunicação social, nos eventos e até nas livrarias. Morramos ao menos no porto está acantonado numa pilha discreta de livros na Fnac, ofuscado pelos tops de vendas, ocupados por novos autores nos últimos meses, entre os quais Luísa Sobral, Maria Francisca Gama ou Rui Miguel Pinto. O autor é Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, o que constitui uma curiosidade interessante que me apraz salientar.
(Continua para uma parte II)
[1] https://revistas.unisinos.br/index.php/entrelinhas/article/view/entr.2017.11.1.04
[2] U.Porto - Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto: Joaquim Guilherme Gomes Coelho (Júlio Dinis)